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4202) Os checkpoints da vida (22.1.2017)

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(ilustração: Christian Pierce)

Uma das coisas boas de ler vários livros ao mesmo tempo é que às vezes a gente tem a sensação de estar lendo uma história só, que vai passando por diferentes narradores.

Pois bem: estava eu lendo uma noveleta de Ted Chiang, The Lifecycle of Software Objects (2010). É a história de um grupo de programadores envolvidos na criação de digientes, criaturinhas virtuais que se comportam como personagens de videogames, mas têm inteligência própria, dialogam com os programadores, evoluem por conta própria.

Os personagens de Chiang começam a criar esses digientes como se fossem animaizinhos de estimação, mas logo veem neles algo como crianças humanas, porque são (com certas limitações, pois são inteligências sem corpo biológico) capazes de pensar, sentir emoções, fazer planos para o futuro, ter curiosidade pelo mundo.

A certa altura do processo, aliás, os pesquisadores conseguem fazer o upload dos digientes para os corpos de pequenos robôs dotados de sensores táteis, o que permite aos digientes sair do computador e andar pelo nosso mundo físico, experimentando texturas, tendo a noção de um espaço tridimensional, etc.

Surge então um episódio em que dois digientes, Marco e Polo, pegam uma briga feia e ficam zangados um com o outro. E eles pedem a Derek, o seu programador, que os remeta de volta ao “ponto de recuperação” (checkpoint) anterior à briga, para que ela possa ser apagada de suas memórias.

O checkpointé um recurso que temos no computador. Às vezes eu quero fazer no sistema uma mudança muito arriscada, que pode dar zebra. Tipo instalar um programa novo, muito complicado. Por precaução, faço o sistema “tirar uma foto” do seu estado completo nesse momento. Este será o checkpoint. Depois, instalo a novidade. Deu zebra? Peço para voltar ao ponto de recuperação, e – abracadabra!  Meu computador está igualzinho ao que era antes do problema.

Os digientes têm consciência disso, sabem que pode ser feito. E fazem seu pedido a Derek, quando este liga o computador e acessa a plataforma.

Os dois digientes desde então mal se falam, de modo que Derek sente um certo alívio quando eles vêm procurá-lo, juntos.
- É bom ver vocês dois juntos de novo. Fizeram as pazes?
- Não! – diz Polo. – Zangado ainda.
- Lamento ouvir isso.
- A gente quer ajuda – diz Marco.
- Muito bem. Em quê?
- Que leve a gente para semana passada, antes da briga.
- O quê?! – Essa é a primeira vez em que ele vê um digiente pedindo para ser levado de volta a um ponto de recuperação. – Por que querem isso?
- Não quero lembrar a briga grande – diz Marco.
- Quero ficar feliz, não quero zangado – diz Polo. – Você quer a gente feliz, certo?

Derek não sabe o que fazer. Ele acha que esta seria uma solução muito simplista, e que na verdade os digientes, se querem evoluir como criaturas pensantes e sentintes, precisam aprender a assimilar esses maus momentos, os desgostos, as brigas, as tristezas. Não é assim que os humanos fazem?

Eu estava nesse ponto (meu texto está no computador, não num livro impresso) quando interrompi a leitura para me deitar um pouco. Os digientes, que não têm corpos biológicos, não sabem que escritores ou programadores de software sexagenários precisam muitas vezes deitar numa cama de verdade para repousar a coluna-prestes.

Eu costumo alternar uma hora sentado no computador e meia hora deitado, lendo, e para isso tenho sempre junto do meu travesseiro dois ou três livros abertos na página certa, para que eu possa retomar a leitura de onde parei.

E nesse dia, mal terminei de ler o trecho acima, deitei e peguei meio ao acaso a Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), de Lima Barreto, e daí a pouco enveredei por este trecho, no capítulo 9, quando o narrador, de nome Augusto Machado, pega um trem para o subúrbio. Machado observa seus companheiros de viagem, escuta sua conversa e começa a achá-los meio ridículos (é um indivíduo solitário, hipercrítico, meio casmurro). E diz:

Deixei de observar os quatro curiosos personagens, virei o rosto e, pela portinhola, pus-me a ver a paisagem, os morros altos e azulados, o verde-claro das campinas, o verde-escuro das encostas, as fagulhas de luz, as hastilhas de alegria no ar, as palmeiras melancólicas .. Um dia viria que tudo isso havia de fugir dos meus olhos... Porque não sou assim como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco, que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações? Longe de me confortar a educação que recebi, só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez despeitos! Porque m'a deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria uma por uma as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise.

O desejo do narrador de Lima Barreto é o mesmo desejo dos digientes de Ted Chiang: voltar a um ponto de recuperação anterior que preserve uma parte básica de sua mente e memória, mas elimine certas fontes de sofrimento.

Se isto nos fosse possível, muitas pessoas viveriam assim, sem dúvida, dando cinco passos à frente e quatro atrás, retroagindo cada vez que algum acontecimento as magoasse. E voltando, sem dúvida, a cometer de novo os mesmos erros, cair nas mesmas armadilhas, transformando-se num boneco amnésico capaz de pisar cem vezes na mesma casca de banana, como certos comediantes do cinema mudo.

Vejo essa continuidade de espírito entre o romance brasileiro de 1919 e o norte-americano de 2010, e o próprio Lima Barreto, se tivesse acesso a este último, talvez se visse um pouco nele, sem estranhar sua ousadia especulativa.

Pois, afinal, umas poucas linhas adiante o próprio “Machado” recorre à ficção científica para explicar a amizade que nutre por seu mestre Gonzaga de Sá, e a identificação espiritual entre os dois:

Arrependi-me da maldição e reconciliei-me comigo mesmo. Havia de curar-me. Gonzaga de Sá não me falava, mas eu sentia que a metade daqueles pensamentos eram dele. A nossa amizade era tão perfeita, que dispensava palavras. Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comunicação, que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um pensamento, um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem intermediário algum, por via telepática.

Lima Barreto se refere, é claro, aos marcianos de The War of the Worlds (1898), de H. G. Wells.










4203) O cantador João Paraibano (26.1.2017)

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Estou por aqui, me entretendo com a leitura vagarosa de João Paraibano, o Herdeiro dos Astros(Teresina: Gráfica e Editora Halley, 2016), coletânea de versos e de depoimentos organizada por Ésio Rafael, Marcos Passos e Santanna O Cantador, em homenagem ao grande repentista, amigo de todos nós, falecido em 2014.

Conheci João Paraibano por ocasião do II Congresso Nacional de Violeiros de Campina Grande, em 1975, quando ele cantou duplado com um dos seus parceiros mais constantes, Sebastião Dias. Naquele Olimpo de repentistas no auge da arrancada para o sucesso, e que eu estava encontrando pela primeira vez, João não se destacava. Era tranquilo, baixinho, meio tímido, ainda mais jovem do que eu, e ficava em segundo plano diante de presenças mais vigorosas.

Foi somente com o passar dos anos, a repetição dos Congressos, e as noitadas em pé-de-parede que se prolongavam após as disputas, que pude vê-lo cantar mais solto, mais confiante, agigantando-se por trás da viola, ficando do tamanho dos versos que fazia.

No mundo dos cantadores existem várias divisões informais, tipo “os que são isso, os que são aquilo”. Uma dessas divisões é: “Os que cantam leitura, e os que cantam sentimento”. (Claro que qualquer bom repentista canta as duas coisas; essa divisão aponta apenas a ênfase de cada um.) João era um cantador de sentimento, de observação da natureza, de conhecimento das minúcias da vida no sertão, da compreensão psicológica das atitudes do homem, da mulher e da criança sertaneja.

O livro organizado pelos três poetas faz uma recolha valiosa de grandes improvisos, grandes glosas e episódios pessoais, além de uma série de testemunhos de amigos e parentes.  João está inteiro ali, mesmo descontando-se a tendência sertaneja para a hipérbole sentimental.

Meu parceiro Cavani Rosas, que naqueles idos de 1975 morava em Campina Grande e acompanhava os congressos de cantadores, fez a capa e as belas ilustrações a bico-de-pena do livro, que traz ainda um “porta retratos” de fotos de João, sua família, suas cantorias.

Muitos versos de João, para mim, surgem naquele território poético da observação da natureza e da paisagem humana, dos costumes, dos pequenos gestos das pessoas. Um simples registro, um flash, mas numa concentração poética semelhante à do haikai japonês, capaz de em três linhas evocar uma paisagem física, uma estação do ano, um momento de introspecção e meditação por parte do poeta que observa.

Alguns versos de João Paraibano:

Ainda lembro do cheiro
que minha mãe dava n’eu
da cor da primeira nota
que meu padrinho me deu
eu não peguei com vergonha
papai foi quem recebeu. (pág. 120)
Veja-se a delicadeza psicológica desse verso: o carinho materno misturado à lembrança de um momento em que o menino é admitido no mundo adulto dos homens, onde circula o dinheiro. E o fato do menino lembrar a cor da nota, não o valor. E a fluência dessas duas expressões tão nordestinas: “cheiro”, “com vergonha” (=encabulado, constrangido).

Quem vive numa prisão
leva a vida no desprezo
pede uma esmola a quem passa
nas mãos um cigarro aceso
pernas do lado de fora
e o resto do corpo preso. (pág. 98)
Aqui é a observação do comportamento social. Em Campina Grande eu já morei vizinho à Casa de Detenção (no apartamento que minha tia Adiza tinha na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Esta é uma foto precisa de como os presos passavam o dia: sentados no peitoril da janela gradeada, com as pernas para fora, e tirando onda, por cima do muro, com quem passava na calçada.

Fiz capitão na bacia
de feijão verde e farinha
quando o angu tava feito
mãe saía da cozinha
subia em cima da cerca
dava um grito e papai vinha. (pág. 49)
“Capitão” é o que na minha casa chamavam de “raposa”: feijão e farinha amassados juntos na mão, formando um bolo compacto para ser comido com a mão mesmo. E esse detalhe da mãe subindo na cerca para gritar pro marido (no roçado) que o almoço está pronto só me lembra uma cena de filme de Kurosawa ou de Andrei Tarkovsky.

Ao passar em Afogados
diga a minha esposa bela
que derramei duas lágrimas
sentindo saudades dela
tive sede, bebi uma
e a outra guardei pra ela. (pág. 54)
Aqui vale mais uma vez a delicadeza da imagem, a lágrima guardada para a mulher querida, como algo minúsculo e precioso. 

Meu passado foi assim
comendo juá banido
o vento dando empurrão
no lençol velho estendido
com tanta velocidade
que mudava a qualidade
que a tinta dava ao tecido. (pág. 123)
“Banido”, em nordestinense, é “estragado” – juá é tipicamente uma frutinha que se esparrama com exagero pelo chão, e as crianças acabam comendo qualquer um. A impressão visual da imagem do lençol sacudido pelo vento é o que Ezra Pound chamava de “fanopéia”, a evocação vívida, com palavras, de uma impressão visual. É uma variante e um enriquecimento do famoso verso de Manuel Xudu sobre o pião “que roda na ponteira / com tanta velocidade / que muda a cor da madeira”.

Vou pro meu sertão antigo
pra ver tapera sem centro
ver minha mãe na cozinha
cortando cebola e coentro
botando um prato no pote
pra não cair mosca dentro. (pág. 70)
Numa sextilha de rimas limitadas (“...entro”), o poeta retrata com simplicidade a cozinha de casa de sítio, o pote de barro com água num recanto. Geralmente coberto com uma tábua ou bandeja, com copos emborcados em cima; mas João enriquece a imagem ao supor um pote sem tampa que a mulher cobre mesmo assim com um prato qualquer.

Toda noite quando deito
um pesadelo me abraça
meu cabelo que era preto
está da cor da fumaça
ficou branco após os trinta
eu não quis gastar com tinta
o tempo pintou de graça. (pág. 124)
Aqui, vale a naturalidade com que “tinta” é rimado com “trinta”, e o tom grisalho (olha a fanopéia) é sugerido pela “cor de fumaça” em contraste com o “preto”. O verso bom é o verso simples em que tudo parece inevitável, parece que aquelas palavras sempre andaram umas junto das outras, e mesmo assim se conjugam de repente para produzir uma imagem pequena, mas nítida, concisa, memorável.












4204) Zé Agra e a Máquina Arrasadora (29.1.2017)

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Fiquei sabendo na tarde deste domingo, numa mensagem enviada por José Santos, o “Super-Zé” do futebol paraibano, do falecimento de José Agra, ex-presidente do Treze nos idos de 1974-75.

Zé Agra foi nosso presidente no ano do Cinquentenário (1925-1975) e marcou seu nome na história do Galo. Não somente por isso, nem pelo título de Campeão Paraibano de 1975 (dividido, num desses confusos tapetões do nosso futebol, com o Botafogo de João Pessoa), mas por uma das grandes arrancadas da história do alvinegro, que saiu de uma crise tremenda para se tornar vice-campeão estadual em 1974.

O campeonato daquele ano teria 4 turnos. O Campinense foi campeão dos três primeiros, já estava com a mão na taça. Tinha um ótimo time, e além do mais tinha a sua sempre eficientíssima equipe extra-campo trabalhando nos bastidores (juiz nenhum escapava). O Treze estava com salários atrasados e em crise quando Zé Agra assumiu a presidência, dias antes da estréia no quarto turno.

O novo presidente rodou o chapéu nas ruas João Pessoa e João Suassuna, saldou as dívidas (principalmente com os salários dos jogadores), e desencadeou uma campanha publicitária como nunca se viu no futebol paraibano.

Encorajado pelas primeiras vitórias (time com o bolso em dia corre mais; é uma coisa impressionante) ele emburacou numa série de entrevistas em que definia o time do Galo como “a Máquina Arrasadora do Futebol Paraibano”, o “Time de Gigantes”, etc.  

Afirmava que a torcida do Campinense era mixuruca, cabia numa carroça de burro. Com seu sotaque inconfundível (“o Treze é o maior time de futibó do mundo!”), ele levava nossa torcida à euforia e as torcidas adversárias à loucura.

Folclórico, falastrão, bem humorado, Zé Agra deu uma sacudida brusca num campeonato que já parecia decidido. As rendas dobraram. A torcida lotava todos os jogos (digo isso porque assisti todos).

Duas vitórias épicas seguidas deram ao Galo o título de campeão do quarto turno: 1x0 no Campinense (com gol de Marcos Itabaiana, que após o lance foi agredido com um soco e teve que ser hospitalizado) e 2x1 no Botafogo, no Estádio de Graça, em João Pessoa (gols de Fernando Canguru e Vandinho). E a gente lá, bandeiras e taróis em punho.

Tá cheio de gente aí que se lembra disso como se tivesse sido ontem.

Fomos para um jogo extra onde o Campinense, que jogava por um empate, venceu por 2x0 e se sagrou campeão de 1974.

No ano seguinte, Zé Agra formou uma equipe fantástica, um dos melhores times que o Treze já teve. Como técnicos, passaram por lá o ótimo Virgílio Trindade (ex-Nacional de Patos), o craque Miruca (ex-Náutico, ex-São Paulo) e o argentino Dante Bianchi.



Nessa época eu trabalhei por uns seis meses na secretaria do Treze, onde exercia as funções de datilógrafo, redator de contratos e pagador de vales, bichos e salários ao elenco. Zé Agra foi um dos patrões mais voluntariosos para quem já trabalhei. Toda dúvida eu corria para o centro da cidade, ao escritório dele no edifício Lucas. “Zé, a Federação exige o documento tal pro jogo de amanhã”. “Isso é frescura,” dizia ele, “precisa não.”

E tome uma noite em claro, ardendo em febre, pensando que no dia seguinte o Treze ia perder os pontos para o Santa Cruz de Santa Rita porque faltava o diabo do papel. Nunca aconteceu, mas os cabelos brancos continuam todos aqui.

Foi de Zé Agra a iniciativa de criar a Comissão dos Festejos do Cinquentenário do Treze, presidida por Hélio Soares, meu ex-professor no Colégio Estadual da Prata. Resolvemos fazer uma revista “pra desmoralizar a concorrência”, no caso o Campinense, que acabara de fazer uma revista comemorativa.



Meu pai e eu tomamos a frente na tarefa de redigir e pesquisar a revista. Cavani Rosas, artista plástico do Recife, morava em Campina na época: ele diagramou e ilustrou a revista inteira, e foi o criador do famoso Galo de chuteiras que ainda hoje ilustra tanta coisa relativa ao Treze. Eu vi esse galo sendo criado na prancheta da casa onde ele morava, em Bodocongó, vizinha à UFPB. Também se envolveram na revista José Umbelino Brasil, Rômulo e Romero Azevedo, Roberto Coura (fotógrafo) e outros.



Zé Agra rodava Campina pra cima e pra baixo no seu fusquinha. Eram os tempos heróicos em que cartolas botavam dinheiro do próprio bolso para pagar as dívidas do time, fosse material esportivo, com Fuba Véi da Casa Sport, fosse na lanchonete de Vamberto, perto da Praça do Trabalho.

Fiquei sabendo hoje da despedida de Zé Agra e encontrei aqui, no imprescindível saite RetalhosHistóricos de Campina Grande, um valioso áudio de mais de 1 hora com Zé Agra rememorando esses tempos e me produzindo um nó na garganta. Saudade de um tempo em que eu era tão inocente da realidade do mundo que torcia por times de futebol.

Um brinde ao nosso eterno presidente, Zé Agra, “trezeano autêntico”.






4205) As máscaras e os esqueletos de James Ensor

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Um dos melhores investimentos da minha adolescência foi a coleção em fascículos Gênios da Pintura, que eu rachava com minha irmã Clotilde.  Eram álbuns fininhos (cerca de 30 páginas, acho), mas com tamanho grande, papel bom, e boa reprodução de quadros dos mestres. Os sebos estão cheios deles hoje em dia.

Fiquei conhecendo melhor alguns artistas que eu já sabia quem eram, como Leonardo da Vinci e Van Gogh; mas o melhor de coleções baratas, acho, é que elas nos dão a chance de investir no desconhecido.

É como livro em sebo. Às vezes eu estou numa livraria chique e vejo um livro de capa estranha, título esquisito, de autor desconhecido. Folheio, leio algo que me chama a atenção... mas o livro custa 70 reais. Adeus, livro!  Se está num sebo, custa 10. Eu levo. Pago pra ver.

Paguei pra ver um fascículo de um tal de James Ensor que durante alguns meses vertiginosos tornou-se meu pintor preferido (foi destronado quando chegou o fascículo de Max Ernst). Ensor era um belga que pintava monstros, máscaras, criaturas bizarras. Seus quadros prefiguram (para mim) o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch e os contos de Lília Pereira da Silva. São situações enigmáticas, num clima indefinível e ameaçador, vividas por criaturas grotescas que se comportam de modo absurdo. Tem coisa melhor no mundo?!

Aliás, a Bélgica tem uma concepção do Fantástico muito peculiar, embora fique, injustamente, meio à sombra do Fantástico francês. As pinturas de Paul Delvaux, os filmes de seu filho André Delvaux, os contos de Jean Ray (autor de “Malpertuis”), a ficção científica de J. H. Rosny Ainé, todos compartilham um clima semelhante. Uma boa porta de entrada em português é a maciça antologia Entre o real e o surreal: antologia da literatura belga de língua francesa, ed. Marc Quaghebeur, Zilá Bernd, Leonor Lourenço de Abreu e Robert Ponge (Porto Alegre: Tomo Editorial, 2009).



O forte de Ensor (1860-1949) são seus quadros a óleo, mas era um artista versátil. Anos atrás vi na FAAP (São Paulo) uma exposição riquíssima com suas gravuras e águas-fortes, uma vertente completamente diversa, mas também roçando vez por outra no Fantástico.

“Esqueletos disputando um enforcado” (1891). Faz meio século que eu penso nesse quadro. Quem são, o quê são, essas criaturas, esqueletos vivos trajados com roupas de mulheres velhas, brandindo vassouras e guarda-chuvas, numa altercação violenta e trôpega, aprontando o maior barraco numa sala de portas escancaradas enquanto a vizinhança, igualmente carnavalesca e monstruosa, se deleita espreitando pela porta?



São talvez os mesmos que se reúnem em torno de um fogareiro em “Esqueletos se aquecendo”, ossadas vestidas com roupas extravagantes e cômicas que se reúnem em torno de um aquecedor. Um deles usa cartola e empunha um violino, como um comediante de music-hall. Outro (uma mulher?) tem um xale azul nos ombros e estende as mãos, para aquecê-las. Há outro esqueleto caído no chão, tendo ao lado uma paleta de pintor; ou talvez não seja um esqueleto completo, apenas a caveira, um capote comprido e as botas, como se o frio lhe tivesse derretido os ossos.



Esqueletos e máscaras são dois dos temas preferidos dele. As máscaras são sempre toscas, meio ameaçadoras, meio ridículas, como aqueles figurantes de filmes de Fellini ou de Pasolini em cuja fisionomia só acreditamos porque sabemos que não são atores caracterizados, são gente que é assim mesmo, e foram pegados na rua para nos assombrar por alguns segundos e sumir para sempre.



“O assombro da máscara Wouse” (1889) mostra uma mulher rubicunda e porcina entrando num aposento onde se vê, mais uma vez, uma caveira caída ao chão no meio de roupas vazias. “As máscaras escandalizadas” (1883) mostra um quartinho de pensão barata bem dostoievskiana. Um homem vestido e mascarado está sentado a uma mesinha, tendo uma garrafa à frente; a porta se abre e entra uma velha mascarada, empunhando um porrete. Escrevi aos 18 anos um continho surrealista em que batizei esses personagens de Tuunc e Géi-éi.



Seu painel mais famoso deve ser “A entrada de Cristo em Bruxelas” (1889) onde ele mostra Cristo em seu burrinho cercado por uma multidão de militares, autoridades, políticos, burgueses, fanfarras, bandeiras.



De onde vem isso?  Não sei.  Talvez Umberto Eco, em sua Histórioa da Feiura, tenha alguma coisa a nos dizer. A pintura de Ensor satisfaz talvez “essa necessidade do horroroso” que Augusto dos Anjos registrou tão bem; se este não fosse um poderoso impulso do inconsciente coletivo não teríamos as animações de Jan Svankmajer ou de Chris Cunningham, não teríamos o cinema de Luis Buñuel, não teríamos os painéis de Hieronymus Bosch, não teríamos os contos de Kafka nem os Edgar Poe, não teríamos o surrealismo francês ou o expressionismo alemão.


Ao contrário de muito do “horroroso contemporâneo”, no entanto, a pintura de Ensor não vem carregada de violência nem de sadismo. Seu horror tem algo de circo e de comédia; é um horror caquético e balbuciante, que num momento nos dá pena, em outro nos dá repulsa, e mais adiante provoca uma gargalhada. É uma paleta híbrida da experiência humana que me ajudou muito a entender desde cedo a mente alheia, as emoções alheias, a mesquinhez alheia, a ratonice alheia – e as minhas próprias. E, apesar dessa extensa lista de comparações enumeradas mais acima, é uma experiência que até hoje só encontrei nas máscaras e nos esqueletos de Ensor.

"Auto Retrato com Máscaras", 1899:











4206) Menções ao cordel na literatura (3.2.2017)

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A pesquisa sobre a história da literatura de cordel no Brasil tem dois caminhos.

O primeiro, mais importante para nós, nordestinos, parte de Leandro Gomes de Barros e os folhetos que ele começou a imprimir em meados da década de 1890, no Recife. É a raiz da nossa literatura popular impressa, porque versos recitados e copiados à mão já circulavam desde muito antes, usando os mesmos temas e as mesmas características formais (estrofes, rimas, etc.) que os folhetos iriam usar. Muitos destes versos estão em obras como Cantadores e Poetas Populares, de F. das Chagas Batista (1929, reeditado em 1997 pela UFPB, João Pessoa), que transcreve versos dos mestres do Teixeira na segunda metade do século 19.

O segundo caminho está plantado no Rio de Janeiro, e diz respeito aos folhetos impressos em Portugal e trazidos para cá ao longo de todo o século 19, como consequência da vinda da corte imperial para o Rio em 1808. São muitas as referências à venda de livretos populares de meados de 1850 em diante. O termo “cordel”, tão debatido pelos estudiosos do assunto, denota o uso de expor dessa forma não somente os folhetinhos em versos, mas (penso eu) todo tipo de livro.

Em seu Como e Por Que Sou Romancista (1873), capítulo VII, José de Alencar usa esta expressão ao contar os percalços de publicação do seu O Guarani (1857), e diz:

A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois de concluída a publicação em folhetim, foi comprada pela livraria do Brandão, pôr um conto e quatrocentos mil réis que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares, porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o exemplar a 2$000. 

Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais nos belchiores que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde o tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença pública, senão o pretensioso desdém da roda literária, o tinha deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas.

A expressão “a cavalo no cordel” descreve bem o uso dos vendedores: um cordão esticado horizontalmente e os livretos, abertos ao meio, “montados” em cima do cordão.

O termo “belchior” usado por Alencar refere-se aos comerciantes de coisas usadas, que tanto podem ser roupas (vamos lembrar Noel Rosa: “O meu chapéu vai de mal a pior, e meu terno pertenceu a um defunto bem maior – dez tostões no belchior!”, O Orvalho Vem Caindo) como também livros – o Dicionário Houaiss registra o termo como “proprietário de sebo” e “alfarrabista”. Daí a queixa de Alencar.

Os “arcos do Paço” a que o escritor cearense se refere são provavelmente os arredores do Paço Imperial, na praça XV de hoje, como o Arco do Teles, por onde ainda passo eu de vez em quando.

Aquele largo servia como foco de um comércio popular dessa natureza, como confirma Machado de Assis no conto “Uns braços” (1885), recolhido em livro em Várias Histórias (1896), e cuja ação é devidamente datada:

Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. (...)

É a história de um rapaz do interior que vai estudar no Rio, morando de favor com um casal mais velho, o que gera uma atração entre ele e a dona da casa, situação parecida com a do conto clássico Missa do Galo (em Páginas Recolhidas, 1899).

Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. 

Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. 

Machado confirma vários detalhes de Alencar, e é bom que “Uns braços” seja explicitamente situado por ele em 1870, o que permite imaginar que a ação descrita por ele era comum nessa época. Machado usa por duas vezes o termo “folheto”. Indica que foram comprados no Largo do Paço. Lembra que eram “contos de outros tempos” e que eram “comprados a tostão”, ou seja, estavam ao alcance da bolsa de um estudante pobre.

E o título lembrado por ele é justamente um dos clássicos, a História da Princesa Magalona, conto de origem francesa minuciosamente estudado por Câmara Cascudo em seus Cinco Livros do Povo (Ed. José Olympio, 1953), e que Cervantes também menciona de passagem no capítulo XL da segunda parte do Dom Quixote, no episódio do cavalo voador de madeira.

Cascudo refere a existência de edições portuguesas do romance em 1625 e 1783, além de numerosas outras em datas posteriores, até o surgimento das versões brasileiras da mão de vários autores, entre eles o inevitável João Martins de Athayde. E observa também que as versões portuguesas eram em quadras (ABCB) e as brasileiras em sextilhas (ABCBDB).

(continua)








4207) Ariano Suassuna e a quarta parede (7.2.2017)

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No teatro (e às vezes no cinema) chama-se de “quarta parede” a parede invisível que separa o palco da platéia. É a barreira da ficção. Sabemos que nada daquilo aconteceu de verdade, que os personagens e os fatos são fictícios, mas nada nos impede de suspender voluntariamente a descrença e mergulhar no drama humano que parece estar acontecendo ali, a poucos metros de nós.

Chama-se então de “quebrar a quarta parede” quando, por exemplo, o ator se volta para a platéia e diz alguma coisa que quebra a ilusão ficcional e nos traz de volta à realidade da situação, ao fato de que somos espectadores que pagaram para ver uma coisa encenada.

Alguns o fazem com intuito filosófico, para fazer o espectador refletir. O teatro de Bertolt Brecht usava muitas vezes esse recurso para obter o efeito que ele chamava de distanciamento ou estranhamento. “Ei, cara! Acorde! Isso não é verdade! Somos atores! Não perca o foco!”. 

Outros, como mero recurso engraçadinho – os famosos “cacos”, ou piadinhas preparadas de antemão, que os atores de comédia de vez em quando soltam no meio das falas, referindo-se a fatos políticos da véspera ou a pessoas presentes na platéia.

Nos espetáculos populares como o Teatro de Mamulengo ou as Comédias Circenses essa quebra é muito frequente, pelas próprias circunstâncias meio atabalhoadas da apresentação, e pela presença de um público que gosta de participar com gracejos, tiradas, provocações, etc.

Na literatura isso adquire muitas formas.  Vou dar um exemplo pouco conhecido, do romance de Ariano Suassuna O Rei Degolado: As Infâncias de Quaderna (1976-77), nunca publicado em livro, e que apareceu na forma de folhetins semanais no Diário de Pernambuco, do Recife.

O livro é uma continuação do Romance da Pedra do Reino (1971), e conta o interrogatório a que o herói e narrador, D. Pedro Dinis Quaderna, preso na Cadeia pública, está sendo submetido pelo Juiz Corregedor da capital do Estado, que veio investigar uma série de crimes e de sublevações armadas acontecidas em Taperoá.

No Folheto XXXVII, “O canto e a coroa da raça”, Quaderna está narrando ao Corregedor um episódio de sua infância, quando foi raptado por um bando de ciganos e depois acabou sendo resgatado pelo cangaceiro Antonio Silvino, que o levou de volta para a fazenda da sua família. Diz Quaderna ao Juiz:

(...)
Tanto assim que, anos depois, quando foi aprisionado pela Polícia – ao ser ferido num combate – Antonio Silvino mandou esse Chapéu-de-couro a Dom Virgolino Ferreira, o Lampião, passando-lhe, desse modo, o título, e ungindo-o como Rei do Cangaço, como Saul fez com Davi. E deu-lhe [sic – mas deve ser “dou-lhe”]uma informação a título de curiosidade, Sr. Corregedor: quando Lampião foi degolado, estava com esse mesmo chapéu-de-couro – ou melhor, com esta sagrada Coroa sertaneja, feita de couro e estrelada de prata!
O Corregedor me interrompeu de novo, com aquelas manias de exatidão dele:
– Senhor Dom Pedro Dinis Quaderna, o senhor aí, na sua exaltação cavalheiresca e régia, acaba de cometer um engano: pode ser que Lampião use esse chapéu-de-couro que foi de Antonio Silvino, mas ele não foi degolado não, está vivo!
Dei uma pancada com a mão na testa, recordando-me e voltando ao raso real:
- Ai, é mesmo, Sr. Corregedor! Muito obrigado pela advertência, porque minha Epopéia é rigorosamente histórica, podendo, no máximo, haver nela uns dez ou doze anacronismos, porque aqui, na Cadeia, não posso consultar a cada instante meu arquivo particular de Historiador! Mas é verdade, o senhor tem razão! Estamos a 14 de Abril de 1938 e Lampião só será degolado daqui a quatro meses, na Fazenda Angicos, em Sergipe, no mês de Agosto! É que, no meu Juízo profético de Epopeieta, meus olhos cegos de Édipo-sertanejo veem o Passado, o Presente e a Futuro como um todo, pois para mim, como para Deus, o Tempo é um só!

Quaderna é um desses narradores que se safam de qualquer problema na maior cara-de-pau. E o faz porque mantém, do princípio ao fim desses enormes romances, numa rara façanha literária, esse tom grandiloquente-megalomaníaco e satírico-mangatório a respeito de si mesmo.

Deixando Quaderna de lado, podemos nos perguntar: por que Ariano publicou este trecho?

Me parece muito claro que numa primeira redação do capítulo o autor deixou-se arrastar pelo entusiasmo, junto com Quaderna, e botou a informação anacrônica, sem perceber a discrepância de datas. Numa releitura, veio-lhe à mente que àquela altura da sua narrativa Lampião estava vivo ainda.

Teria sido mais simples, claro, cancelar o texto e passar adiante. Aliás, Ariano Suassuna comentou, em numerosas entrevistas e artigos, que seu método de trabalho consistia em escrever uma primeira versão à mão, depois passar a limpo na máquina de escrever, depois rever essa cópia à mão, fazendo correções e adendos, depois datilografar de novo, quantas vezes fosse preciso.

Suponho que numa dessas revisões o erro de data lhe saltou aos olhos, mas mesmo assim ele resolveu, em vez de eliminar tudo, deixar o erro e criar uma quadernice em cima dele.

Esse livro estava sendo escrito para aparecer em folhetins dominicais de jornal, numa época em que Ariano estava ocupadíssimo, envolvido com mil afazeres. Tinha sua cadeira da Universidade Federal de Pernambuco, o cargo de secretário de Educação e Cultura do Recife (1974-78), a supervisão da Orquestra Romançal Brasileira (criada em 1975) e do Balé Armorial do Nordeste (criado em 1976).

Posso imaginar o corre-corre em que esses folhetins eram produzidos, e a piada de Quaderna sobre não poder consultar a toda hora seus arquivos porque está na cadeia deve refletir em alguma maneira a roda-viva do autor.

Mas ele deixou o erro, e curtiu em cima. Porque isso tem tudo a ver com o folhetim. Todo mundo sabe que os folhetins de Charles Dickens, de Balzac e de todos os outros eram escritos assim, de afogadilho, a toque de caixa, ao correr da pena. Cheios de erros de continuidade, informações faltando, nomes de personagens trocados, ações interrompidas e nunca mais retomadas, e assim por diante.

Quando chegava o momento da publicação em livro, esses erros eram corrigidos e aí está, para não me deixar mentir, uma próspera sub-indústria acadêmica especializada em comparar uma versão com a outra.

O folhetim é um exemplo muito bom de prosa improvisada. O veterano repentista Zé de Cazuza diz que todo verso é feito de improviso, inclusive o verso escrito; só que no verso escrito o poeta tem a chance de voltar atrás e dar uma ajeitadinha, mas o verso cantado... saiu, acabou-se.

Os erros de improvisação do folhetim eram extirpados no livro, e cabe inclusive a dúvida: Ariano cortaria esse trecho, se As Infâncias de Quaderna tivessem saído em livro? Eu maldo que não. Porque é um desses exemplos saborosos de um Narrador tão onipotente que fatura a seu crédito os seus próprios enganos. Quaderna é um herói picaresco do tipo teflon: nele nenhuma crítica gruda, porque ele é o primeiro a concordar com o crítico, falar mal de si próprio, e arrematar tudo com um nó onde ele volta a ser – modestamente, como sempre, como no presente caso – igual a Deus.











Sagarana: "O Duelo"

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(ilustração de Poty para Sagarana)

Este era o título do filme que Paulo Thiago dirigiu em 1973, adaptando o quarto conto do livro de Guimarães Rosa, cujos 60 anos comemoramos recentemente. Estou comentando devagar os contos do livro, pela ordem. Um dos temas que os costuram é o tema da ida e volta, já prenunciado numa das epígrafes do próprio livro (“for a walk and back again”).  Em “O Duelo” esse tema ganha um desenho novo, inclusive com uma nova epígrafe em que cabe a uma piranha dar “um pulo de ida-e-volta”.

Porque “O Duelo” é a história de dois homens armados, cada um deles em busca do outro para matá-lo, mas é uma busca vagarosa, em que os dois vão e vêm a cavalo de vila em vila, sem pressa, colhendo pistas, pedindo informações, largando manobras de despistamento, num jogo de negaceios em que ambos estão literalmente indo e voltando o tempo todo.

É o que, segundo um comentário de Jorge Luis Borges, Julio Verne chamava de “duelo à americana”: dois homens juram-se mutuamente se morte, armam-se, preparam-se e se embrenham num bosque, um à caça do outro:


Fosse isto aqui uma aula e eu passaria como dever de casa a tarefa de rastrear os lugarejos que os dois pistoleiros percorrem, discriminando (se possível) quais são os lugares reais e quais os inventados, porque todos fazem parte da saborosa toponímia rosiana: o Borrachudo, as Tabocas, as Catorze-Cruzes, o Dêcámão, a Piedade do Bagre, o Cuba, a Sela do Ginete, o Mosquito, o Paredão do Urucuia, as Abóboras... 

Quem sabe uma busca como essa não descobre que os dois cavalgarilhos acabam traçando um símbolo esotérico qualquer, com seus vais e seus vens, tal como o nome escrito ruas afora pelo traçado das caminhadas do personagem de Paul Auster na “Trilogia de Nova York”? Com Guimarães Rosa, desconfie-se de tudo!

A história: Turíbio Todo pega no flagra sua mulher Dona Silivana (que “tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta”) em plenos folguedos com um tal de Cassiano Gomes, “ex-anspeçada do 1º. pelotão da 2ª. companhia do 5º. Batalhão de Infantaria da Força Pública”. Vê sem ser visto; a prudência pode mais do que a revolta, e Turíbio, que é um capiau papudo e solerte, espera pelo dia seguinte, quando embosca o desafeto e planta-lhe à distância uma bala na nuca.

Quis o Roteirista do Mundo que o vulto alvejado, de longe e de costas, fosse o irmão de Cassiano, muito parecido com ele, e após o enterro a quase-futura-vítima já entendeu tudo e começa os preparativos para caçar o marido metido a brabo, que à essa altura já deu às de vila-diogo e se embrenhou sertões adentro, bem amontado.

E lá vão os dois, cada qual com seus armamentos e seus planos, costurando os vales, prontos para o entrevero, porque, claro, “quem puder mais é que vai ter razão”. Fazem ziguezagues, pegam pistas que não dão em nada, “e, perto do Saco-dos-Cochos, eles cruzaram, passando a menos de um quilômetro um do outro, armados em guerra e esganados por vingança”.

Quem conhece o Grande Sertão: Veredas conhece o lado épico e heróico da violência em J. G. Rosa.  Este lado está presente, em Sagarana, no último conto, “A Hora e Vez de Augusto Matraga”. Mas o que tantas outras vezes aparece na obra do mineiro é o lado não-épico e não-heróico, a violência como uma brutalidade pequena, de irrompe no cotidiano e em questão de segundos desgraça uma vida, às vezes duas.

Há um longo interlúdio no meio do conto: o encontro de Cassiano e depois de Turíbio Todo com Chico Barqueiro, que faz travessia de margem a margem do rio, um encontro que começa com uma equivocada troca de tiros entre eles. Chico dialoga primeiro com um, que vai embora, depois com o outro, a quem atravessa na balsa.

O ir e voltar no balseiro, sempre rumo à “outra banda do rio” dá-lhe uma posição estratégica na narrativa, de ser ponto-atrator de um encontro que por um triz não se cumpre. Durante a travessia, o barqueiro fala, fala, sempre de outros assuntos. Turíbio, nada. Até que: “A terra veio avançando. Encostaram no abicadouro. Turíbio pagou”.

A narrativa é toda polvilhada dos aforismos, provérbios e ditos sentenciosos de que Rosa era mestre, não apenas de ouvido mas de imaginação, como quando Turíbio Todo, depois de cruzar dois rios seguidos, refuga diante de um terceiro, e afirma, como quem lembra um mote: “quem passa três rios grandes esquece o seu bem-querer...”

O bem-querer dele, Dona Silivana, “a mulher fatal da história”, continua se encontrando com Cassiano Gomes, que regressou ao arraial ao sentir o agravamento de um mal cardíaco que motivara seu desligamento da polícia. Os desencontros, principalmente aquele patrocinado passivamente pelo barqueiro, acabam esmorecendo a perseguição mútua, pois, enquanto Cassiano retorna, Turíbio parte para São Paulo, talvez com o mesmo sonho irrealizável do Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido Pródigo”.

Cassiano vende o que tem e parte para uma última visita à mãe, que mora longe. Vai parar num lugarejo “onde a gente não tinha vontade de parar, só de medo de ter de ficar para sempre vivendo ali”. O coração afracado o cansa. Ele faz pouso, faz amizade com um capiau baixinho, dá-lhe dinheiro, salva-lhe o filho doente, torna-se padrinho.

E nas vascas de morrer tem uma longa conversa com o capiau, Timpim  Vinte-e-Um, conversa tão secreta que nem o autor conseguiu escutá-la:

Mandava o dinheiro para a mãe? Não. Mandou vir o Timpim, para nele rever a boa ação. Conversaram. Depois o moribundo disse:
– Esse dinheiro fica todo para você, meu compadre Vinte-e-Um...
Aí, tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o Céu.

Turíbio toma ciência do passamento do desafeto e volta de São Paulo; será sua última volta. As cidades grandes aparecem na obra de Guimarães Rosa sempre indiretamente, através de seus reflexos nas pessoas (Lalino Salãthiel é um dos melhores exemplos), e o mesmo se dá com o papudo Turíbio:

Saltou do trem também com uma piteira, um relógio de pulso, boas roupas e uma nova concepção do universo.

Um capiau concebendo o universo! Eu não imagino uma liberdade como essa num texto de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, José Américo de Almeida ou José Lins do Rego. Não que esses sejam fracos, mas é que trabalhavam num quadro limitado de referências regionalistas. Guimarães Rosa explodiu o quadro e o recompôs num quadro muito maior, onde cabia tudo que ele próprio sabia. Seus matutos vivem num mato muito maior e mais visível.

Mas pobre do Turíbio, não tem quadro, mesmo recomposto, onde o Destino das tragédias gregas não esteja de emboscada, mesmo que seja na figura de “um cavalinho ou égua, magro, pampa e apequirado, de tornozelos escandalosamente espessos e cabeludos, com um camarada meio-quilo de gente em cima”.

O autor, sem revelar o nome do capiauzinho (que a essa altura o leitor mais obtuso terá adivinhado) o faz acompanhar Turíbio ao longo de algumas páginas, conversando, picando fumo, aproximando-se cada vez mais do inevitável desfecho, até que:

– Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!

E Turíbio, assustado pelo imprevisto da coisa, “sentia o medonho que é a falta de tempo para a gente poder pensar”, a vertigem do “No Time To Think” que Bob Dylan encapsulou numa canção sobre os últimos segundos de vida de um guerreiro.

Turíbio sente a queda da Morte sobre si e ainda tem um último reflexo de valentia:

E levantou a mão à testa, se benzendo, com voz gritada, em que o choro já começava a tremer:
– Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém!... Padre nosso...
Mas, não! Assim como um carneiro, não! Curvou de banda e puxou o revólver, e foi um golpe de rédeas e outro de esporas, fazendo o cavalo se empinar.
Mas a garrucha não negou fogo. Turíbio Todo pendeu e se afundou na sela, com uma bala na cara esquerda e outra na testa. O cavalo correu; o pé do defunto se soltou do estribo. O corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado.

“O Duelo” é na verdade a história de um duelo que não chega a acontecer, porque Turíbio atirou somente no irmão de Cassiano, e Cassiano não atirou em ninguém, apenas delegou a Timpim Vinte-e-Um o encargo de fechar o circuito e empatar o jogo mortal. Numa hipotética antologia intitulada Contos de Vingança e Justiçamento, esta história caberia com louvores.








4209) Contracapa de Flickr (16.2.2017)

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(imagem: www.dorar-aliraq.net)

&  não existe nenhuma lata de lixo cheia, no mundo inteiro, onde não exista alguma coisa que valia a pena ter guardado 

&  é como aquele cara que para de fumar aos noventa anos e fica cheio de esperanças 

&  eu não sou vampiro, mas reconheço que é difícil resistir a uma jugular suculenta 

&  um adulto fica fascinado pela catedral de Notre Dame; uma criança, pelo corcunda 

&  aquela sensação de chão tremendo com a aproximação de exércitos 

&  certas alianças políticas duram o tempo de uma pedra de gelo numa dose de Old Parr 

&  a gente não escreve o que quer, e sim o que vem 

&  ele tinha medo do abismo, precisava de alguém que pegasse na sua mão para pularem juntos 

&  pois é, amigo, tá uma crise de terra enjeitar defunto 

&  boa parte do meu baixo-astral seria dissipado caso se confirmasse a existência de centopéias devoradoras de moscas numa lua de Júpiter 

&  a certas mulheres basta-lhes erguer os braços para o alto e é como se portas se abrissem de par em par 

&  inventar uma casa cuja fachada, como um rosto, se altere em função do que acontece lá dentro 

&  tem gente que sobe na vida com a velocidade de quem tá descendo, e quando a gente vê, tava 

&  se não tivéssemos joelhos e cotovelos não existiria a civilização como a conhecemos 

&  a vida é um plano sequência sem roteiro e sem ensaio 

&  foi uma daquelas paixões que não chegam a gerar uma amizade e acabam caindo fora 

&  certos ideólogos vociferantes acabam sendo um argumento em favor dos manicômios à antiga, com porão e palha suja 

&  tem certas coisas que a gente vê que só pode mesmo dizer: adeus, mundo 

&  mais importante do que produzir a inteligência artificial seria reduzir a burrice natural 

&  a droga é uma substância para nos fazer achar que sem ela a vida é uma droga 

&  é mais fácil levar multidões à rua do que mandá-las de volta para casa 

&  abram caminho para os Legisladores do Irrelevante, os Fiscais de Janela, os Carrascos da Esquina, os Estilingues da Vidraça Alheia 

&  na política e na meteorologia tudo parece inevitável depois que acontece 

&  é preciso inventar uma Liga dos Sub-Heróis dotados de sub-poderes 

&  nada nos inspira tanto a um alto padrão de ética e moralidade do que examinar a vida alheia 

&  poesia é como má notícia, basta pensar nela o tempo todo e acaba acontecendo 

&  o crime organizado e as torcidas organizadas levam a crer que o mal do mundo é a organização 

&  não sou tão rico que precise fingir que sou mais pobre, nem tão pobre que precise fingir que sou mais rico

&  a memória é um filme expressionista com áreas de luz estourada e áreas de total escuridão 

&  a vida é uma sessão de cinema onde você entra na metade e vai ter que sair antes do fim 

&  a Ciência em seu confronto com a Religião, a Política e o Dinheiro – tão pequenina, tão corajosa 

&  tinha um macaco na janela me filmando com o celular







4210) Sobre a série "Black Mirror" (20.2.2017)

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Vi alguns episódios da série Black Mirror, que passa no Netflix. Vi, principalmente, a terceira temporada inteira, seis episódios. É uma série de ficção científica, e sendo a FC o que é, é preciso discriminar um pouquinho quais são os ingredientes.

É como dizer: “salada de frutas”. Todo mundo sabe o que é salada de frutas. Mas pode ser uma salada tipo “banana, mamão, maçã, abacaxi” e pode ser uma salada tipo “banana, laranja, uva roxa, pera”. Meio diferente, né?  (E ainda tem a famosa “Salada de onze frutas: dez bananas e uma laranja”).

Quais são os ingredientes que tornam Black Mirror uma série de FC?

1) Especulação tecnológica: uma leve extrapolação dos mecanismos tecnológicos e industriais do presente para imaginar em que eles poderiam resultar num futuro próximo;

2) Especulação sociológica: um foco não na tecnologia, mas na sociologia. A série não desce a muitos detalhes sobre como aqueles recursos high-tech foram obtidos, mas se focaliza o tempo todo nas consequência humanas e sociais. (Sim, tem histórias de FC que explicam tintim por tintim como funcionam as máquinas do ano 2500 mas pressupõem que as pessoas e as relações entre elas permanecem as mesmas.)

3) Um clima distópico, de “pesadelo inevitável aproximando-se”, que não pertence necessariamente apenas à FC, mas sempre esteve ligado a ela desde Huxley e Orwell até Burgess e Ballard.

Os episódios são competentes, alguns com efeitos especiais de ótimo nível, e sendo uma série londrina nos leva por ambientes urbanos menos familiares (pelo menos pra mim) do que as avenidas novaiorquinas ou californianas de sempre.

Vendo essas séries britânicas (tem a Sherlock também) de vez em quando penso: “Uau. Isso é uma rua de verdade. Esse troço aí deve existir mesmo, ninguém ia inventar isso só para colocar ao fundo de um plano de duas pessoas atravessando um sinal”.

Acho a interpretação dos atores meio forçada, um pouco enfática demais, fazendo muita força para deixar as coisas claras para o espectador, “olha, estou nervoso”, “olha, estou apaixonado”, “olha, estou concentradíssimo no que estou fazendo”. Problema das séries britânicas? Não sei, vai ver o problema é meu, porque tenho sentido a mesma coisa na boa série policial cubana-espanhola Quatro Estações em Havana.

Nos episódios que eu vi o tema predominante é a manipulação dos indivíduos através desses gadgets que teoricamente entram na vida dele prometendo-lhe mais liberdade, mais individualidade. Rola essa ilusão, no começo. Depois, ele começa a ver que está sendo arrastado por uma ventania que não controla.

Na temporada 3, “Nosedive” é uma alfinetada em todo mundo que já ficou rolando tela numa rede social e contando quantas curtidas, comentários e compartilhamentos recebeu, além de bajular socialmente os bem-cotados no ranking e evitar com discreção os de popularidade reduzida. Ainda não são muitos os filmes sobre os ranqueamentos simbólicos das redes sociais. Este aqui vale mais pela premissa do que pela finalização.

“Playtest” é um desses filmes sobre realidades virtuais onde, depois que o personagem entra, tudo pode ser real e tudo pode ser continuação do videogame. Depois de quebrada a primeira barreira, ninguém sabe mais onde é o “chão”: por mais que vejamos o personagem
voltar à vida normal que tinha antes, quem nos garante que ele ainda não está “lá dentro”?

Fica parecendo aqueles desenhos tipo Coiote & Papaléguas em que os personagens arrancam da própria cabeça dezenas de máscaras, sucessivamente, dizendo: “Era mentira! Eu sou na verdade este aqui!”  Ou seja: o tipo da narrativa que facilmente descamba para a diluição de si mesma. Equivale moderno dos contos de 1870 que terminavam dizendo: “...e ele descobriu que tinha sido tudo um sonho!”.

A série é concebida e escrita por Charlie Brooker, que tem no seu currículo alguns episódios de polêmicas e de acusações de material politicamente incorreto. Esse viés atravessa vários episódios da série, que estão a um passo do mau gosto ou da crueldade gratuita.

Brooker parece um roteirista adequado para explorar esses limites do que é permitido à mídia ou às redes sociais. Tem (me pareceu) um lado meio Vince Gilligan e outro lado blogueiro-de-escândalos.

Episódios como “Shut Up and Dance” mostram a possibilidade de uma manipulação eletrônica de pessoas levando-as a cometer desde atos gratuitos até crimes, através de chantagens anônimas e monitoração on-line permanente. É o sonho de vilões do passado como Fantomas ou Fu Manchu, realizado pelas tecnologias digitais.

Um conto de Bruce Sterling, “Maneki Neko” (1999) já explorava de maneira mais leve esse comportamento aparentemente demencial onde a pessoa A é comandada a praticar um gesto que reflete em B, este faz algo mais que reflete em C e assim por diante. Há um “mastermind” que controla tudo, mas as pessoas que executam os gestos individuais não sabem por que foram ordenadas a fazer aquilo.

A série é polêmica e pode ser vista em paralela com documentários como Eis os Delírios do Mundo Conectado(“Lo and Behold, Reveries of the Connected World”, 2016) de Werner Herzog, que explora aspectos tecnológicos e sociais do mundo online.

Um capítulo do filme de Herzog explora o lado tenebroso da web ao descrever a crise da família Catsouras, quando uma de suas filhas morreu num acidente e fotos do seu corpo mutilado foram viralizadas na Internet. Não só isso: as pessoas não se limitavam a ver as fotos, preparavam mensagens de ódios contra os pais (sem nem conhecê-los) usando a foto de filha. “Por que? Para que?”, perguntam-se eles, e também Herzog.

Black Mirroré uma dessas séries pessimistas em que não apenas acontecem coisas ruins às pessoas, mas sempre saímos de um episódio com a sensação de que a humanidade não deu certo, e que isso foi justo, porque ela não presta. É uma forma atual de decadentismo, diferente do decadentismo moral-sexual dos anos 1880. É um decadentismo sádico-sociopático, não o da depravação sexual, mas o da aviltação humana como um valor por si mesma.

Não deixa de ser um novo gênero, porque se a crítica culpa Hollywood pela criação dos “filmes feel-good”, aqueles feitos de propósito para todo mundo sair da sala com o coração cheio de ternura e um sorriso nos lábios, a TV de hoje andou criando também o “filme feel-bad”. Como que para dizer: a vida não tem sentido, e a gente não vale nada.









4211) Do sonho para a ficção (24.2.2017)

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(escada em espiral da Quinta da Regaleira, Portugal)


O sonho é uma atividade mental parecida com a criação literária, daí não ser surpreendente que tantos poemas e contos e romances tenham se originado de sonhos.

Os três grandes clássicos da literatura de terror tiveram como ponto de partida sonhos dos seus autores: Frankenstein de Mary Shelley (após um debate sobre histórias terroríficas, numa reunião entre amigos), o Drácula  de Bram Stoker (um pesadelo devido a algo indigesto que ele comeu, de acordo com depoimento do seu filho) e O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson (pesadelo de efeito tão forte que a primeira versão, “pesada” demais, teve que ser queimada; a versão que conhecemos é a segunda).

O sonho é uma atividade tridimensional, eu acho, em que nos sentimos envolvidos (se bem que de modo virtual) por todos os lados. Vemos, ouvimos, apalpamos, caminhamos, travamos diálogos, atravessamos espaços físicos.

É muito diferente de quando estamos simplesmente escrevendo ficção:

“Caminhei pela calçada cheia de lixo, fui observado com desconfiança por um cachorro que ergueu seu focinho de dentro de uma caixa de papelão desconjuntada, e ao dobrar a esquina vi o matagal tomando conta de tudo e um carro ardendo em fogo lento junto da calçada”.

Uma cena boazinha, mas para compô-la recorri apenas a palavras e a 20 ou 30% de flashes visuais sugeridos por elas. Não sei a textura da calçada, não sei se fazia frio ou calor, não senti o cheiro do lixo nem o da fumaça. No sonho a gente sente tudo.

Uma das traduções mais envolventes que fiz nos últimos tempos (eu sou um desses profissionais afortunados que só traduzem os autores de que gostam) foi a trilogia Comando Sulde Jeff VanderMeer, que saiu pela Ed. Intrínseca sob os títulos de Aniquilação, Autoridade e Aceitação.

A obra conta os mistérios de uma “Área X” que há mais de 30 anos surgiu no sul dos EUA, cercada por um campo de força invisível onde só se penetra com a maior dificuldade. Acontecem ali fatos biológicos estranhos, inexplicáveis. E os livros contam o que acontece com as expedições que se aventuram lá dentro.

Toda a trilogia tem um clima onírico, que ressalta ainda mais porque praticamente todos os personagens são pessoas pragmáticas: militares, cientistas, agentes da CIA ou outros envolvidos com esse fenômeno que ameaça a segurança nacional e o próprio planeta Terra.

Num artigo recente, VanderMeer comenta alguns aspectos da criação da trilogia, escrita (por contrato) ao longo de dezoito meses fatigantes.

A certa altura ele diz que sua mente estava obcecada por duas coisas: o famoso vazamento do poço submarino da British Petroleum no Golfo do México (que ele visualizava como uma espiral de óleo negro elevando-se da profundezas e poluindo o mar da Flórida, onde ele morava) e uma cirurgia de dente do siso que lhe causou muito incômodo e o fez tomar muitos remédios. E relata:

Até que, uma noite, em algum lugar profundo do meu subconsciente aquela espiral de petróleo se transformou ou se inverteu e eu fui possuído por um sonho tenebroso. No sonho, eu descia os degraus de uma torre escavada no solo. Havia palavras vivas na parede. Uma matéria estranha. Uma energia peculiar. As palavras na parede eram feitas de limo, ou de fungos, algo tão comum ali no norte da Flórida que essa parte do sonho nem me pareceu estranha.

O que me pareceu, sim, estranho foi o fato de que as palavras iam ficando mais brilhantes, mais vivas, até que eu não pude mais ignorar um fato essencial e horrorizante: lá embaixo da escadaria, alguma coisa estava ainda escrevendo... e ao descer eu me aproximava dela.

Vocês podem achar que isso já bastaria para me acordar, mas era aquele tipo de sonho em que você não sabe que está sonhando. Eu tinha a noção bastante lúcida de que estava numa expedição, e era capaz até de lembrar o que tinha comido de manhã cedo, e de que tinha saído para dar uma volta... e encontrara aquilo.

Não vou mentir. Era algo que me desorientava e aterrorizava. Eu estava morrendo de medo naquele sonho. Mas mesmo assim continuei a descer os degraus, até perceber que depois da próxima curva estava o quem-quer-que-fosse que estava produzindo aquelas palavras. E não sei se foi por causa do medo ou se foi porque minha mente de escritor soube que se eu avistasse o que estava ali jamais seria capaz de escrever uma história sobre ela. Mas acordei com o enredo e os personagens principais prontos, na minha cabeça. Além de cerca de 500 palavras estranhas escritas na parede, que continuaram as mesmas até a versão final do livro.

Depois disso, escrever Aniquilação foi um processo simples. Eu levantava, escrevia durante umas três horas, dormia de novo, editava um pouco durante a tarde, e repetia o processo. Em cinco semanas, estava com o livro pronto. (...) Foi uma das melhores experiências de escrita que já tive.

Nem vou entrar nas associações freudianas ou sei lá o que desse sonho. O que me interessa é o método. O sonho proporciona:

a) Uma forte impressão de realidade em 3-D, onde paisagem, personagens, ação, diálogo, local etc nos chegam já prontos, num “pacote”, sem a necessidade que temos, na vigília, de imaginar cada detalhe, num esforço longo e cansativo.

b) Uma poderosa carga emocional – no caso, de medo, estranheza, etc.  Essa emoção “grava” de maneira mais profunda as imagens sonhadas, deixa-as indeléveis.

c) Uma forte sensação de mistério, de algo que precisa ser investigado, lembrado, examinado – no caso, por se tratar de um escritor, através de uma história que vá mais fundo nessa imagem inicial.

Note-se a afirmação do autor de que acordava, escrevia e dormia de novo. Como se precisasse diariamente revisitar o “locus” mental da inspiração que deflagrou a história.

Quem leu Aniquilaçãosabe que a descida da bióloga (a narradora do romance) nessa torre invertida, com escada em espiral, que mergulha no interior da terra, é uma das primeiras cenas do livro. VanderMeer partiu dela para criar uma narrativa sobre catástrofes ambientais, machismo e feminismo, o complexo de espionagem militar dos EUA, numa história intrincada que envolve inclusive a possibilidade de um contato extraterrestre.

O link abaixo traz o texto completo de seu relato, com a revelação de muitos outros detalhes do seu cotidiano que ele considerou inexplicáveis e acabou introduzindo no livro, bem como a impressão crescente que ele teve, durante esses 18 meses de escrita, de que o universo do livro estava fazendo certas coisas aparecerem no mundo real.












4212) Frases com jeito de gente (28.2.2017)

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Engana-se quem pensa que o cuidado com a textura sonora das palavras e das frases é exclusivo da poesia, e que para escrever prosa basta prestar atenção às idéias. 

Uma frase descuidada, mal escrita, parece às vezes com uma imagem tremida, fora de foco. Uma coisa que não ficou muito clara. O leitor pode até ver que se trata de uma rua, um homem montado numa bicicleta, um carro estacionado junto ao meio-fio, mas tem que fazer um esforço para chegar a essa conclusão. Ele sente que quem fez aquilo ficou devendo.

(Tudo que se comente nessa área tende a dois extremos opostos: efeito, quando é proposital e o autor sabe o que está fazendo; e defeito, quando é involuntário, porque o autor tentou algo e não conseguiu. "Foto fora de foco" e "frase fora de foco" também estão submetidas a esta lei.)

Ler um longo texto mal escrito é como dançar com uma pessoa que dança mal. Na leitura, o autor guia e o leitor é guiado. O leitor pede para ser bem guiado, e o autor o guia de forma desajeitada, sacolejante, descontínua, cheia de solavancos, de movimentos desnecessários, de esforços redundantes.

Quem escreve precisa dar atenção ao seu ritmo das frases. À combinação de sons das vogais e das consoantes. À terminação das palavras, para não gerar rimas bobas. Ao uso dos sinais de pontuação, que servem como uma espécie de partitura musical da prosa, dirigindo suas pausas e suas inflexões.

Um especial cuidado, por parte do escritor, deve ser tomado – pressupondo-se naturalmente que o dito escritor seja alguém preocupado com a qualidade literária de que seu texto será impregnado – para com a organização interna das frases e dos parágrafos, fazendo com que o dito texto torne-se, como não poderia deixar de ser, literariamente bem qualificado.

O parágrafo acima é um exemplo de como não escrever. Uma pequena antologia de erros e de inconveniências.  Ordem inversa das frases (voz passiva) quando a ordem direta facilitaria a compreensão sem empobrecer a forma.  Repetição irritante de sons no final das palavras (“...ado”).  Repetição supérflua de um termo banal que por si já é desnecessário (“o dito”).  Enchimento de linguiça com o uso de uma expressão (“como não poderia deixar de ser”) que nada significa e nada contribui, tipo da frasezinha besta que SEMPRE pode ser extirpada de um texto sem deixar outro sinal a não ser um respiro de alívio.  E outras coisas.

Não estou nem falando em Arte Literária. Falo de textos como a correspondência comercial, por exemplo – onde é necessário escrever bem, com clareza, para a pessoa do outro lado saber que não está lidando com um incompetente.

Não causa boa impressão a ninguém receber uma carta cujo redator se exprime assim: “Comunicamos a Vossa Senhoria que enviamos a sua mercadoria, que deverá chegar em alguns dias.  Solicitamos que a fatura seja paga em dia, conforme acertado com a nossa Companhia”.

A rima involuntária é um dos piores cacoetes que um redator de ofícios (nem falo de um literato) pode exibir.  A gente vê, com frequência, textos com essa alta incidência de repetições que nos fazem perder a paciência.  E o mais grave é que, em publicações menos formais (uma coluna de jornal, por exemplo) o redator que comete essa calamidade geralmente coroa a obra registrando bem satisfeito, entre parênteses: “Ih, rimou!”. 

Rima involuntária é um dos erros de redação mais grotescos que há. Se você vir que o cometeu, não diga: “ih, que bonitinho, cometi um erro!”. APAGUE, e escreva de um jeito certo. O leitor agradece.  

Para mim, que além de escrever também trabalho como crítico e como editor, “ih, rimou” é sinal definitivo de desleixo ou amadorismo. Não importa quem o assine. Pode ser Machado de Assis.

Diz-se que a gente só relê uma frase quando ela é muito boa ou muito ruim.  Uma boa frase pode precisar ser lida duas vezes para ser compreendida; mas um princípio básico da experiência estética diz que todo esforço extra do leitor deve sempre ser recompensado.  

Quando mais fundo está enterrado o tesouro, mais valioso tem que ser seu conteúdo.  Nenhum leitor gosta de reler uma frase duas ou três vezes apenas para, ao entendê-la, constatar que ela diz um clichê, uma bobagem. Que todo aquele esforço de dedução não acrescentou nada à leitura.

Uma frase mal feita geralmente precisa ser relida porque o autor falou, falou e não conseguiu fazer-se entender.  Às vezes o leitor, com um pouco de boa vontade, considera que o autor quis dizer X ou Y, e passa adiante.  Mas o leitor registra subconscientemente toda vez que faz um empréstimo de boa vontade.  Se isso passa a se repetir muito, ele deixa de sentir firmeza no autor.

Um dos grandes defeitos de alguns ensaios acadêmicos ou teses universitárias é o excesso de jargão técnico e de termos abstratos.  O texto não flui, porque cada nova palavra que é lida obriga o leitor a fazer uma pausa para estabelecer o significado dela e conectá-la com as que foram lidas antes. É como o trânsito numa cancela, numa barreira. Avança, e para. Avança, e para de novo. Não flui.

Claro que um texto especializado precisa muitas vezes recorrer a conceitos técnicos e raciocínios complexos, mas quando se publica um livro dirigido para o público em geral é preciso simplificar, sem empobrecer. Como? Não sei. Todo texto é um cobertor-curto.  Algo sempre vai ficar de fora. 

Se o propósito do texto é apresentar e discutir idéias, o autor deve estar preparado para expor essas idéias de diferentes maneiras.  Se uma idéia já é complexa por si só, maior ainda a necessidade de um estilo simples para exprimi-la.  Sem extravagância vocabular, sem labirintos de sintaxe, sem excesso de adjetivos, sem exibicionismo de estilo. Enfeites que só fazem desnortear ainda mais o leitor.

Pensar com clareza ajuda a escrever com clareza.  Muitos redatores (ensaístas, ficcionistas, jornalistas, etc.) começam a escrever sem terem parado antes para organizar as idéias e planejar o que vão dizer.  Começam a digitar palavras a esmo, geralmente algo que nada diz (“Dentro do complexo quadro cultural por que passa o mundo de hoje, algumas tendências mais nítidas podem ser observadas, de tal forma que...”) na esperança de fazer o texto “pegar no tranco”.  Às vezes dá certo, mas em geral não. 



(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 66, abril de 2011).





4213) Albert Camus, Dashiell Hammett e o absurdo (4.3.2017)

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Existe uma linha que me parece bem nítida ligando o romance policial “noir” ou “hardboiled” norte-americano e a literatura existencialista ou “do absurdo” francesa.

Esta última é mais difícil de delimitar, visto que não se trata (como o outro) de um gênero popular, submisso a fórmulas (ou pelo menos consciente da existência delas).  Ela também não se confunde, a não ser por uma certa contiguidade histórica e geográfica, com o Teatro do Absurdo, rótulo que abriga nomes como Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Jean Genêt e outros, e foi objeto de um excelente livro de Martin Esslin.

A literatura do absurdo inclui principalmente Albert Camus e Jean-Paul Sartre, dois autores unidos por uma visão existencial semelhante e separados por fortes divergências políticas.  

Uma das características desse absurdo existencialista é a presença constante do Acaso como fator determinante da tragédia humana. O homem sempre acreditou no Destino, no “estava escrito”, no “maktub”, no fato (consequente da visão religiosa do mundo) de que nossa existência é governada por forças poderosas responsáveis pelo menor dos nossos atos, e que nos deixam, de acordo com cada crença, maior ou menor amplitude de ação através do livre arbítrio.

“Os desígnios de Deus são insondáveis” é a frase-padrão com que esses crentes reagem diante de qualquer evento inexplicável, bizarro, disparatado, aparentemente injusto e gratuito. A gente não sabe como é que um coisa tão aberrante aconteceu. Deus quis. Só ele sabe o motivo, mas motivo há, sentido existe. Nós é que não percebemos.

As filosofias do Absurdo substituíram essa perplexidade por uma pior. Não existe nem Deus nem destino. A vida é gratuita, não aconteceu em função de nenhum plano pré-desenhado por ninguém. O que se chamava Destino não é mais que o Acaso, um entrechoque cego de ações coletivas e individuais.

Quando Sartre dizia que “a existência precede a essência” dizia que a filmagem precede o roteiro. Pela crença milenar, havia um roteiro traçado por Deus (a essência) e nós o estávamos cumprindo com nossa existência (a filmagem). Sartre tomou um café, acendeu um cigarro e deu uma gargalhada.  “Roteiro coisa nenhuma”, disse ele. “A gente começa a existir, e passa a roteirizar a própria essência com cada gesto, cada atitude, cada escolha, cada confronto, cada concessão. A vida é um filme onde todo mundo está improvisando ao mesmo tempo.”

O romance policial hardboiledé a história de crimes gratuitos, tragédias que teria sido tão fácil evitar, paixões que não levam a nada, ambições que levam a seis cápsulas de chumbo num beco escuro.

Em vez das grandes engrenagens históricas, sociais e econômicas que impelem as tragédias dos personagens de Balzac, Tolstoi, Stendhal e Dickens, o policial noirmostra indivíduos pequenos, desamparados e arrogantes, violentos e sem propósito, agitando-se como insetos, copulando como insetos, morrendo como insetos atraídos por uma luz que os chama e os consome.

Essa insensatez da existência está nos livros de James M. Cain (The Postman always rings twice, Double Indemnity), de Horace McCoy (They shoot horses, don’t they?, No Pockets in a shroud), livros secos e brutais que foram vivamente elogiados na França por Sartre, Camus, e outros existencialistas.

Dashiell Hammett conta, em O Falcão Maltês (1929), um desses “casos” que encapsulam algum tipo de lição, simbolismo, mensagem, ilustração, o que quiser. 

O detetive Sam Spade conta a sua cliente o episódio que ficou conhecido como “a Parábola de Flitcraft”. Flitcraft é um agente imobiliário bem sucedido, pacato, estável, residente em Tacoma (Washington), que um belo dia desaparece sem deixar rastros. Tinha dinheiro no banco, não tinha inimigos, vivia em paz com a esposa e os dois filhos. Todas as investigações para localizar Flitcraft dão com a cara no muro. Ele desapareceu (diz Sam Spade) “como um punho desaparece quando alguém abre a mão”.

Cinco anos depois, a esposa de Flitcraft contrata o detetive por ter ouvido falar que em Spokane, a poucas horas de distância, fora visto um homem parecido com o marido dela. Spade vai até lá, e era Flicraft mesmo. O desaparecido confirma tudo e diz que fugiu porque quis, e deixou bens suficientes para que a família não passasse por problemas.

Spade pergunta por quê. E ele conta o que lhe aconteceu. No dia de sua fuga, vinha andando pela rua e uma viga de metal caiu de uma construção poucos metros à frente dele, arrebentando a calçada. Por segundos de diferença ele teria sido esmagado. E nesse instante ele percebeu que sua vida séria, profissional, ordeira e prática não fazia sentido. Podia morrer devido a um acidente besta. E ele se sentiu (diz Sam Spade) “como se alguém tivesse levantado a tampa da vida e lhe mostrado o mecanismo”.

Flitcraft fugiu, vagou pelo mundo, mudou de nome, voltou pra uma cidade próxima, casou e recomeçou a vida, mas a parábola se concentra nessa sensação terrível, de que por um instante fugaz a possibilidade da morte besta (o “ato gratuito” que tanto os Surrealistas quanto os Existencialistas tanto exaltaram, com conotações distintas) arrancou todo o sentido de sua vida.

Flitcraft é um herói absurdo, tanto quanto os heróis de Camus: o Meursault de O Estrangeiro, que mata um árabe a tiros na praia “por causa do calor” e é executado, o juiz-penitente de A Queda que deixa uma mulher se jogar na água do rio e a partir daí percebe que não era “a pessoa do Bem” que fingia ser.

Ou o guerrilheiro espanhol em “O Muro” de Sartre, que, pressionado a confessar onde estava escondido o líder do seu grupo (e ele nem sabia onde era), diz um lugar qualquer, ao acaso. Os inimigos dão busca, e o líder é encontrado e morto exatamente ali. Como não achar que o mundo é absurdo, diante de um fato assim?

A morte banal é o gatilho que dispara o absurdo na maioria dessas histórias, mesmo a morte evitada, como na Parábola de Flitcraft. Assim como na Antiguidade uma pessoa qualquer era subitamente convencida da existência de Deus devido a um fato fortuito, uma iluminação literalmente “caída do céu”, o homem moderno tem uma iluminação às avessas, uma anti-epifania. Uma experiência aleatória que faz desmoronar seu mundinho estável e revela por trás dele um Caos sem dono.





4214) Canções de feira (7.3.2017)

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(ilustração: Feira de Campina, de Irene Medeiros) 

São aberturas-de-canção tão parecidas que mesmo vindo de lugares tão distantes e vozes tão diferentes não tinha como não perceber a reiteração de um motif, de uma daquelas maneiras-de-dizer ou “gestos verbais” cristalizados por milênios de uso.

Bob Dylan cantava, em “Girl From the North Country”:

If you’re traveling to the North country fair
Where the wind hits heavy on the border line;
Remember me to one who lives there.
She once was a true love of mine.

Dylan com Johnny Cash (1969):

Eu ouvia essa canção do álbum Nashville Skyline (1969), ondea voz de Dylan fazia dueto com o barítono imponente de John Cash, mas Dylan já a havia gravado num álbum anterior, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963).

Dylan solo (1963?):

Eu sempre traduzia essa primeira linha assim: “Se você está viajando para a feira do país do Norte...”. Depois me ocorreu que também pode ser: “Se você está viajando para o belo país do Norte...”, com “fair” sendo usado como em My Fair Lady, e posposto ao substantivo, ao estilo clássico.

Minha leitura estava contaminada, certamente, pela canção Scarborough Fair, balada tradicional adaptada por Simon e Garfunkel em 1966, e grande sucesso da época:

Are you going to Scarborough Fair
(parsley, sage, rosemary and thyme)?
Remember me to one who lives there;
She once was a true love of mine.


(Digressão: Essa repetição literal nos versos 3 e 4 não é plágio É o resíduo íntegro de linhas que passam intactas de geração em geração de poetas, tal como ocorre em nosso Romanceiro Ibérico, onde às vezes é possível rastrear um único verso (uma descrição, comparação, declaração de amor) que pula de romance em romance, de poema em poema, ao longo dos séculos e dos países.)

O ponto intressante aí é que na canção de Simon & Garfunkel existe, sim, a menção clara de que o poeta se dirige a alguém que está indo para uma feira, e lhe faz um pedido:

Você está Indo para a Feira de Scarborough
(salsa, salva, alecrim e tomilho)?
Dê lembranças minhas a alguém que mora ali;
ela já foi um grande amor meu .

Essa segunda linha indica justamente as ervas e temperos que se espera comprar nessa feira; é como se por aqui a gente dissesse: “coentro, cebolinha, pimenta-do-reino e cominho”.

Pode me chamar de abestado, mas eu marejei os olhos quando em 1976 me bateu nas mãos o álbum Nas barrancas do Rio Gavião, primeiro disco de Elomar, e eu me deparei pela primeira vez com este clássico, “O Pedido”:

Já que tu vai lá pra feira,
traga de lá para mim
água da fulô que cheira
um novelo e um carrim...


São milênios de vida rural em que a feira é o grande atrator dos produtos, dos projetos, das esperanças, das curiosidades de milhões de pessoas que vivem no semi-isolamento dos pequenos sítios e pequenos povoados. A gente tem a mania de dizer: “Nordestino não pode ouvir alguém falar que vai pra uma cidade grande, faz logo uma encomenda.” Não somos somente nós; aposto que no Cambodja, na Armênia, em Honduras  e na Calábria não é muito diferente.

E pouco me importa se a Elomar não é muito simpática a música popular dos Estados Unidos. As coisas que Bob Dylan e Elomar cantam já estavam sendo cantadas antes mesmo de Colombo descobrir a América.

A “ida para a feira” é uma mini-migração recorrente na memória das sociedades rurais; a feira ocorre sempre num lugarejo maior do que o lugar de origem dos feirantes. É lá que acontecem as coisas:

Se não chover, amanhã vou passear;
comprar farinha lá na feira do Pilar...

Na canção de Armando Nunes e J. Portella, “Moça de Feira” (1957), Luiz Gonzaga conta a história de uma velha sabida lá do Pilar, que bota a filha, bem bonitinha, pra vender farinha aos feirantes A moça é tão bonita que a mãe engana com facilidade os matutos, hipnotizados por ela:

Os olhos dela tem veneno da serpente
e é mais quente do que o sol de Quixadá...
Farinha crua, tá azeda, tá mofada,
mas os caba não vê nada; nem o troco quer contar.



O orgulho pela feira imbatível, onde “não falta nada”, bateu no teto com o clássico de Onildo Almeida, outra gravação de Luiz Gonzaga, “Feira de Caruaru” (1957):

Na feira de Caruaru tem tudo pra gente ver;
de tudo que há no mundo nela tem pra vender...



Inspiração fundamental para outros clássicos, outras “batidas no teto” como a “Feira de Mangaio” (1977) de Sivuca e Glorinha Gadelha:

Fumo de rolo, arreio de cangalha
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada
eu tenho pra vender, quem quer comprar?



A ida para a feira é o grande momento na vida dessas populações. A poesia de cordel e a cantoria de viola não existiriam sem essas idas e vindas, esses fluxos constantes que convergem para a feira carregados de produtos e regressam, horas ou dias depois, carregados de aquisições.

Johan Huizinga, em Homo Ludens (1938), lembra o papel das feiras como espaço de mistura de comunidades, tribos, clãs, que se enfrentam poeticamente, cada um louvando sua região, seus produtos, a beleza de suas mulheres, a coragem dos seus guerreiros, a esperteza dos seus mentirosos. Torneios poéticos que já eram antigos na Ásia e na África antes de começarem a ressurgir na América.

E para quem quiser ter uma idéia do ambiente humano desses mercados, nada melhor do que Dedé Monteiro recitando seu clássico “Depois que a Feira Termina”:










4215) O Barcelona e o impossível (8.3.2017)

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O futebol é bom quando nos leva para as fronteiras do impossível. Aquelas jogadas que ninguém tinha imaginado até que um moleque ousado as inventa. Aquelas campanhas que de semana em semana vão construindo a ascensão impensável de um time sem nada especial a não ser o fato de que está fazendo o que ninguém fez.

Ou então as grandes viradas – como a do Barcelona hoje à tarde, eliminando o Paris Saint Germain num duelo da Champions League. Tendo perdido o primeiro jogo em Paris por 4x0, o Barcelona precisava de 5x0 pra se classificar. Chegou a fazer 3x0, mas quando o PSG diminuiu pra 3x1 aí a contagem de gols (o PSG havia acabado de marcar o famoso “gol no cmpo do adversário”, que tem peso diferenciado) dizia que ele precisava fazer 6x1.

E faltavam apenas, o que? Trinta minutos? É difícil fazer três gols em 30 minutos num dos melhores times da Europa. Pois os três gols decisivos do Barcelona foram feitos nos últimos 7 minutos.

Neymar, repetindo uma cobrança de falta que ele traz pronta no bolso (lembram o gol na Alemanha, no Maracanã, na decisão do ouro olímpico de 2016?).

Depois, Neymar de pênalti – um pênalti muito mal marcado, aliás.

E por fim Neymar cruzando um bola sobre a área e achando Sergi Roberto do lado oposto pra fazer o que a imprensa está chamando “o gol do milagre”.

Bem, a imprensa toda vai dissecar o jogo pelas próximas semanas, Vou falar das entrelinhas do jogo.

Os dois pênaltis a favor do Barça foram no mínimo duvidosos, mas os saites que olhei até agora (L’Équipe, França; ESPN Soccer, Inglaterra; Mundo Deportivo, Espanha) mal tocaram no assunto. Qualquer pessoa que entenda de futebol sabe que o resultado, por milagroso que pareça, não foi mais do que justo.

O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, disse depois do jogo: “Mesmo tendo havido dois pênaltis não marcados a nosso favor, isso não serve de desculpa. A gente não jogou nada no primeiro tempo. E estava perdendo de 3x1 até os 43 minutos. Levar três gols em sete minutos é demais.”

Fosse no Brasil, já teriam sido emitidas dezenove liminares. O futebol no Brasil é diferente. Aqui é a terra dos bacharéis, dos catadores de lêndeas jurídicas, dos campeões das tecnicalidades da letra miúda. O jogo é detalhe: tudo converge para a possibilidade de poder questionar a vitória do adversário.

Aqui, o futebol jogado em campo é um mero pretexto. O jogo mesmo é O Tapetão, esse sim o verdadeiro esporte nacional, a nobre arte de transformar Jesus em Barrabás ou Madalena em Maria citando alíneas e jurisprudências. Há quinhentos anos é assim. A vida real é mero pretexto.

O time parisiense pediu pra perder, como diz o pessoal do Calçadão. Montado no confortável 4x0, fez o que qualquer time medíocre faz: entrou todo recuado, chamando o adversário sobre si, pedindo para ser envolvido, para ser encurralado, para ser bombardeado. Deu no que deu.

Técnicos que fazem isso geralmente se defendem com um argumento do tempo em que a bola tinha cadarço. Dizem que chamam o adversário sobre si “para matar o jogo no contra-ataque”. Pode até ser. O PSG teve um vislumbre de justificação de seu recuo quando aos 17 minutos do segundo tempo Cavani acertou um chute dos mais difíceis, com uma precisão (passou a centímetros do cabelo do goleiro) e uma violência incríveis.


Pareceu ter matado o jogo. Podia tê-lo feito quando Cavani e depois Di Maria perderam gols incríveis. Os “deuses do futebol”, esses orixás nelsonrodriguianos, resolveram castigar sua incompetência, e chamaram Neymar.



4216) Dicionário Aldebarã XIV (12.3.2017)

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(ilustração: Michael Whelan)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.



“Arp-indul”: o calor abafado em dias de sol sem vento, quando se tem a impressão de que o espaço em volta está coberto por uma redoma.

“Arp-kadhan”: o calor em dias de sol compensado por rajadas de vento fresco que anunciam a aproximação de uma chuva forte.

“Manthiess”: os últimos dois-dedos de café na caneca, que acabam sendo jogados na pia, porque já esfriaram; por extensão, qualquer coisa que perdeu a serventia por decurso de tempo.

“Zumpian”: a sensação terrível de que esquecemos alguma coisa de importância vital e que no instante em que lembrarmos nosso cérebro dará um pipôco.

“Xickmus”: duplas de trabalhadores que se revezam numa mesma função, tendo ambos o mesmo preparo, para que o trabalho flua sem interrupção enquanto um dos dois descansa.

“Nessimans”: pequenas coreografias combinadas que alguns grupos de dançarinos preparam para executar em festas populares, espaços públicos, bailes em residência, numa competição informal, brincalhona, com outros grupos que fazem o mesmo.

“Vorr-Porr”: certas palavras em outro idiomas sujo som corresponde ao de uma palavra na língua local, mas com um significado totalmente diferente, dando origem a interpretações engraçadas.

“Tinger”: perigos desnecessários que as pessoas correm; as histórias de jactância que contam depois, como se tudo aquilo tivesse sido uma prova de coragem. 

“Kanlions”: colares feitos de fios macios e resistentes, pendurados ao pescoço, com presilhas onde as pessoas penduram objetos leves como relógios, espelhos, artigos de maquilagem, etc.

“Matatum”: aquele argumento irrespondível que não apenas encerra em definitivo uma discussão mas deixa alguns minutos de desconfortável silêncio no recinto.

“Rev-Doiul”: a tensão contraditória de quem, às vésperas de um fato crucial, de desfecho imprevisível, precisa tomar providências cansativas e desgastantes visando ambos os resultados possíveis, sabendo que, depois, metade desse esforço terá sido desnecessário.

“Ronfre”: cidadão que depois de exercer uma função pública por vários anos e ser desligado dela continua agindo e falando como se continuasse com todos os direitos e deveres do cargo.

“Bordis-boul”: arranjos florais que as famílias preparam simultaneamente com a primeira refeição da manhã, e que exprimem a expectativa de todos para com o dia que começa.

“Arransa-Dou”: lembranças remotas da juventude, evocadas e compartilhadas em público, que nos fazem rir, depois nos emocionam às lágrimas e por fim nos permitem rir de novo.

“Trigtung”: a prática de atribuir duplo sentido a palavras e frases anódinas, para serem usadas como senhas pré-combinadas quando se está diante de outras pessoas.

“Isternay”: sentença penal para casos especiais, que consiste em fazer o culpado por um determinado dano ser submetido ao mesmo dano de que foi causador.

“Vidgamm”: pequeno frasco contendo fortes essências vegetais capazes de estontear uma pessoa por bastante tempo, usada como defesa por mulheres que viajam sozinhas, e pelos homens que as atacam.

“Fistveik”: termo prejorativo para designar pessoas tão inteligentes que se deixam ofuscar pela própria inteligência e não percebem a infinidade de bobagens que praticam.








4217) A palavra "editor" (15.3.2017)

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É uma das palavras mais ambíguas do nosso mercado literário. Aliás, não sei por que fico me referindo à literatura como um “mercado”. Mercado é a livraria! 

Literatura é cirurgia da alma, é fantasia compensatória, é beco sem saída, é delta de veias abertas, é som e fúria, é guerra e paz, é bobagem sem sentido, é profecia no deserto, é voyeurismo da tragédia e da farsa nas vidas alheias. 

“Mercado” é aquele momento em que a moça do Caixa nos ergue os olhos desamparados de quem precisa tanto daquele salário e pergunta: “Débito ou crédito?”.

De qualquer modo, grande parte das confusões em torno da palavra “editor” e do verbo “editar” decorrem da nossa promiscuidade com a língua inglesa e com o jargão encantatório com que os povos de língua inglesa fazem brotar dólares onde antes só existiam as coisas acima enumeradas.

Reconheço que a língua inglesa é muito mais clara do que a nossa, porque emprega dois termos para duas funções: o publisher e o editor

O publisheré o cara que cuida do mercado: o dono da empresa, o patrãozão, o acionista-mor, o CEO, o cara que toma as grandes decisões estratégicas, que contrata a peso de ouro os autores best-sellers que em seus romances usam expressões como “a peso de ouro”. 

Os editors são os caras logo abaixo dele, que cuidam do varejo, do dia a dia: que lêem e avaliam originais, dialogam com os autores ao longo das etapas da produção do livro, coordenam projeto gráfico, tradução, capa, etc. São os que cuidam da literatura.

(Nada impede que um publisherexerça, quando lhe interessa, funções típicas de um editor, visto que o dono da empresa é ele.)

Em português, tanto o publisherquanto o editor são chamados de “editor”. Quando é uma mulher, de “editora”, que é também o termo que designa a empresa publicadora de livros. Isso gera frases meio desengonçadas como:

- Amanhã vou na editora conversar com meu editor.
- Meu editor brigou com o editor e acha que vai ser demitido.
- Minha editora disse que a editora não pode me pagar esse adiantamento.
- Meu editor mudou de editora.
- Minha editora trocou meu editor.

E assim por diante.

Sem falar que o crescimento do mercado televisivo trouxe para nosso vocabulário cotidiano o termo “editor de filmes”, que é apenas o velho “montador” do cinema, ou seja, o cara que pega 100 horas de imagens filmadas e as transforma no filme de hora e meia que vemos na tela.

Essa tarefa de cortar-e-colar é chamada em português de “montagem”, no cinema, por influência da língua francesa; mas em inglês a atividade chama-se editing e o técnico-artista que a pratica é um editor, numa coincidência de termos que não tem nada a ver com o trabalho editorial do livro.

Não tem nada a ver, vírgula. Tem sim. Todo esse palavreado vem do latim, do verbo edere, que significa “trazer à existência, produzir”, e é formado de “ex”, prefixo que indica uma ação geradora, de dentro para fora, e “dere”, que é uma variante de “dare”, origem do nosso verbo “dar”. 

“Editar” exprime a mesma idéia básica de “dar à luz”, o que no sentido lato (sentido mais amplo) tanto se aplica a quem faz imprimir livros quanto a quem fornece a versão final de um filme.

Voltando especificamente ao trabalho do livro, a sofisticação crescente dessa indústria começou a trazer novos sentidos para os termos correlatos. 

O Dicionário Etimológico Online registra, no inglês, que o verbo edit (=editar) é assinalado no sentido de “publicar” em 1791; no sentido de “supervisionar para publicação”, em 1793; no sentido de “fazer revisões num manuscrito”, em 1885. Já o termo inglês editoré detectado em 1712 no sentido de “pessoa que prepara trabalhos escritos para publicação” e a partir de 1803 para a mesma função relativamente ao jornal impresso.

É bom notar também que a palavra “editar” acabou, no meio desse tranxinxim todo, ganhando um novo sentido, que usamos com frequência: “cortar, alterar, introduzir mudanças substanciais”.  Dizemos que o discurso de Fulano foi editado e apareceu na TV numa versão mais pacífica ou mais agressiva. Dizemos que certa imagem foi editada para remover um detalhe indesejável. Dizemos que um jornalista se demitiu porque quiseram editar a coluna dele removendo referências a tal ou tal assunto.

Em todos esses casos, o sentido original de “dar à luz, fazer aparecer, produzir” sofre um desvio: “editar” vira sinônimo de “interferir em”, e deriva, visivelmente, do conceito de “editar” filmes de cinema e de TV.  (Embora o exemplo literário de 1885, citado acima, já traga em si a semente dessa idéia: revisar algo para publicação, modificar, “dar uma melhoradazinha”.)









4218) Eu me lembro - 10 (18.3.2017)

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(foto: bairro do São José, por Cláudio Medeiros)


Eu me lembro de quando as maiores ameaças aos meninos de Campina eram um bandido chamado João Cabeludo e um tarado chamado Barba Rala.

Eu me lembro de uma exposição que teve na antiga FUNDACT, onde depois foi o Forum da av. Floriano Peixoto, onde eu nunca esqueci uma coleção encadernada dos livros de Walter Scott (que até hoje ainda não li).

Eu me lembro de quando os ônibus trocaram as senhas de papel por fichas de plástico, redondas e coloridas, que a gente enfiava numa urna ao sair.

Eu me lembro de uma brincadeira de mesa de bar que consistia em mandar o outro procurar a fórmula “dd042” no rótulo da cerveja Brahma Chopp, e era a palavra “Chopp” de cabeça para baixo.

Eu me lembro da lojinha Zimbo Música, na Cardoso Vieira (eu morava em frente), e toda vez que botavam um disco de coco de embolada formava-se uma pequena multidão na calçada para escutar; isso não acontecia nem com Roberto Carlos.

Eu me lembro de quando botaram uma pipoqueira no saguão do cinema com um vidro redondo onde a gente via as pipocas pulando; dava a hora do filme começar e eu ficava com pena de não poder mais assistir as pipocas.

Eu me lembro de uma loja que tinha perto da esquina da Floriano Peixoto com a Venâncio Neiva chamada “O Palácio das Louças” e eu quando era menino lia de longe “O Palácio das Loucas” e imaginava uma história meio Mil e Uma Noites.

Eu me lembro de uma época em que o clima entre Treze e Campinense andava tão tenso que em cerca de um mês houve uns três episódios de jogadores que cruzavam uns pelos outros no centro da cidade e acabavam brigando de murros.

Eu me lembro dos bailes de carnaval em clubes, quando a orquestra tocava frevo durante horas e quando mudava para samba as pessoas diziam: “Agora é bom um samba, para descansar”.

Eu me lembro da primeira e talvez única vez em que passeei de canoa no Açude Velho. Com meus pais, talvez. Entramos, sentamos, a canoa começou a dar voltas, e depois de algum tempo eu enfiei a mão na água. Tive um susto, porque como a água do açude era parada eu esperava senti-la parada, e o que senti foi como uma correnteza muito forte, quase levando embora o meu braço.

Eu me lembro de uma caneta-tinteiro preta que eu usava e que tinha sido de meu pai (trazia o nome dele gravado, em pequeninas letras de imprensa) e um dia eu vinha descendo a Irineu Joffily pela lateral do Cine Capitólio e veio um cara, esbarrou em mim, e seis passos adiante quando levei a mão ao bolso da camisa, cadê minha caneta?

Eu me lembro de propagandas de lojas nas rádios: “Vais ou não vais à Casa Vaz?”, “A Insinuante: a mais moderna! A Moderna: a mais insinuante!”, “Casas José Araújo, onde quem manda é o freguês”, “Armazéns BBB, onde tudo é bom, bonito e barato!”.

Eu me lembro das laranjas vendidas na rua, descascadas com uma maquininha com um torno horizontal onde a laranja ficava presa e o cara girava uma manivela fazendo a laranja rodar de encontro a uma ponta metálica que tirava a casca em espiral.

Eu me lembro de Cadete, o fotógrafo do bairro de José Pinheiro, cuja propaganda dizia: “FOTO CADETE – dez letras a serviço da sua economia!”.

Eu me lembro do time amador do Fracalanza, que jogava muitas preliminares de jogos do Treze, e tinha um jogador chamado Lambretinha que tinha um pique assombroso com a bola nos pés.

Eu me lembro dos abajures com paisagens coloridas que, quando a lâmpada esquentava, começavam a girar e produziam um efeito parecido com o de um desenho animado.












4219) "Sagarana": "Minha Gente" (21.3.2017)

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(ilustração: Poty)

“Minha Gente” é o quinto conto de Sagarana, de Guimarães Rosa (1946). Foi o terceiro conto a ser escrito para o livro, segundo comentário do autor, incluído nas duas primeiras edições e retirado nas seguintes.

Num depoimento-carta, bem longo,  para o jornalista João Condé, incluído no livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa  (Nova Fronteira, 1983, p. 331-337), Rosa comenta assim a história:

MINHA GENTE – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.

É um conto considerado menor dentro do livro, mas para mim é um dos mais bem amarrados, embora não pareça. É inclusive um conto cujo desfecho, no último parágrafo, nos leva a rever a história inteira com outros olhos, embora não chegue a ser uma surpresa mirabolante, e sim um mero cair da moeda, que girava, para um dos dois lados.

O Narrador do conto é um rapaz que vai passar uns tempos descansando na fazenda do seu tio Emílio. Lá reencontra a prima Maria Irma, com quem tivera um namorico na adolescência. O tio está enfronhado nas disputas eleitorais do município. O rapaz passeia, pesca, troca idéias com os moradores, azara a prima, presencia um crime. Não acontece nada de excepcional.

É uma historinha de amor no meio rural, mas um meio rural já consciente do moderno, do poder gravitacional da cidade grande (como ocorre também em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”).

O Narrador volta disposto a reencontrar o passado: no vilarejo “a ladeira para a Rua de Cima ainda é "a mesma”, “a casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura”, e por aí vai. Mas quando ele bota o pé na fazenda do tio tudo muda. O tempo passou. O tio está galvanizado pela campanha política, e a prima está mais crescida, mais bonita e mais sabida. O Narrador começa a arrastar uma asa firme na direção dela.

O tema da ida-e-volta, presente em todo o Sagarana, se orquestra nesse rencontro do Narrador com sua adolescência transformada, e o modo como ele, ainda ameninado, é manipulado pelos que cresceram mais depressa. E ecoa no nome da prima Maria Irma, quase um palíndromo, que se lê indo-e-voltando.

Outros elementos dão o tom da história. Um deles é Santana, o amigo mais velho que o Narrador reencontra logo no começo. Um típico interiorano de Rosa, que gosta de jogar xadrez e de citar a Odisséia de Homero. Descrevendo com propriedade os movimentos e a dinâmica do jogo, Rosa nos adverte de que o “modo enxadrístico de pensar” não é estranho ao autor.

Outro elemento é a política local (para o brasileiro médio, a única política que é possível compreender e ver com entusiasmo). Ele descreve o tranxinxim estratégico do tio Emílio num parágrafo saboroso:

Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (no. 1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (no. 2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município no. 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (no. 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio, resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.

Não parece; mas é o tema do xadrez quer retorna com outro figurino. Sempre o tema das mil variantes de ataque e defesa, de pergunta e resposta, de aproximação e afastamento, de sedução e separação.

O grande momento dramático do conto é o assassinato de Bento Porfírio, um morador local que acompanha o Narrador em suas pescarias. Bento Porfírio está metido em um caso intrincado de amor e adultério (como ocorre em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”). Casado, está tendo um caso com uma mulher casada.

Um dia a pescaria é interrompida pelo surgimento do marido da outra, Alexandre, que o mata com uma foiçada. Olha o modo rápido e entrecortado como o assassinato é descrito:

Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi: um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água de uma queda pesada, como um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, os pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água ensanguentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.

Bento Porfírio tinha perdido a chance de casar com a de-Lourdes, cujo pai o queria para genro. Não se interessou em conhecê-la. Quando a conheceu, ela já estava casada com o Alexandre. Ele se apaixonou e se arrependeu. O que fez? Casou com a Bilica, “só por pirraça e falta do que fazer”. E o quadrângulo amoroso ficou formado, pois Bento e de-Lourdes se embrenharam num amor que terminou numa foiçada à beira-rio.

O xadrez, a política e o crime são elementos fortes que dão o tom do conto. Porque o conto na verdade é sobre outro quadrângulo amoroso, que nos lembra o famoso poema “Quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...”

O Narrador começa a achar que ama a prima Maria Irma, mas descobre que ela tem um amigo muito gentil chamado Ramiro, que lhe empresta livros, o que acaba gerando ceninhas de ciúme; mas Ramiro é noivo de Armanda, grande amiga de Maria Irma, então tudo bem.

O Narrador elogia a prima sem parar. Inclusive relata, logo na chegada à fazenda, um episódio típico do que hoje se chama “mansplaining”, o vício masculino de dar às mulheres longas explicações sobre qualquer assunto antes mesmo de perguntar o que elas pensam a respeito:

Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso, porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, muito maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: -- Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo de novo!...

Dubitativo, distraído, com a cabeça cheia de vacilações, o Narrador vai se deixando enredar. Quando acusa Maria Irma de estar interessada no Ramiro, a prima não faz outra coisa senão lembrar que Ramiro é noivo da Armanda, e começa a elogiar a amiga:

É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é filha de fazendeira – porque o pai já morreu -, mora no Cedro... (...)  Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita... (...) E guia automóvel muito bem. É saída... (...)  É muito desembaraçada... Independente... Moderna...

O Narrador é um inocente simpático e vai se deixando enredar. Quando se aproxima da prima querendo coisa, pensa consigo que se trata de “ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um ‘gambito do peão da Dama’, como Santana diria”. Ele sabe que o jogo amoroso é um xadrez.

A política, também, e ele acaba ajudando sem querer o tio quando visita um adversário político deste e, tendo feito comentários inocentes, recebe do tio o elogio: “você costurou certo”. Costurou sem querer, porque o jogo político é aquele em que o adversário diz que vai viajar e a gente deduz que aquilo é para a gente pensar que ele vai ficar em casa, e que portanto o mentiroso vai viajar mesmo. Como na negociação do bezerro entre o tio Emílio e um fazendeiro amigo, minuciosamente narrada com suas idas e vindas.

No final, o partido do tio ganha a eleição e o Narrador, que tinha ido visitar outra fazenda, volta e reencontra quem? Maria Irma ao lado de Armanda:

Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos. (...) Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim como a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.

Há histórias que vão o tempo todo numa direção, e no final dão uma guinada para outra, e só então percebemos para onde a história estava indo o tempo todo, com seus subterfúgios da política, suas estratégias de xadrez, sua arte de resolver os desencontros amorosos de maneira mais diplomática e moderna, sem tragédias e sem foices. E o conto se fecha com esse parágrafo exemplar:

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.

Ou, como disse Shakespeare ao tratar de situações semelhantes: “Tudo está bem quando acaba bem”, principalmente se deixarmos que as mulheres façam o corte e a costura das alianças amorosas.







4220) A arte de escrever difícil (26.3.2017)

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(ilustração: Salvador Dalí)

As palavras difíceis e as palavras fáceis são dois grandes testes para quem escreve.  Podemos chamá-las também de palavras complicadas e palavras simples, ou então de palavras raras e palavras comuns.  Tudo é a mesma coisa.

Acho que hoje em dia a grande maioria dos manuais ou das oficinas literárias aconselha as pessoas a usarem palavras simples.  Houve um tempo em que não era assim.  Palavrório rebuscado (ou, mais simplesmente: vocabulário difícil) era um sinal de talento, de erudição, de poder social. 

Principalmente no Brasil do século 19, um Brasil agrário com milhões de analfabetos, pouquíssimas universidades, e uma elite dirigente que sempre utilizou a cultura livresca e o diploma como filtros obrigatórios para a ascensão social. 

O povo podia ter a cultura que tivesse, mas só era considerado culto quem fosse capaz de usar provérbios em latim, de citar Sófocles ou Platão, de recitar em francês ou utilizar com propriedade termos obscuros. 

Muitos pretendentes a literatos dessa época costumavam folhear o dicionário de caderno em punho, anotando palavras difíceis (Objurgatória! Catafalco! Quejandos! Fâmulo! Tremebundo! Estentórico!) e depois procurando um pretexto para enfiá-la nos seus artigos ou contos. 

Um dos acusados desse cacoete é o quase esquecido Coelho Neto (1864-1934), dono de um vocabulário sonoro e cheio de preciosidades, e que foi por muito tempo considerado o maior escritor brasileiro. 

Abro ao acaso uma página de seu melhor romance, A Conquista, e logo dou de cara com “um pardieiro sombrio e lôbrego”, “lazarone”, “racimos”, “corbelhas”, “tresandava”, “comezaina”, “vinhaça”...  Podemos dar o desconto de que alguns destes termos fossem comuns em 1899, ano do livro; mas a gente vê que Coelho Neto não era autor de colocar uma palavra direta se dispusesse de um sinônimo enfeitado e obscuro. 

Uma boa comparação de estilo pomposo e estilo claro pode ser feita entre seus textos e os de Lima Barreto no recente livro Lima Barreto versus Coelho Neto: Um Fla-Flu Literário, de Mauro Rosso, que compara os artigos de ambos a respeito do futebol.


Guimarães Rosa é um dos primeiros exemplos que nos ocorrem quando pensamos numa linguagem arrevezada, troncha, abstrusa...  Palavras complicadas pareciam não faltar no seu embornal, e qualquer página aberta também ao acaso, como esta de Tutaméia, nos dá “intruge-se”, “lepidão”, “quizília”, “uca”, “sipipira”...

Entram aí regionalismos, arcaísmos, formações novas a partir de radicais conhecidos.  De tantas em tantas linhas uma palavra parece saltar da página e ficar de pé, oferecendo-se ao exame, pedindo para ser interpretada e encaixada na frase.  (E muitas vezes percebemos que a própria frase já nos indica ou insinua o que ela veladamente diz – e nisto reside uma das artes do escrever difícil.) 

E depois que o leitor pega o tom da voz narrativa de Rosa, torna-se um prazer a mais esse descascar das palavras novas para vê-las por dentro.

Existem autores que escrevem difícil numa outra clave musical, quer dizer, com o propósito de despertar um outro tipo de resposta no leitor. 

Há o caso curioso do curitibano Paulo Leminski, cujos poemas curtos eram de uma admirável limpidez de linguagem, e que por outro lado nos deu um dos romances de vocabulário mais idiossincrático em nossa literatura, o Catatau(1975).  Nele encontramos trechos destemperados como:

“Runáticos, versitergeremos, certo.  Nome, porém, não trocaremos por sinamônico algum nenhúnico!  Posso provar: tenho aprovação própria.  Pensar por pensar.  Some um círio suando de pensar, aceso na cabeça e as formigas me comendo e me levando em partículas para suas monarquias soterradas”. 

A citação mais longa é necessária para dar idéia do sabor do texto, da metralhadora verbal com que o autor dispara aparentes disparates sobre nós. 

O romance de Leminski cria um delírio verbal num tom desorientado (mas mantido do princípio ao fim com admirável coerência) para contar a história da viagem imaginária de René Descartes ao Brasil e a impressão que nosso mundo tropical e suas ervas alucinógenas despertam em sua mente lógica e científica. 

Neste caso, juntam-se palavras inventadas, palavras indecifráveis, palavras híbridas, pedaços de raízes gregas e latinas, fragmentos do tupi ou de gírias e jargões específicos. 

A palavra vale um pouco pelo que significa em si, mas talvez valha até mais em função do quanto sustenta essa voz narrativa: caótica, estilhaçada, multicultural. 

Gabriel Garcia Márquez costumava afirmar que coloca muitas palavras nos seus textos sem muita atenção para o seu significado, mas apenas pela sua capacidade de manter e prolongar certa musicalidade necessária ao encantamento da prosa.  “Basta uma palavra no lugar errado”, dizia ele, “e todo o efeito vai por água abaixo”.

Imagino que Coelho Neto queria exibir, para prazer seu e do leitor, seu preciosismo e erudição; que Rosa queria trazer para a língua geral, dentro da jurisdição de seus romances, certos processos internos do linguajar do homem do sertão mineiro.

E que Leminski produzia um caos ordenado para desequilibrar a tendência raciocinante e lógica do leitor e fazê-lo viver a experiência do mundo por dentro do personagem, de suas palavras (e um personagem literário, qualquer um, é uma criatura feita apenas de palavras e nada mais). 

A palavra difícil exige esforço do leitor, e convém que ele receba em troca alguma coisa.





(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 64, fevereiro de 2011 )





4221) A arte da leitura (29.3.2017)

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As contas de somar e de multiplicar são o único exemplo, em todo o Universo, de uma situação em que “a ordem dos fatores não altera o produto”.  (Ok, sei que não são o único, mas é de outra coisa que vou falar, isto aqui é mero pretexto.)

Se você estuda literatura, cinema, teatro, quadrinhos, qualquer arte narrativa, você aprende que “a ordem dos fatores é a principal maneira de alterar o produto”, sendo “produto” no caso a impressão produzida na mente do público.

Ordem é tudo. Não “ordem” no sentido de “coisa organizada, toda arrumadinha, sem mexer uma pestana”. Ordem no sentido da “sucessão temporal das experiências”: a sucessão das palavras, dos sons, das imagens.

As escolas de cinema mostram aos alunos o Experimento Kulechov, de um cineasta russo. Ele pegou o mesmíssimo plano de um ator e o mostrou a três turmas. Na primeira, após a imagem do ator vinha a de um prato de comida. Na segunda, um revólver. Na terceira, uma criança brincando. Os três grupos descreveram a expressão do ator (que, aliás, tinha sido filmado sem olhar para nada específico) como de “fome”, “ameaça” e “ternura”.  (Os numerosos relatos sobre o experimento mudam sempre os exemplos – mas o princípio é o mesmo.)

Toda a teoria de montagem nasceu dessa teoria da justaposição e sequência dos planos.  Desde os pioneiros do cinema norte-americano como Griffith e Chaplin, até a vanguarda russa, o expressionismo alemão, todo o alicerce do cinema nasceu desse princípio básico.

Toda narração, e por extensão toda sequência, é uma sintaxe. O que vem antes influencia o que vem depois.

Alguem há de lembrar o famoso Capítulo XXXIII das Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde Machado de Assis faz o seu narrador conhecer uma jovenzinha linda, Eugênia – linda e vivendo seus últimos anos de inocência, inocência da qual o valoroso Brás a ajuda a se desvencilhar. Acontece que Eugênia é coxa de uma perna, o que leva o narrador, enquanto lhe desfruta de leve os atributos, a chamá-la de “Vênus Manca”, e a se consumir em filosofias insones:

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. 

Como sempre, a arte de Machado está na maneira de arrumar verbalmente os fatos e as idéias. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. 

A primeira pergunta nos faz pensar: “Que diabos, por que desperdiçar beleza numa criatura que puxa duma perna? Por que a Natureza ou a Providência Divina não a fizeram logo feia, para que nós, os rapazes sedutores que vivem de rendas, sem trabalhar, não perdêssemos tempo tentar roubar-lhe um beijo, e o que vem depois do beijo?”

Mas Brás Cubas, sem conseguir pegar no sono, também pensa: “Por que coxa, se bonita?” Se a menina é bonita, a boniteza talvez lhe seja um atributo mais essencial, mais genético, do que o defeito físico. Por que então, Senhor, dar a ela essa marca de Caim, esse argueiro que impede a apreciação tranquila da beleza? Por que obrigar, com esse defeito, que o próprio Brás Cubas, tão disposto a conquistas, se demorasse nesta apenas um fim de semana?

O que vem antes influi, condiciona, impõe um viés ao que vem depois, e que será necessariamente assimilado à luz do que foi lido primeiro.

Um conhecido poema de Bertolt Brecht usa esse recursos para nos fazer pensar na contradição insolúvel entre as soluções individuais para problemas coletivos e as soluções coletivas para problemas individuais. (A tradução é minha, da versão inglesa de George Rapp).

UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE

Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a Broadway
há um homem que fica, durante os meses do inverno,
pedindo aos transeuntes que passam por ali
um lugar para os sem-teto dormirem.

Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.

Não abaixe o livro quando ler isto, leitor.

Alguns homens vão ter onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia;
mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração.

Lendo isso, ficamos como os fantasmas de Tim Powers, que se deixam hipnotizar por palíndromos porque não conseguem parar de lê-los da frente pra trás e de trás pra frente.

O otimismo da solução individual (estrofe 2) nos anima, porque somos indivíduos, e quem já dormiu ao relento em noite fria porque não tinha opção sabe o quanto é importante ter um lugar quente onde dormir numa noite de inverno.


O pessimismo da ausência de solução coletiva (estrofe 4) também nos anima, porque há indivíduos que, quando conseguem finalmente um lugar quente onde dormir numa noite de inverno, deitam-se, cobrem-se com a manta, apagam a luz, aconchegam-se ao travesseiro, mas nesse instante abrem os olhos e pensam: “E os outros?”. 





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