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4222) O palíndromo na literatura (1.4.2017)

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O palíndromo é aquela frase que pode ser lida do começo para o fim e do fim para o começo e dá o mesmo resultado.

O palíndromo básico, talvez o mais famoso em nossa língua, é: ROMA ME TEM AMOR. É tão famoso que é citado até em livros em inglês, como o clássico I Love Me, vol. I, de Michael Donner (Algonquin Books, 1996)


O meu palíndromo preferido em português sempre foi este, que me lembra uma cena pitoresca do filme de Hitchcock, O Homem que Sabia Demais:

SOCORRAM-ME! SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS  

É a cena no começo do filme, em que James Stewart e sua família, viajando por Marrocos, começam a se enredar por acaso numa trama de espionagem que vai colocar suas vidas em perigo:


Para quem, como eu, tem uma certa idéia fixa num assunto tão desnecessário para a vida prática, aconselho também esse fininho e riquíssimo volume, Palindromes and Anagrams de Howard W. Bergerson (Dover, 1973):


Por alguma razão misteriosa, mas que me parece auto-evidente, muitos autores de literatura fantástica têm uma certa fascinação pelos palíndromos. Acho que a primeira pista disso me veio no conto de Julio Cortázar “A distante” (em Bestiário,1951). A narradora usa charadas e jogos de palavras variados para combater a insônia, inclusive palíndromos:

Os fáceis, pula Lênin o atlas; amigo não gema; os mais difíceis e formosos, ata-o, demoníaco Caim, ou me delata; Anás usou teu auto, Susana.
(trad. Remy Gorga Filho)



O tradutor optou por verter diretamente as frases para o português, e elas perderam o caráter palindrômico que têm em espanhol:

SALTA LENIN EL ATLAS
AMIGO NO GIMA
ATA-LE, DEMONIACO CAIN, O ME DELATA
ANAS USO TU AUTO, SUSANA

Na mesma época em que Bestiárioera um modesto sucesso de vendas e de leituras no Brasil, Osman Lins publicou seu monumental romance Avalovara(Melhoramentos, 1973) um romance estruturado em cima de duas imagens geométricas (uma espiral e um quadrado) sendo que neste último, dividido em cinco linhas de cinco quadrados cada uma, está inscrita a frase latina SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que significa aproximadamente “o lavrador mentém com cuidado o arado nos sulcos”. (Sem contar com as interpretações místico-herméticas, que são muitas).



Cortázar e Osman são autores que nessa época dos anos 1970 estiveram associados ao tal realismo mágico, um estilo ou gênero ou movimento de literatura fantástica latino-americano. Os dois tinham preocupações estruturalistas e uma certa tendência a ver os aspectos literários que envolvem jogo, enigma, decifração, uma espécie de duelo brincalhão, mas profundo, entre o autor e o leitor.

Depois, no entanto, vim a reencontrar os palíndromos em obras mais próximas da ficção científica do que do realismo mágico latino-americano.

Tim Powers, em Expiration Date (1995) postulou a existência de fantasmas de pessoas que ficam, após a morte, meio de bobeira no mundo material. Eles têm uma inteligência rudimentar e com seus filamentos ectoplásmicos conseguem mover coisas materiais levezinhas: poeira, fios de cabelo, pedregulhos, pequenos pedaços de alguma coisa.


Nesse mundo (Califórnia, contemporânea) existe um mercado de espíritos, e a trama do romance, que é cheio de perseguições, fugas e peripécias, é a busca do espírito de Thomas Edison que alguém recolheu num vidro no momento de sua morte – pois a alma da pessoa deixa o corpo juntamente com seu último suspiro.

Nesse mercado de fantasmas, uma das técnicas usadas para atraí-los é escrever palíndromos e deixá-los bem à vista num lugar que se sabe frequentado por eles. Com a inteligenciazinha que têm, eles veem aquela mensagem escrita e têm curiosidade de saber o que é. Começam a ler e se deparam com frases como:

SIT ON A POTATO PAN, OTIS (sente numa lata de batatas, Otis)
GO HANG A SALAMI, I’M A LASAGNA HOG (pode pendurar seu salame, eu gosto é de lasanha)

...e assim por diante. O que acontece? Quando chega ao fim da frase os fantasmas (que eu suponho serem meio míopes, e que leem aquilo com o nariz ectoplásmico quase encostado no papel) voltam no sentido inverso, maravilhando-se com o fato de aquilo continuar a fazer sentido. Com isso, ficam presos ali durante horas, indo e voltando, e quando os caça-fantasmas vêm checar a armadilha é só sugar cada espectro para dentro de um vidrinho adrede preparado.

Sim, admito que uma teoria como essa tem muito pouco de ficção científica. Esqueci de avisar que Tim Powers pertence, mais do que à FC (onde produziu livros notáveis como Os Portais de Anúbis, 1983, e O Palácio dos Pervertidos, 1985) a uma espécie de fantasia urbana contemporânea na faixa de Neil Gaiman, Jonathan Carroll e Angela Carter.

Quem é ficção científica mesmo é Bruce Sterling, um dos inventores do movimento cyberpunk. Em 2000 Sterling publicou um dos seus romances mais divertidos, Zeitgeist, onde ele recorre a um dos seus personagens constantes, Leggy Starlitz (cujo nome se diz inspirado no de Ziggy Stardust, de David Bowie).


Starlitz é o protótipo do sujeito descolado do século 21, uma Deep Web ambulante de informações secretas, truques cibernéticos, manobras marginais. Um talento à margem do sistema, combatendo o sistema e vivendo do sistema.

Em Zeitgeist, Starlitz vive de uma idéia genial: ele monta uma banda feminina de rock chamada G-7, com sete pseudo-cantoras gostosinhas e que não cantam nada (é tudo playback), representando os sete países que mandam no mundo. O mercado-alvo são os países do Terceiro Mundo, cujas populações são incapazes de distinguir a boa música pop da música pop que não vale nada.

A banda não vive em função dos shows: Starlitz quer ficar rico vendendo os direitos relativos a bonecos, chaveiros, mochilas, bonés e toda a parafernália comercial do mundo pop. É uma espécie de “último grande golpe para se aposentar rico”.

A certa altura, Starlitz pega um avião e vai aos EUA, levando a filha pequena, para se aconselhar com seu pai. O pai dele tem uma história interessante. Por detalhes longos demais para explicar aqui, o velho estava justamente no local onde foi explodida uma bomba atômica no deserto do Novo México. A consequência disso é que ele foi projetado no continuum espaço-tempo mais ou menos como alguém espalha com a mão uma mancha de tinta úmida. Ou seja: existem resíduos de Vovô Joe ao longo de todo o restante do século.

Vovô Joe, que era um índio nativo americano, só pode ser contactado via complicados rituais – e quando se comunica é através de palíndromos. O Javanese Navajo (“Oh, navajo javanês!”), exclama ele, que é índio navajo de origem. Mais adiante diz: Ma is as selfless as I am (“Mamãe é tão altruísta quanto eu sou”).

A comunicação Leggy/Vovô é meio indireta, e Leggy escuta os palíndromos ditos pelo fantasma do velho e os explica (com bastante liberdade imaginativa) à filha. Mais ou menos como os gregos deviam fazer com as frases cabalísticas ditas pela pitonisa de Delfos ou pela sibila de Cumas.

O palíndromo serve a escritores assim como um objeto de crucial e perigosa simetria, um objeto sagrado em que a alteração de uma só letra faria desmoronar toda a estrutura. São objetos verbais perfeitos, e como tal podem assumir (dramaturgicamente) poderes mágicos, hipnóticos, simbólicos, sobrenaturais.

Num universo sujeito à Segunda Lei da Termodinâmica, um universo que marcha inexoravelmente numa só direção do Tempo, o palíndromo parece nos dizer que é possível fugir a essa lei de ferro e marchar na direção inversa – mesmo que seja somente para continuar dizendo as mesmas coisas. 










4223) Falas paraibanas (5.4.2017)

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Existe toda uma categoria de expressões populares destinadas a exprimir a idéia de um tempo antigo, de um passado remoto. Fica sempre a questão de saber se algumas delas são somente paraibanas (ou nordestinas) ou se são usadas no Brasil inteiro. Tem muitas coisas que eu às vezes erradamente considero paraibanas apenas porque foi na Paraíba que tomei conhecimento delas.

O teste a que procuro submetê-las é: Eu já ouvi essa expressão sendo usada em outras regiões do Brasil, usadas espontaneamente, como parte da linguagem diária das pessoas? Porque às vezes a pessoa diz algo em Goiás ou em Rondônia mas é algo que lhe chegou via paraibanos, seja na vida real, da música, do cinema. A expressão existe lá longe, mas existe importada. Quem diz muitas vezes percebe isso, diz meio que citando, meio que “arremedando”.

Uma expressão que acho que vale para o Brasil inteiro é “No tempo em que se amarrava cachorro com linguiça”. Ou seja: num tempo em que havia certos usos e costumes que hoje vemos como absurdos.

(A imagem do cachorro e da linguiça reaparece com outra função em outro contexto, para produzir uma idéia semelhante à de “botar a raposa para tomar conta do galinheiro”.)

Uma que acho bem paraibana é: “Isso é do tempo em que Adão era cadete”. Como tantas expressões populares, tem um quê de surrealismo (Adão servindo nas Forças Armadas!) e sua graça repousa em grande parte na música, nessa assonância prazerosa do ‘AD” nas duas palavras.

Outra que é nordestiníssima é “Mil novecentos e cocada”. Também se diz: “Mil novecentos e lá-vai-fumaça”. Gosto de uma expressão equivalente, mas não sei precisar de é da Paraíba ou do Nordeste: Isso é do tempo em que galinha ciscava pra frente.” Outra muito engraçada é: “Isso é do tempo em que cu era quadrado”.

Quem bota essas coisas em circulação é a criatividade popular. São anônimos os inventores das anedotas, das expressõs brincalhonas, das gírias. Claro que quem não é anônimo também pode dar os seus palpites, desde os neologismos de Guimarães Rosa até Fausto Silva, da televisão, que saiu-se com esta: “Este é um programa do tempo em que sexo oral era contar piada de sacanagem”.

Talvez a expressão mais generalizada nesse sentido seja “Isso é do tempo do ronca”. O que é o Ronca? Mistério, embora a explicação cabal deva estar em alguma página de Câmara Cascudo que ainda não me passou sob os dedos. Pode muito bem ter sido algum delegado brabo ou algum ouvidor da Corte, rodeado de puxa-sacos.

Ariano Suassuna tem essa citação saborosa:

O "Badalo"é uma terra que tem, aqui em Taperoá, e que só dá doido!  A velha Maria Galdina é de lá, e vive cantando umas modas-antigas, umas cantigas-velhas, do tempo do ronca e de Dom Pedro Cipó-Pau!
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 488)

“Dom Pedro Cipó Pau” eu nunca ouvi na fala corrente das pessoas. É coisa que Ariano talvez tenha escutado na infância, o que já me traz à memória outra expressão que ouvi por aí: “Ah, isso é muito antigo, é do tempo de Mil Novecentos e Vovô Menino”.  Essa não me vem à memória como coisa nordestina, tenho quase certeza que ouvi no Rio de Janeiro.








4224) Lovecraft, Borges e as paisagens (9.4.2017)

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A literatura de terror, ou de horror, é muito variada. Comporta inclusive, como qualquer gênero, obras que não têm nada a ver entre si. Quando a gente pega dois daqueles livros que pertencem ao gênero de uma maneira bem periférica mesmo, fica difícil encontrar uma definição, uma fórmula única, que inclua os dois de maneira satisfatória.

É um gênero que se define pela reação provocada no leitor, e não por uma convenção narrativa. O romance de mistério, por exemplo, se baseia numa convenção narrativa: acontece algo misterioso, e esse mistério será esclarecido no final. Pode ser um crime, um desaparecimento, a descoberta de algo enigmático, etc.  Uma história de mistério continuará a sê-lo se for humorística, aventuresca, assustadora, intelectual, romântica.

Já a história de terror (ou horror) pode conter quaisquer elementos narrativos, desde que a impressão produzida no leitor seja aquela.  Isso gera algumas polêmicas interessantes, como: Pode uma história humorística ser também uma história de terror? Uma história pode provocar medo e riso ao mesmo tempo? Esse debate nunca vai se esgotar.

Os grandes mestres do terror, no entanto, parecem às vezes buscar um efeito que não é propriamente de medo, mas do que a língua inglesa chama de “awe”: o espanto mudo diante de algo que ultrapassa nossa capacidade de suportar, de entender. É uma forma do Inefável (=aquilo que não se consegue exprimir com palavras), mas um Inefável tingido de assombro, de pequenez impotente. Seria, num certo sentido, aquilo que em Estética se chama “o Sublime”.

“Sublime” é uma palavra muito desvalorizada e distorcida, porque na linguagem cotidiana dizemos “sublime mesmo é o amor de uma mãe pelos filhinhos”, “a visão sublime de um roseiral coberto pelo orvalho do amanhecer”, esse tipo de coisa.  Sublime não é nada disso. 

O Sublime é algo que ultrapassa nossa capacidade de entender e de suportar. Em sua Iniciação à Estética (José Olympio, 2005; 1972) Ariano Suassuna comenta a visão de Emmanuel Kant a respeito do Sublime:

Temos, então, do que foi visto até aqui, que o Sublime resulta da inadequação das idéias do contemplador a um objeto informe e desproporcionado da Natureza, objeto que se apresenta ao espírito contra o interesse dos sentidos e causando uma sensação misturada de prazer e de terror.  (p. 177)

Comentando a visão de Hegel sobre esse tema, diz Ariano:

(T)ambém para estetas mais modernos, essa noção do terror, causado por uma simples meditação poética sobre o homem diante do mundo e de seu destino marcado pela morte, é característica essencial do Sublime. (p. 183)

Isso reafirma a idéia de que a poesia reflexiva, ou filosófica, é, de todos os tipos de Arte, o mais apto a causar, no homem, esse prazer intelectual misturado de terror que é o Sublime. (p. 184)

Não vou meter minha colher na Grande Arte, mas na literatura popular, que é meu domínio, temos o equivalente disso nas obras de “terror cósmico” que exprimem o medo e o deslumbramento impotente do ser humano diante de um Universo incompreensível e pouco hospitaleiro.

Ninguém exprimiu isso tão bem quanto H. P. Lovecraft. Mas Lovecraft não era apenas um escritor de histórias sobre monstros ameaçadores. Descrevendo as paisagens da Nova Inglaterra onde passou praticamente a vida inteira, ele diz, numa carta de 1927:

Às vezes eu tropeço acidentalmente em raras combinações de encostas, ruas que fazem curvas, tetos & empenas & chaminés & detalhes secundários de verde & de paisagem ao fundo, os quais na mágica de um fim de tarde assumem uma majestade mística & um significado exótico que está além do poder de descrição das palavras... Minha vida inteira se dedica a capturar algum fragmento dessa beleza oculta & inacessível; essa beleza toda constituída de sonho, e que no entanto eu sinto ter conhecido muito de perto & nela me deleitado durante éons sem fim antes do meu nascimento e do nascimento deste mundo ou de qualquer outro.

Note-se que o terror e o medo estão ausentes dessa citação, que ainda assim é lovecraftiana até a medula. Lovecraft tinha, acima de tudo, esse “sentimento do mundo”, essa janela mental aberta para o Sublime.

Era uma janela também, aberta na mente de Jorge Luís Borges, autor desta outra descrição muito citada:

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo nos disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de nos dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético. (“A muralha e os livros”, 1950, em Outras Inquisições)

São dois escritores de formações muito diferentes, mas com traços pessoais em comum, exprimindo essa mesma sensação de saber ou perceber algo, ao contemplar o mundo físico, que as palavras não conseguem exprimir.

A comparação entre essas duas citações é feita por um seguidor contemporâneo de ambos, o contista Thomas Ligotti, que justapõe as palavras de Borges e as de Lovecraft para comentar um conto deste último, “The Music of Erich Zann” (no ensaio “The Dark Beauty of Unheard-of Horrors”, em The Thomas Ligotti Reader, Wildside Press, 2003).

Usar a música para se referir ao inexprimível-por-palavras é uma saída elegante para um escritor. Falar de música na literatura é como falar das partículas subatômicas. Nunca podemos descrever de fato o que são e o que fazem, apenas as sensações indiretas que produzem em nós. 

E onde entra o Horror em tudo isso? 

Comparando essas duas citações percebemos que ambas exprimem um sentimento muito parecido. Comparando a obra de Lovecraft com a de Borges, vemos que o Horror aparece na primeira, mas não na segunda.

Eu diria que o Horror nasce da conjunção entre o sentimento do Sublime descrito acima e uma ativa percepção da presença do Mal no Universo, algo que a obra de Lovecraft reitera sem parar. Poucos contos de Borges se destinam a reproduzir essa sensação, e o mais notável é justamente seu assumido pastiche lovecraftiano, “There Are More Things” (em O Livro de Areia).

Borges era um sujeito em paz com o Universo. Lovecraft não. Lovecraft tinha a sensação (que é pessoal, intransferível, como toda visão estética) de que o Universo era basicamente um lugar frio, indiferente, capaz de esmagar seres insignificantes como nós. Para ele, existe um Mal atuante e poderoso em nosso Universo, mesmo que ele desdenhe ou ignore nossa presença. Esse sentimento é estranho a Borges.

Lovecraft experimentava aquela sensação que o crítico John Clute chama de “wrongness”, aquela sensação que Carlos Drummond exprimia, em “Campo de Flores” (em Claro Enigma, 1951):

(...) e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Lovecraft era provavelmente um indivíduo com a mesma percepção do Sublime que a gente encontra em Borges e em Drummond, mas por questões pessoais, emotivas, biográficas, questões ligadas a sua formação como leitor, ele percebia o Cosmos como algo fundamentalmente errado, tormentoso, indiferentemente mau. E é essa combinação única de percepções que faz com que todo grande autor produza uma obra única, pessoal e intransferível.










4225) Curiosidades da música popular (13.4.2017)

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Na gravação de “Bob Dylan’s 115th Dream”, do álbum Bringing it all back home (1965), a música começa com Dylan rasqueando o violão e começando a cantar o primeiro verso da letra: “I was riding on the Mayflower, when I thought I spied some land...”   

Então ele se interrompe e dá uma gargalhada, porque tinha começado a cantar sem fazer a contagem prévia e os músicos ainda não estavam prontos. Dylan dá várias risadas, e depois avisa: “Oh, yeah, take two!”. E desta vez, no segundo take, entram todos juntos.

Aqui:

Depois, certamente ele e o produtor acharam divertido o detalhe e resolveram deixá-lo aparecer no disco. Na época, isso deu um certo susto nos ouvintes, o fato de um “erro” ser mantido na versão final.

Acho que na verdade a gente nem imaginava que pudesse haver um erro ao se gravar uma música. Eu pensava que os músicos se posicionavam no estúdio, a fita começava a rodar e eles tocavam a música inteira até o fim, do jeito que a gente iria escutar depois.

É ingênuo, pensar assim? Talvez seja, mas não é mais ingênuo do que o cara que pegou um ovo de galinha e disse: “Olha que design impressionante, deve dar um trabalho enorme fazer uma coisa tão perfeita”.

Uma música só fica pronta mesmo depois de gravada, ou melhor, depois do disco estar sendo vendido na loja.  E mesmo assim há muitos casos de canções que por mil motivos acabam sendo remixadas ou interferidas, e aparecem diferentes nas prensagens seguintes do disco, semanas ou até meses após o lançamento.

Muitas decisões cruciais sobre a forma final de uma canção são tomadas após a gravação, exigindo que ela seja refeita ou emendada de alguma forma. Reza a lenda que isso ocorreu uma das gravações mais belas e mais famosas de Clara Nunes, o Canto das Três Raças, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte:

Ninguém ouviu
um soluçar de dor no canto do Brasil...
Um lamento triste sempre ecoou
desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro
e de lá cantou...

A versão de Clara Nunes:

Ao fim de cada estrofe, vem um coro de vozes masculinas: “ô-ô-ô, ôôô...”  Esse coro, ao que se diz, não fazia parte da composição original, mas foi incluído pelo maestro arranjador, que, como convém a um bom arranjador, sentiu que “faltava alguma coisa ali”.

Interferências assim, não previstas na forma original da canção, acabam se transformando em algo que é “a cara dela”.

Meu parceiro-ilustrador Mário Bag conta, numa postagem recente no Facebook, este episódio sobre uma das canções mais famosas de Paulinho da Viola, “Foi um rio que passou em minha via”. Todo mundo lembra o trecho que abre a segunda parte, e diz: 

Porém
há um caso diferente
que marcou num breve tempo
meu coração para sempre...

Diz Mario Bag:

Em 1970, enquanto o Paulinho da Viola gravava o samba "Foi um rio que passou em minha vida", um dos membros dos "vocais de apoio" se empolgou depois que o autor cantou o 'porém' ANTES do verso que seguiria: "que marcou num breve tempo", e mandou um contraponto: "Ai, porém!..."

Se tirarmos o "ai, porém" que o cara enfiou no meio da letra, fica um intervalo meio incômodo entre os versos tanto que o "ai, porém!" já faz parte da letra - já está transcrito na letra OFICIAL da canção. E o criador da "chamada" ficou conhecido como "Jorge Porém".

Ou seja, o merecidamente imortalizado Jorge Porém sentiu, como um bom arranjador, mesmo não-oficial, que “faltava alguma coisa ali”. Havia um buraco. Buraco, em música, é muitas vezes um tempo de espera até que se complete um compasso e a melodia + letra possa ser retomada no ponto mais conveniente.

É mais ou menos como você querer subir num carrossel, mas tem que ser no cavalo “X”, aí você precisa esperar terminar a volta e o cavalo passar de novo.

É o que contam Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano em seu precioso livro A Canção no Tempo(Editora 34, vol. 1, págs. 188-189), a respeito da canção “Ó Seu Oscar”, de Wilson Batista e Ataulfo Alves, gravada por Ciro Monteiro:

“Se pertence a Ataulfo o título e a segunda parte, é de Wilson Batista a idéia e o estribilho original da composição:

Cheguei cansado do trabalho
logo a vizinha me falou:
(ó seu Oscar,)
tá fazendo meia hora
que a sua mulher foi embora
e um bilhete deixou...
O bilhete assim dizia:
“Não posso mais, eu quero é viver na orgia!”

Aqui, a gravação de Ciro Monteiro:

“Foi com esses versos, já musicados, que Wilson convidou Ataulfo para fazer a segunda parte. Conta Bruno Ferreira Gomes (no livro Wilson Batista e sua época) que Ataulfo, notando um “buraco” entre o segundo e o terceiro verso, sugeriu a inclusão desse “Ó Seu Oscar” que, além de preencher o claro, acabou substituindo o título, que deveria ser “Está Fazendo Meia Hora”.

Os autores lembram também que na época (1940) o nome “Oscar” era atribuído a qualquer indivíduo bobalhão, mais ou menos como hoje se usa “Mané”.

Tempos de espera como esse são geralmente preenchidos por um tralalá instrumental qualquer. Outras vezes, o compositor, ou o maestro, ou o próprio intérprete, encaixa ali um pedacinho e a música fica completa, sem parecer uma dentadura onde falta um dente no meio.










4226) "A Lua Vem da Ásia" (16.4.2017)

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Uma das formas menos estudadas da literatura fantástica é o que alguns críticos chamam de “romance absurdista”. Muitos inclusive não a consideram parte do fantástico, porque ela não corresponderia à famosa definição de Tzvetan Todorov: “Fantástica é qualquer narrativa que deixe o leitor incerto entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para os fatos narrados.”  Para mim, essa definição cobre uma parte importante da literatura fantástica – mas não toda. Eu chamo a essa parte “o Fantástico Todoroviano”.

Na literatura absurdista, podem aparecer coisas que pertencem ao sobrenatural: animais que falam, mortos que ressuscitam, criaturas bizarras, rupturas do espaço e do tempo, etc.  Em grande parte dela, no entanto, acontecem apenas fatos desprovidos de lógica ou de explicação, comportamentos insensatos, acontecimentos caóticos, enfim: nenhuma lei da natureza é violentada, apenas as coisas ocorrem de maneira maluca.

A Encyclopedia of Science Fiction (http://www.sf-encyclopedia.com/entry/absurdist_sf) dá a seguinte definição, de Peter Nicholls & John Clute:

A palavra “absurdista” entrou na moda da terminologia literária depois de ser usada consistentemente pelo autor e ensaísta Albert Camus (1913-1960) para descrever ficções situadas em mundos onde parecemos estar à mercê de sistemas incompreensíveis. Esses sistemas podem funcionar como metáforas da mente humana – manifestações externas daquilo que J. G. Ballard descreve quando usa o termo “espaço interior” – ou podem funcionar como representações de um mundo externo cruel e arbitrário, no qual as nossas expectativas de coerência racional, seja da parte de Deus, seja da parte de agências humanas, estão condenadas à frustração, como nas obras de Franz Kafka.

O absurdismo pode derivar na direção do sombrio (a literatura de Kafka e Camus, o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch) mas pode derivar também na direção de narrativas menos angustiantes e com um certo humor. É o caso, para dar somente um exemplo, da literatura de Flann O’Brien:

É o caso também do nosso Campos de Carvalho, autor de quatro livros memoráveis nessa linha: A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964). Os dois do meio são mais sombrios; o primeiro e o último tendem ao absurdismo com humor.

A Lua Vem da Ásiafoi reeditado ano passado, em comemoração aos seus 60 anos, pela Ed. Autêntica, de Belo Horizonte. É uma narrativa na primeira pessoa em que o narrador afirma estar num hotel de luxo, mas logo percebemos, quando ele começa a contar sua rotina diária, que está mesmo é num hospício.

A primeira parte do livro se intitula “Vida Sexual dos Perus”, e os capítulos são organizados assim, por ordem de aparecimento: Capítulo Primeiro, Capítulo 18º., Capítulo Doze, (Sem Capítulo), Capítulo sem Sexo, Capítulo 99, Capítulo Vinte, Capítulo I (Novamente), Capítulo, Capítulo CLXXXIV... E por aí vai. Na segunda parte, “Cosmogonia”, os capítulos são indicados pelas letras do alfabeto, na ordem certa até o penúltimo (“N”), sendo que o último se intitula “O. P. Q. R. S. T. U. V. X. Y. Z.”.

Os “hóspedes” do hotel vivem numa certa promiscuidade, levam choques elétricos, recebem medicamentos, têm alimentação precária, estão sempre às turras uns com os outros pelos motivos mais malucos.

Em alguns trechos o narrador põe-se a relatar sua vida pregressa, que cobre décadas e mais décadas e transcorre, numa montanha-russa de fatos extraordinários, em dezenas de países; é o caso dos Capítulos CLXXXIV e 71 da primeira parte, e dos capítulos I e J da segunda, entre outros. Um trecho do primeiro deles dá uma idéia dessa parte memorialística:

Em Cuzco tomei-me de amores por uma rapariga que não sabia uma só palavra de árabe, nem eu tampouco, e pude manter-me dignamente à sua custa durante alguns meses, até que o governo me deportou para a ilha de Sumatra num cargueiro que levava lhamas, algumas buigigangas de grosseira fabricação e meia dúzia de espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a de Madagascar, de onde alcancei a nado a costa de Moçambique, batendo todos os recordes de distância, mas incógnito. (...) Quando dei por mim estava em pleno coração da África Equatorial Francesa, caçando elefantes e traduzindo Virgílio para o alemão, a pedido do padre Kremmer, que não sabia latim. Com a renda obtida de quinze mil elefantes mortos e alguns leopardos empalhados estabeleci-me em Brazzaville com um negócio de falsos diamantes e uma modesta casa de tolerância, servida por três nativas e duas francesas já avançadas em anos e que morreram logo depois. Vítima de injusta perseguição da polícia, mudei-me atabalhoadamente para Leopoldville, que fica logo defronte, e onde, fazendo-me passar por filho bastardo do rei dos belgas, obtive permissão para me instalar com um novo prostíbulo, que se incendiou pouco depois.

E nesse tom ele vai, por páginas e mais páginas.

Martin Esslin, em seu clássico ensaio O Teatro do Absurdo (1961; saiu no Brasil pela Ed. Zahar) situa o espírito desse gênero como o reflexo de uma perda de sentido coletivo da civilização ocidental com a falência da visão do mundo religiosa, que Nietzsche exprimiu no conceito de “Deus está morto” (Assim Falou Zaratustra, 1883). Diz Esslin que a partir dessa época a humanidade começou a penetrar num mundo “privado de um princípio integrador coletivamente aceito, o mundo que se tornou desconjuntado, sem propósito – absurdo”.

Como o ensaio de Esslin é sobre a manifestação teatral desse espírito, ele cita “o aspecto satírico e parodístico do Teatro do Absurdo, sua crítica social, sua ridicularização de uma sociedade mesquinha e inautêntica”.  O mesmo vale para a prosa de ficção, que bebeu em fontes semelhantes: os escritos de Alfred Jarry e Lewis Carroll, a destruição da linguagem promovida pelos Dadaístas, as situações amalucadas vividas pelos comediantes de cinema desde Buster Keaton até os Irmãos Marx, os delírios literários de James Joyce, Guillaume Apollinaire, Lautréamont...

Campos de Carvalho corre nessa mesma raia, com sua sucessão de situações extravagantes, inverossímeis, constrangedoras, cheias de irrisão e de falta de sentido.

Sem falar que é um excelente fazedor de frases, e em cada página saltam trechos hilários e inesquecíveis:

Não há quem não venda a sua própria mãe por três milhões de florins. (p. 82)

A chuva dá de beber aos mortos.  (p. 30)

Tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido.  (p. 118)

Tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho, que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo. (p. 97)

Consegui transpor a nado o estreito de Gibraltar, que não me pareceu tão estreito quanto dizem. (p. 78)

Há instantes em que eu me sinto um chinês perfeito – Chiang O’Lyi, por sinal – e me ponho a rememorar todos os meus antepassados milenários, com rabicho e bigodes em forma de antena, captando o mistério que vem dos subterrâneos do mundo. (p. 150)

Puxa, como passa depressa o tempo, e a gente dentro dele! (p. 142)


Os livros de Campos de Carvalho são livros de exceção em nossa literatura, mas não são livros únicos. Talvez até por sua influência, brotaram títulos igualmente absurdistas como Lugar Público (1965) de José Agrippino de Paula, Necrológio (1972) de Victor Giudice, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros(1973) de Gramiro de Matos (Ramirão Ão Ão), Confissões de Ralfo (1975) de Sérgio Sant’Anna, Catatau(1975) de Paulo Leminski, Malthus(1989) de Diogo Mainardi, O Convento das Alarmadas (1978) de Sérgio Martagão Gesteira, Paniedro (1981) de Herio Saboga e certamente outros.

Uma literatura do riso e do desespero, buscando seu leitor:

Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa – o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo, à procura de outro polo no qual certamente houvesse um outro antípoda à minha espera. (p. 169)











4227) Dez verdades inteiras e uma mentira parcial (18.4.2017)

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(ilustração: Karel Thole)


Está rolando este desafio no Facebook, e resolvi contribuir com os meus episódios.




1) Já fiquei com fome um fim de semana inteiro numa pensão de estudantes, por timidez, sem coragem de entrar no refeitório.

2) Já publiquei textos de humor na revista Mad, na revista Casseta & Planeta, no Pasquim, no Rei da Notícia (Recife), e já fui roteirista dos programas de TV Os Trapalhões, Brasil Legal e Sai de Baixo.

3) Já fiquei preso numa delegacia durante uma tarde porque tinha o cabelo grande e estava andando na rua enrolado num cobertor colorido, mas quando anoiteceu me soltaram.

4) Já tive músicas gravadas por Tim Maia, Ney Matogrosso, Dionne Warwick, Alcione, MPB-4, Mônica Salmaso, Beth Carvalho, Jorge Vercilo, Santanna o Cantador e Mestre Ambrósio.

5) Já entrei por engano na sala de reuniões de Roberto Marinho (na TV Globo), no palco do primeiro Rock in Rio (em 1985) durante um show, e num restaurante caríssimo de Paris procurando amigos meus que na verdade estavam no restaurante vizinho.

6) Já ganhei um prêmio artístico importante, no tempo da inflação braba, e depois da cerimônia esqueci o cheque na carteira; quando lembrei alguns dias depois, ele valia menos da metade.

7) Já escapei de capotagem de automóvel e de assalto com arma de fogo.

8) Já defendi um pênalti cobrado por Jovany, que era o Zico da nossa geração sub-16 nos campinhos de terra do Alto Branco.

9) Já recebi um bilhete manuscrito do poeta Manuel de Barros me pedindo uma cópia da minha canção “Balada do Andarilho Ramón”.

10) Anoto meus sonhos com certa regularidade há quase 40 anos, e muitos deles já foram usados em contos e poemas.

11) Já toquei tarol e bumbo em torcida organizada de futebol, e pelo menos duas vezes fui preso e retirado do estádio pela PM.








4228) Roberto Bolaño e a ficção científica (24.4.2017)

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O chileno Roberto Bolaño virou de uns 10 anos pra cá um queridinho da crítica literária. Tenho amigos que detestam os livros dele e amigos que o acham o novo Cortázar, o novo Galeano. Tudo isso é reflexo da qualidade (má ou boa) do que ele escreve? Somente em parte. Na parte maior é reflexo desta praga que chamam de hype(=ráipe), também conhecida como marketing, badalação, tititi, bajulação às cegas, pressão-eufórica-sobre-o-mercado-consumidor apregoando a chegada (parafraseando os Titãs) do Melhor Escritor Latino-Americano De Todos os Tempos Da Semana Passada.

Li agora O Espírito da Ficção Científica de Bolaño (Companhia das Letras, 2016, traduzido por Eduardo Brandão).

É bom? Olha, não amarra as chuteiras dos três excelentes romances dele que já li: Os Detetives Selvagens (1998), Literatura Nazista nas Américas (1996) e Estrela Distante (1996).

É ruim? Olha, me deu muito prazer na leitura. Se bem que um prazer diluído, pelo fato de ser nitidamente um livro menor. Mas se em vez de 182 páginas o livro tivesse o dobro, o prazer seria o mesmo.

Gosto do jeito que Bolaño escreve. Me identifico com uma certa dicção direta, coloquial, que ele consegue manter, mesmo em textos de tom e cadência muito diferentes, e recebo dele umas lições de simplicidade que sempre me fizeram falta como escritor. (Sou do tipo que a frase tem que vir de cabeça pra baixo num trapézio, vestida de arlequim e iluminada com luz-negra, porque se for somente uma frase então não presta.)

O espírito da ficção científicaé dado como um livro de 1984, publicado apenas agora, pois foi achado entre os papéis do escritor. 

Coisa publicada após a morte é sempre problemática. Nem tudo que ficou inédito é uma obra-prima à espera da glória. A maioria é de coisas que o autor olhou e pensou: “Isso aqui é meio fraquinho, já fiz uma tentativa disso que deu mais certo. Vou guardar somente por motivos sentimentais”. Aí chega a viúva, cheia de contas a pagar, e anuncia que achou “o melhor livro dele”.

A “tentativa que deu mais certo” é Os Detetives Selvagens, do qual este livro é um primeiro esboço ou um primo-pobre. Jovens intelectuais na pindaíba, morando na Cidade do México, produzindo poemas, namorando garotas mais ricas do que eles, bebendo, metendo-se em confusões...

Espíritoé um rascunho de Detetives, até pela estrutura. Poetas jovens e impressionáveis admiram poetas um pouco mais velhos, mais escolados, mais cheios de talento e de expedientes.  A dupla de poetas ingênuos Remo e Jan Schrella, do Espírito, admira José Arco do mesmo modo que o adolescente Juan García Madero, em Detetives, admira a dupla mais calejada formada por Arturo Belano e Ulises Lima.

O contexto é semelhante, tal como a amizade ligeiramente hierárquica mas cordial, a presença de duas irmãs lindas e literárias (praticamente as mesmas que aparecem em Detetives e Estrela Distante). E também as demandas levemente quixotescas. Em Detetives, Belano e Lima reviram o México de cima a baixo à procura de pistas de uma antiga poeta vanguardista, hoje octogenária, Cesárea Tinajero. Em Espírito, Remo e José Arco se dedicam a comprovar (ou desmentir) a afirmativa feita por uma revista obscura de que o México tinha, então, 661 revistas de poesia, sendo que “para o fim do ano vaticinava a arrepiante cifra de mil revistas de poesia, noventa por cento das quais com toda certeza deixariam de existir ou mudariam de nome e de tendência estética no ano vindouro”.

Jovens intelectuais num apartamento, bebendo, fumando, namorando, falando de livros? Não há como não pensar na maciça influência exercida a partir de 1963 por O Jogo da Amarelinha (“Rayuela”) de Julio Cortázar. Um livro que quem ainda não leu sempre associa a um jogo complicado de capítulos saltantes em idas-e-vindas um tanto intimidadoras. Quem leu, sabe que este aspecto, apesar de ser um dos mais visíveis do livro, está longe de esgotá-lo. O Jogo da Amarelinhaé essencialmente um livro sobre boêmios exilados, com pouca grana, discutindo arte, amor, literatura, política, aventura existencial.

A diferença mais visível entre este livro de Bolaño e os outros que o influenciaram está no fato de que o jovem Jan Schrella é um fã ardoroso de ficção científica, e boa parte do livro consta das cartas ingênuas, cartas de fã, fã do Terceiro Mundo, enviadas (sem muita esperança de leitura ou de resposta) para autores como Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg, Forrest J. Ackerman e outros.

Jan Schrella chega a resumir, num capítulo inteiro, um romance de Gene Wolfe, que ele chama de A Sombra, história de uma nave-geração que chega depois de séculos a um planeta em crise, e não sabe se deve voltar para a Terra. Esse argumento (e o nome de alguns personagens principais: Johann, Helmuth, Grit) não correspondem a nenhum livro de Wolfe que eu tenha lido ou localizado na web, ainda mais se aceitarmos que Bolaño estava escrevendo em 1984.

O espírito da ficção científica não é um livro de FC, e nisso provavelmente irá decepcionar o leitor que tiver esta expectativa. Mas parece muito com livros de memórias como The Futurians (1977) de Damon Knight, sobre sua convivência, em apartamentos compartilhados, com James Blish, Cyril Kornbluth, Judith Merrill, Frederik Pohl...  São os relatos daquela época da vida em que todo mundo é jovem e entusiasmado, todo mundo acredita que a literatura pode mudar o mundo (nem toda literatura, é claro – apenas a que ele escreve).

Damon Knight relata naquele volume de memórias as carraspanas, as publicações, os fanzines, as críticas devastadoras que os contistas faziam aos textos uns dos outros, as namoradas roubadas ou compartilhadas, as peças de gosto duvidoso que se pregavam entre si, as polêmicas, os dinheiros emprestados e não pagos...

Aquela época da vida em que todo mundo sonha com um futuro de glória capaz de redimir os colchões desconfortáveis, a roupa sem lavar, a má bebida, o fumo barato, a incerteza sobre o mês que vem. A literatura envolve tudo isto numa aura de aventura e encanto. Talvez não ajude a ganhar a vida, mas como ajuda a viver.

E, perpassando tudo, aquela sensação de tempo dilatado através da bebida, do fumo, da insônia, da alimentação precária, da presença de mulheres por quem é possível se apaixonar no ato de abrir a porta e vê-las pela primeira vez. A arte de suspender o tempo na medula de uma noite feliz que nunca se acaba, como relata Remo na página 113:

Deveria perguntar a alguém ou consultar algum almanaque, às vezes tenho certeza de que foi a noite mais longa do ano. Tem mais, às vezes seria capaz de jurar que não acabou como acabam todas as noites engolidas de repente ou ruminadas por um bom tempo, com um lento amanhecer. A noite de que falo – noite gatesca de sete vidas e com botas de vinte léguas – desapareceu ou se foi em momentos díspares e, à medida que se ia como um jogo de espelhos, chegava ou persistia uma parte e portanto toda ela. Hidra amabilíssima, capaz de, às seis e meia da manhã, voltar inopinadamente às três e quinze por um espaço de cinco minutos, fenômeno que sem dúvida pode ser incômodo para alguns mas que para outros era mais que uma bênção, um perdão real e uma forma de rebobinar.






4229) Dalva de Oliveira (27.4.2017)

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Não sei que idade eu tinha. Geralmente localizo o ano de minhas experiências de antes dos 11 anos em função da casa onde morávamos, porque quase todo ano a gente se mudava: Rua Padre Ibiapina, Rua do Lapa, Rua Solon de Lucena, Rua Miguel Couto, Vila dos Motoristas, Rua Estilac Leal no Alto Banco... Pronto: este último endereço foi a famosa “casa própria” onde meus pais se fixaram. Houve outras mudanças depois, mas entre os quatro e os onze anos eu me localizo tendo como bússola aqueles endereços.

Não sei onde eu morava quando vi o show de Dalva de Oliveira, a Rainha do Rádio, cujo centenário comemoramos este ano.

Sei que foi à noite, num palanque armado na Praça da Bandeira (de costas para o Cine Capitólio), bem em frente ao Correio. Lembro da multidão, não tão grande que me impedisse de ver o palco à distância. Lembro da mulher loura vestida de preto, e minha mãe, segurando minha mão e comentando com alguém: “Olha a volta de ouro no pescoço dela, que coisa linda!”. E lembro da voz.

Eu já sabia que ela era Dalva de Oliveira, aquela voz límpida, sofrida, angustiada, que derramava seus dramas pessoais pela Rádio Borborema, a Rádio Cariri e a Rádio Caturité. Para não falar nas rádios do Rio de Janeiro, que meu pai sintonizava com presteza por entre os chiados da estática, e de onde a mesma mulher brotava, límpida, torturada.

Não conheço quem possa resistir a um tango que começa assim:

Tenho o coração feito em pedaços...
Trago esfarrapada a alma inteira...

O tango é “Cristal”, a única música que me lembro de ter ouvido no show, porque já a conhecia do rádio: “Mais frágil que o cristal.. foi o amor... nosso amor...”  

“Cristal”, gravação original:

A educação sentimental de minha geração indefesa foi no meio das catástrofes morais e afetivas de intérpretes como Dalva, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Maysa e outras, pelo lado feminino, e Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, Orlando Silva, pelo lado masculino.

Muita tinta já deve ter corrido sobre a influência das letras de música no comportamento afetivo dos jovens. Se eu fosse escolher, diria que Nelson Gonçalves e Dalva de Oliveira marcaram para os da minha geração a descoberta do amor, do sexo, da relação entre homens e mulheres, as noções de pecado, de fidelidade, de dominação, de solidão, de gozo e de sofrimento.

As canções do repertório de Dalva reproduzem um universo de paixões extremadas, de desejos intensos, de uma sensualidade que chega quase ao transtorno mental, de noções brutais de posse e de traição. Era um mundo moralmente muito repressor e transgressor – porque essas duas funções são proporcionais. Luís Buñuel dizia que ninguém gozava com mais força do que os espanhóis, porque eram o povo mais reprimido do mundo.

A voz de Dalva é a voz de um arquétipo feminino capaz de rasgar o próprio peito e ofertar o coração em chamas. Privadas de tantos caminhos, as mulheres daquele tempo faziam desaguar na paixão uma energia “capaz de mover milhões de mundos”, como dizia Augusto dos Anjos.

Num tempo de severa censura, não somente nas letras de músicas, essa sensualidade projetava sua potência de ar comprimido nas alusões, nas indiretas, nos subentendidos. Ela cantava:

Que será
da minha vida sem o teu amor,
da minha boca sem os beijos teus
da minha alma sem o teu calor?
Que será
da luz difusa do abajur lilás
que nunca mais irá iluminar
outras noites iguais?
(Marino Pinto & Mauro Rossi)

O que acontecia naquelas noites ficava a cargo da imaginação dos(as) ouvintes, que não precisava de mais que uma fagulha para pegar fogo. A cantora modulava a voz acompanhando as sugestões da letra, ora apequeninando-se em carinho, ora erguendo-se altiva como uma leoa ferida, ora deixando-se devanear em vagas promessas de prazeres terrenos. E o sexo idealizado fulgurava num horizonte de orgasmos múltiplos e ereções vitalícias.

Tudo acabado entre nós, já não há mais nada...
Tudo acabado entre nós, hoje de madrugada...
Você chorou e eu chorei... Você partiu e eu fiquei...
Se você volta outra vez, eu não sei.
(“Tudo Acabado”, J. Piedade & Osvaldo Martins)

Dalva tinha um sotaque que até hoje tenho dificuldade de localizar com precisão. Ela gostava de pronunciar um “erre” como um “ere”: “meu amorrr... parrrtiu... o peixe é pro fundo das rrredes...”  Sua voz cristalina e afinada fez escola em Ângela Maria, Núbia Lafayette e mais tarde até em Elis Regina – esta numa outra “chave” estilística, mais reflexiva, mais senhora de si, menos teatral, mas com a mesma densidade interpretativa e a precisão das notas.

Errei, sim, manchei o teu nome...
Mas foste tu mesmo o culpado:
deixavas-me em casa, me trocando pela orgia,
faltando sempre com a tua companhia...
Lembro-te agora que não é só casa e comida
que prende por toda vida o coração de uma mulher!
(“Errei, sim”, Ataulfo Alves)

Dalva e seu marido/compositor Herivelto Martins foram roteiristas e atores de um drama conjugal vivido nas manchetes e nas reportagens das revistas de fofocas. Traições, separações, reconciliações, brigas, difamações públicas, batalhas judiciais. Uma dessas histórias de escândalo que o showbiz encoraja e vampiriza. Vende disco, vende ingresso. E de tantos em tantos meses, uma nova canção chegava às rádios, respondendo à canção anterior do desafeto, como capítulos de uma telenovela escrita nos moldes de um desafio de violeiros.

A história do machismo brasileiro, das relações de propriedade amorosa, não pode ser escrita sem passar pelas composições de Adelino Moreira para Nelson Gonçalves e as de Herivelto para/sobre Dalva. São aqueles momentos da História em que existe uma sintonia total de emoções entre artistas e público, uma retroalimentação constante de valores, de princípios, de balizas, do que se pode e o que não se pode, do que se deve e o que não se deve.

Claro que a obra não vive apenas disso. São igualmente belos e fortes os momentos de lirismo puro em que a beleza simples da cidade se ergue mais alto do que as querelas pessoais. "Ave Maria no Morro” é um momento lírico que eu comparo à “Alvorada” de Cartola:

Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura..
Lá no morro, barracão é bangalô.
Lá não existe felicidade de arranha-céu
pois quem mora lá no morro
já vive pertinho do céu.
(“Ave Maria no Morro”, Herivelto Martins)

São esses passeios poéticos em que a dor individual se dilui na beleza da paisagem humana. E mostra o morro em seu lado idealizado de um lugar feliz de gente pura, ilusão tão inevitável quanto a de julgá-lo um covil de viciados e assassinos. Foi inclusive por conta da bela imagem de Herivelto que, muitos anos depois daquele show na Praça da Bandeira, eu e Lenine fizemos outra música, falando do desembarque de uma nave de alienígenas num morro carioca:

Os homens se perguntaram:
“Por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou em Natal?”
Vieram pedir socorro, pois quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
(“O dia em que faremos contato”, Lenine & BT)













4230) "Para Belchior, com amor" (30.4.2017)

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Belchior teve a coragem de dar-um-perdido, sair de fininho no meio da festa, largar o palco e deixar o microfone falando sozinho. Ninguém é obrigado a passar a vida toda rodando dentro do moedor-de-carne do show business. Tem gente que gosta e se dá bem. Tem gente que suporta sem grandes prejuízos. Tem gente que se submete porque não tem opção. E tem gente que pensa: “Eu não sou obrigado a ficar fazendo isso a vida toda.”

O primeiro disco dele, hoje pouco conhecido, era cheio de experiências meio concretistas, típicas de quem ainda bambeia entre o livro e o palco. Alucinação (1976) foi o seu primeiro disco a atingir o público, com um impacto que nunca se dissipou.

Os jovens de hoje que o escutam pela primeira vez sentem o mesmo “peso” que a minha geração sentiu há quarenta anos, porque o disco, embora seja um disco tão característico daquela época, vale para qualquer uma, pois fala de sentimentos cíclicos, de situações humanas recorrentes.

E acima de tudo é um disco que bate no ouvinte, mais do que pelos seus temas imediatos, pela surpresa daquela voz improvável (hoje mais ainda!), daqueles versos que vão fundo, daquela verdade pessoal que abre o coração na mesa e com isto ganha o coração coletivo.

Belchior evocava João Cabral (“A Palo Seco”), alfinetava os baianos, trançava numa mesma referência Edgar Allan Poe, Humberto Teixeira e Roman Jakobsson (“raven / never”), os Beatles e Zé Limeira. Era a paleta de referências de uma época em que muitas hierarquias se nivelaram e muitos cânones desceram da torre de marfim para a calçada. Um momento raro em que o Mercado, o único deus onipresente, soube ganhar dinheiro com isso.

Hoje, é praticamente zero a possibilidade de grande sucesso de um tipo de música como a que ele, com menos de 30 anos, fez tocar nas rádios de todo o Brasil. O mercado musical do Brasil encolheu. Ficou menor do que Belchior.

A notícia da morte do poeta me pegou no meio da leitura de Para Belchior com amor (Fortaleza: Miragem Editorial/Expressão Gráfica, 2017), coletânea organizada por Ricardo Kelmer, meu parceiro constante de mesas redondas e de cervejas de formatos variados no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande.

Kelmer reuniu contos, crônicas e pequenos ensaios assinados por Xico Sá, Gero Camilo, Ethel de Paula, Raymundo Netto, Carmélia Aragão, Ricardo Guilherme, Joan Edesson de Oliveira, José Américo Bezerra Saraiva, Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão, Ricardo Kelmer, Roberto Maciel, Thiago Arrais e Jeff Peixoto – catorze cearenses que revisitam suas canções preferidas na obra do bardo de Sobral, lembram episódios, mostram gratidão pelos versos que marcaram suas vidas.

O século 20 foi o Século da Canção Popular. Nunca essa forma de arte teve tanto poder quanto nos últimos cem anos. Nenhuma outra expressão artística atingiu, nesse período, tanta gente, e de forma tão variada, e com influências tão duradouras.  Primeiro, através da indústria fonográfica, depois através do rádio e da TV, depois pela indústria gigantesca dos grandes shows ao vivo, e finalmente pela Internet. Tornou-se uma experiência artística das massas (e frequentemente com alto nível estético), massas com as quais a ópera e a música erudita jamais sonharam.

Em muitos momentos desse processo, na Europa, nas Américas, no Brasil, sucesso popular e novidade estética decolaram juntas para brilhar à vista de todos. A geração de Belchior foi uma das que conseguiram essa façanha em nosso país. Façanha difícil de se repetir na indústria musical de hoje, com sua aposta pesada na fórmula banal e no clichê. Não importa. O que entrou na memória coletiva não sai mais. Os diamantes são eternos.










4231) Descoberto um precursor do cordel nordestino (2.5.2017)

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“Parem as máquinas!..” – gritaria o editor de um jornal, naqueles filmes policiais dos anos 1940. Parem de imprimir o jornal de amanhã, que já está quase pronto! Surgiu uma notícia tão sensacional que vale a pena jogar no lixo esse Corcovado de papel agora inútil, e começar tudo de novo. O furo de reportagem vale a despesa.

Os pesquisadores cearenses Arievaldo Vianna (cordelista, biógrafo de Leandro Gomes de Barros) e Stélio Torquato Lima (cordelista, professor de Literatura na Universidade Federal do Ceará) anunciam agora uma descoberta que vai fazer reescrever boa parte das histórias da literatura de cordel (ou Romanceiro Popular Nordestino, como gostava de chamar Ariano Suassuna).

Todos nós que estudamos o assunto consideramos que o primeiro a escrever e publicar folhetos de feira no Nordeste foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e que o teria feito a partir de meados da década de 1890.  Fala-se também no grande poeta Silvino Pirauá de Lima, mas ao que parece não há folhetos seus, impressos, que comprovem atividade editorial nesse período.

Agora, Arievaldo e Stelio trazem a figura de Santaninha, poeta popular, recitador, rabequeiro, nascido em Touros (RN), criado em Fortaleza, e que teve uma parte importante de sua carreira poética no Rio de Janeiro. A pesquisa está no recém-lançado Santaninha – Um Poeta Popular na Capital do Império (Fortaleza: Editora IMEPH, 2017).

Por ter publicado no Rio, e não no Nordeste, Santaninha foi sempre um nome obscuro. Os cronistas cariocas registravam sua atividade; os autores do livro citam numerosas menções a ele e aos seus versos na imprensa da época. Mas nenhum usa o termo “cordel”, nem parece atribuir maior importância ao “pequeno poeta”, como ele se auto-denominava.

Por outro lado, a maioria dos pesquisadores de cordel devem ter feito o que eu fiz, quando me meti a estudar o assunto: procurava menções nos jornais, catálogos e almanaques das grandes capitais nordestinas, e não do Rio. E assim Santaninha não foi alcançado pelo radar.

Santaninha (João Sant’Anna de Maria, 1827-?) parece ter sido um tipo muito carismático, que cantava acompanhando-se de uma rabeca (que chamava de “Paraibinha”, “Sombrinha” ou “Profetinha”) e vendia folhetos, tanto pessoalmente quanto em pontos de venda fixos, no centro da cidade.

Já no Rio de Janeiro, eis um anúncio típico de sua atividade (Gazeta de Notícias, 5 e 16 de junho de 1881):

[Os folhetos] acham-se à venda na estação da estrada de ferro D. P. II, no quiosque do Luiz de Camões, no largo de São Francisco de Paula, na praça da Harmonia n. 31, no ponto das barcas, num quiosque em Botafogo, no ponto dos bondes e na rua do Resende n. 107.

Os primeiros registros ao seu respeito estão em jornais de Fortaleza em 1873, quando ele é descrito como “bem conhecido e popular”. Nessa época, teria possivelmente cantado para José de Alencar, que estava em visita a sua terra pesquisando para o romance O Sertanejo.

De 1881 em diante ele já aparece na imprensa carioca, anunciando vendas de livretos e até de partituras.

O cantador e cordelista Crispiniano Neto observa em seu prefácio:

[Santaninha] não tinha com quem trocar idéias sobre a Poética desse tipo de poesia do povo, pois estava deslocado no centro efervescente que partia da Serra do Teixeira e invadia o Pajeú, os Cariris e as Borboremas, forjando uma Escola Literária, a mais produtiva e mais variada de todas.

Os autores reproduzem capa de um folheto de Santaninha, do acervo da Biblioteca Nacional, impresso pela Livraria Editora Quaresma, contendo o que são talvez os seus quatro poemas mais conhecidos, publicados originalmente entre 1879-1881:

1) “Guerra do Paraguai”
2) “Imposto do vintém”
3) “O célebre chapéu de sol”
4) “A Seca do Ceará”

Os quatro poemas vêm transcritos integralmente na segunda parte do livro de Arievaldo e Stelio. São poemas em sextilhas, com todas as características que viriam a aparecer 10 ou 12 anos depois nos folhetos de Leandro Gomes de Barros. Há erros ocasionais de ortografia, de rima ou de métrica (que encontramos também em Leandro).  Mas o perfil do Romanceiro está ali, inconfundível e inegável.

Não se tem notícia certa do ano da morte do poeta, mas os autores supõem que ele teria morrido antes de 1888-1889. Sabe-se que ele manifestou (na imprensa do Rio) a intenção de voltar a sua terra natal, e não se tem notícia de obra sua sobre dois fatos como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, sobre os quais um “poeta repórter” como ele não teria deixado de se manifestar poeticamente.

Aqui, um anúncio típico dos que ele fazia publicar na imprensa. É do jornal Monitor Campista (Campos dos Goytacazes-RJ, 4-9-1881):

O pequeno poeta João Sant’Anna de Maria, que toca e canta excelente[sic] versos ao som de sua rabeca Sombrinha, faz tenção, no hoje 4 do corrente, [de] divertir [pela] segunda vez no Hotel da Coroa, por isso faz saber ao respeitável público desta cidade que o divertimento principiará às 4 horas da tarde, e cantará outras variedades. Espera, pois, a muito digna coadjuvação do muito hospitaleiro e ilustrado povo campista. Faz ciente mais que o divertimento será no jardim do mesmo Hotel: a entrada de cada pessoa será de 500 rs. Se não chover.

E algumas sextilhas de A Seca do Ceará, que fala da seca de 1877:

Chegam os pobres arrastados
com a fome com que vêm,
pedindo esmolas aos ricos,
muitos dizem que nada têm;
responde: “Eu estou de saída
para ir pedir também”.

Nsta seca em que nós estamos,
que traz os pobres arrastados,
não pedem só as viúvas,
nem cegos, nem aleijados;
pedem os homens sadios
robustos, moços e barbados.

Não pedem só os caboclos,
negros, pardos e mulatos;
também pede gente branca
que comia em finos pratos,
já hoje come nas cuias
bravas comidas dos matos.

A publicação é da Editora Imeph, de Fortaleza: www.imeph.com.br/ imeph@imeph.com.br

Santaninha foi aquilo que se costuma dizer agora “o ponto fora da curva”, um exemplo que se desvia notavelmente do comportamento mediano dos demais exemplos. Escrevia seus poemas, fazia imprimi-los e os vendia pessoalmente, cantando-os em público. Arievaldo Vianna e Stelio Torquato afirmam que lhe dão o nome de “Precursor e não de ‘Pai da Literatura de Cordel’, que julgamos ter sido merecidamente associado à figura do bardo de Pombal”.

De fato, Santaninha foi um agente isolado, embora, a partir de agora, nomes semelhantes ao seu possam surgir de novas pesquisas agora direcionadas para o ambiente de onde ele surgiu. O papel crucial de Leandro não foi apenas a escritura de folhetos (outros os escreveram antes dele), mas a ação constante e incansável que acabou deixando de ser apenas a iniciativa de um indivíduo, e sim um “processo de consagração da poesia popular como mercadoria rentável e altamente popular”.

Santaninha criou a própria obra, mas Leandro criou, com sua tenacidade e seu exemplo, gerações inteiras de – olha que ironia num país como o nosso – poetas que viveram da própria poesia.










4232) As Formas Simples (5.5.2017)

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Surfando pelos saites de revistas literárias encontrei um artigo da Los Angeles Review of Books, assinado por Marta Figlerowicz, em que ela assinala e comenta o fato de somente agora, 87 anos após sua publicação original em 1930, ter saído a primeira tradução para o inglês do livro Formas Simples de André Jolles (tradução de Peter J. Schwartz, apresentação de Fredric Jameson).

Formas Simplessaiu no Brasil nos anos 1970, pela Editora Cultrix, em tradução de Álvaro Cabral. É um livro em que o autor estuda aquilo que poderíamos chamar de gêneros literários primitivos (no sentido cronológico, não como juízo de valor), ou as formas de contar histórias (e de compactar significados) em fórmulas verbais de pequena extensão.

As “formas simples” estudadas por Jolles eram: a Legenda, a Saga, o Mito, a Adivinha, o Ditado, o Caso, o Memorável, o Conto, o Chiste.

Comentários: “Legenda” me parece ser o mesmo que lenda. “Adivinha” é o que no Nordeste chamamos de “adivinhação”, a velha fórmula do “O que é, o que é?”.  O Ditado me parece ser um termo abrangente que inclui provérbios, aforismos, anexins, etc.  O “Caso” é o que por distorção fonética grande parte do Brasil chama de “cáuso”, aqueles pequenos episódios exemplares ou pitorescos, típicos das zonas rurais.

Acho que o “Conto” não corresponde ao gênero literário a que damos o mesmo nome, porque as formas estudadas por Jolles são formas anônimas, e o nosso “conto” é uma produção individual, assinada, autoral.  O “Chiste” (“joke” em inglês) é sempre um termo impreciso, que pode corresponder a “piada”, “anedota” ou ao mero trocadilho (“pun”), como foi estudado por Freud em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente.

Senti uma ponta de vaidade quando vi esse artigo da LARB, pensando que desta vez chegamos antes dos EUA. Porque a gente lia esse livro de Jolles em Campina Grande nos anos 1970 e eu sempre imaginei que ele fosse um desses clássicos como a Morfologia do Conto de Vladimir Propp. Um desses livros que todo mundo conhece, mesmo que nem todo mundo tenha lido.

O estruturalismo campeou na teoria brasileira dessa época em diante, para o bem e para o mal. Trouxe um monte de coisas boas, porque ia direto ao texto, às unidades básicas do texto, à matéria-prima verbal das histórias. Por outro lado, avançou demais, e cegamente, nessa direção, chegando a um ponto em que a gente era induzido a pensar que o mérito literário do poema tal de Manuel Bandeira se devia à predominância de consoantes fricativas e orações subordinadas.

Como eu sou mais escritor do que crítico, prefiro raciocinar em termos de exemplos, em vez de fórmulas. (Embora a invenção de fórmulas seja um dos meus passatempos mais deleitáveis.)  Dos livros dessa época guardo também a lembrança de O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss, onde ele falava da “ciência do concreto” de alguns povos ditos primitivos.

A literatura, para mim, é uma ciência do concreto: conta-se a história de uma pessoa para que um milhão de pessoas encontrem nela um milhão de diferentes ressonâncias. Um único objeto produzindo um milhão de reflexos, nenhum deles igual aos outros. A arte é uma ciência do concreto. Acho que era Alberto Cavalcanti, o cineasta, que dizia: “Você pode escrever um tratado sociológico sobre os Correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta.”

As “formas simples” de Jolles têm tudo a ver para um estudo histórico e evolutivo de formas essenciais da nossa literatura oral: o romanceiro ibérico, a literatura de cordel. Todas ou quase todas essas formas desaguaram na nossa poesia popular.

São estruturas repetitivas que alguém pode resumir em uma dúzia de páginas (como Jolles faz), mas que são mais bem entendidas através de um conhecimento maciço, uma absorção constante e numerosa, que aos poucos vai deixando claras as linhas estruturais daquilo. Como dizia o professor Raymond Cantel: “O cordel é uma literatura quantitativa. Não se pode saber o que ele é lendo apenas uma meia dúzia de folhetos. É preciso ler muitas centenas para perceber o que cada folheto está dizendo”.

Acho que o livro de Jolles, que os universitários norte-americanos estão conhecendo agora, foi importante para muita gente da minha geração estudar com olhos mais atentos as “estruturas narrativas” (olha aí Tzvetan Todorov botando a cabeça de fora), as formas de contar, o modo como as próprias histórias parecem nos obrigar a contá-las desta ou daquela maneira.

Era um livro que se lia (ou que eu, pelo menos, li) em paralelo com outras abordagens de natureza diferente, mas que se complementavam. Como A Linguagem Esquecida de Erich Fromm, que falava sobre sonhos e linguagem simbólica; como A Dimensão Simbólica de Monique Augras, que cobria um território semelhante; como O Estranho (“The Uncanny”) e O Chiste de Freud, que naquele tempo eram difíceis de obter, e que acho que acabei achando em espanhol (em português só havia de Freud uma coleção encadernada que custava os olhos da cara).

Dizem que agora no século 21 a arte de contar histórias está voltando com força total. Impulsionada pelo crescimento do cinema, da TV, das séries.  Deve ser verdade: nunca vi tanto manual de roteiro nas prateleiras das livrarias.  Todos são úteis, pelo menos para mim: Robert McKee, Doc Comparato, Syd Field, A Jornada do Herói, o escambau. Todos acendem uma luz nova aqui e ali.

O problema com eles é que são formalizações produzidas no interior de uma indústria extremamente competitiva, tensa, focada, especializada, onde todo mundo briga pela eficiência cada vez maior na contação de um tipo só de história: o que é capaz de levar dezenas de milhões de pessoas a comprar um ingresso ou ligar um aparelho para ver aquilo.

O livro de Jolles aborda formas de contar ou de “mostrar” que também atingiram dezenas de milhões de pessoas, com a diferença de que o fizeram no transcorrer de milhares de anos. É uma outra maneira de enxergar a mesma coisa. Ajuda a afastar nossos olhos do momento presente (que sempre enxergamos palmo-em-cima) e ver a arte da narrativa em seu desenho ao longo de milênios.







4233) O Mote Flutuante no repente cubano (9.5.2017)

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Poucas coisas são tão universais na poesia popular das Américas quanto o esquema de rima da décima. A boa e velha décima dos cantadores de viola nordestinos não é só deles. É de toda a América hispânica.

Já vi exemplos de canções no formato de décimas na poesia da Argentina, do Chile, do Peru, do Uruguai, de todo canto.

O exemplo que sempre cito é a canção “Volver a los 17”, gravada por Milton Nascimento e Mercedes Sosa.

Gravação original:

Para que fique bem claro: a décima que falo é a estrofe de dez versos onde o primeiro rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono. Ou, de acordo com a notação tradicional, onde cada letra representa a posição de uma das rimas: A B B A A C C D D C.

É a décima do Século de Ouro da poesia espanhola (entre os séculos 16 e 17). É a mesma décima popularizada no Brasil por Gregório de Matos (1636-1696), o “Boca do Inferno” da Bahia.

Entre nós, a décima serve entre outras coisas para glosar motes, que são versos fornecidos pelo público. O mais comum é que o mote seja de 1 ou de 2 linhas, que irão constituir o final da décima (a linha 10 ou as linhas 9 e 10, respectivamente). Ou seja: o público sugere um final para a décima, e a gente faz os versos restantes, concluindo com o mote que o público forneceu.

Em Cuba os poetas chamam o mote de “pie forzado”, que quer dizer “pé forçado”, ou “pé obrigatório”. Tanto lá como aqui, “pé” é sinônimo de “linha”. Nossos cantadores cantam o “8 pés a quadrão” e o “10 pés a quadrão”, que são estrofes, respectivamente, de oito e de dez linhas.

“Pie forzado” = “linha obrigatória”. É o mote: a linha (ou linhas) que o público fornece, e que o cantador é forçado a incluir no seu improviso.

Vi recentemente uma menção a uma variante curiosa, algo que já tinha me ocorrido usar. Eles o chamam de “pie forzado móvil”, e que seria entre nós algo como “mote flutuante”, sem posição fixa, ou pelo menos, sem a mesma posição o tempo todo.

Suponhamos que o público dá um mote de uma linha: “nas quebradas do Sertão”. Ambos os contendores terão que incluir essa linha em suas décimas improvisadas, mas cada vez numa posição mais à frente.

O primeiro cantador usa o mote como a primeira linha, e diz:

Nas quebradas do sertão
eu vejo tanto vaqueiro
montar cavalo ligeiro
pra perseguir barbatão;
vejo vaqueiro e patrão
chorando a perda do gado
quando o poço está secado
pelo sol que tudo mata,
e a vida se torna ingrata
pro dono e pro empregado.

O segundo deve fazer sua décima colocando o “mote flutuante” na segundalinha:

Mas eu vejo a alegria
nas quebradas do Sertão
quando pipoca o trovão
por cima da serrania;
cai a chuva, quente ou fria,
mesmo assim abençoada
enquanto o “pai da coalhada”
estremece a serra inteira,
e o rio faz cachoeira
pela barranca inclinada.

O primeiro cantador, agora, tem que seguir a ordem e usar o mote flutuante como a terceira linha:

Todo tipo de paisagem
se vê, porque todos são,
nas quebradas do Sertão
essências da nossa imagem.
Nem ilusão nem miragem;
o Sertão tudo comporta
desde a Natureza morta
até a paisagem viva
e uma gente que é altiva
com a seca batendo à porta.

E assim por diante, até que a linha do mote tenha percorrido todas as dez posições, “descendo” ao longo da estrofe.

No saite do repentista Alexis Díaz Pimenta, colhi um depoimento datado de 2012 do qual destaco este trecho (“controversia”, entre os repentistas cubanos, é a nossa “peleja” ou “desafio”):

Normalmente, las competencias de repentismo en Cuba están organizadas en función de las controversias, la variante más conocida y popular de la improvisación poética de la isla. No obstante, en todas las competencias hay también pies forzados, esa modalidad en que el poeta está obligado a improvisar sus décimas y terminarlas con versos ajenos. Las controversias suelen tener una extensión de 10 ó 14 décimas (5 ó 7 décimas por repentista) y al final de cada controversia cada poeta canta 1 ó 2 pies forzados. Esas son las reglas generales. (…)
Tanto en el Primer como en el Segundo Campeonato Mundial de Pies Forzados una de las grandes sorpresas del evento, fue la controversia con pie forzado móvil, un tipo de controversia que, creemos, también llegó para quedarse. Expliquémosla.
Se selecciona un pie forzado “móvil” de la lista general. Una vez escogido el pie forzado, cada poeta debe improvisar una décima usando el pie en un verso distinto, en grado descendiente, del 1 al 10. Es decir, el poeta A utiliza el pie forzado en el verso 1; el poeta B, en el verso 2; el A, en el 3; el B en el 4; el A en el 5; el B, en el 6; el A en el 7; el B en el 8; el A en el 9; y el B en el 10.

El esquema de la controversia quedaría así:

Poeta A........pie forzado.......... verso 1
Poeta B …....pie forzado......... verso 2
Poeta A …....pie forzado..........verso 3
Poeta B........pie forzado..........verso 4
Poeta A …....pie forzado..........verso 5
Poeta B …....pie forzado..........verso 6
Poeta A …....pie forzado..........verso 7
Poeta B …....pie forzado..........verso 8
Poeta A …..pie forzado............verso 9
Poeta B …..pie forzado............verso 10


O “mote flutuante” poderia se constituir numa modalidade interessante, se não para a cantoria de viola, pelo menos para as “mesas de glosas” ou “rodas de glosas” que atualmente andam tão em voga no Sertão. O desafio podia ser feito entre dois improvisadores, com um usando o mote nas linhas 1, 3, 5, 7 e 9, e o outro, intercaladamente, nas linhas 2, 4, 6, 8 e 10.  Ou então poderíamos ter, quando há uma mesa com dez glosadores, o que não é raro, o mote passando de um em um e percorrendo a décima até o fim.

É um tipo de inovação que, para mim, está totalmente de acordo com o espírito da cantoria. Nossos motes variam desde o mote de uma linha apenas, no final, até duas linhas (a 9 e a 10) ou então, num modelo aliás muito usado no Rio Grande do Norte, o mote de duas linhas que aparecem nas posições 4 e 10.

O fato do mote se deslocar ao longo da estrofe requer um cuidado adicional: o mote tem que ser um tipo de frase que possa aparecer no começo, no meio e no fim de uma frase maior, para que os improvisadores possam incluí-lo no seu discurso sem forçar a barra. O exemplo que escolhi, “nas quebradas do sertão”, é isto: uma expressão sugestiva, meio que completa em si mesma, um segmento meio isolado, que não exige necessariamente um preâmbulo nem um complemento.







4234) Ser mãe (13.5.2017)

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(Ela, "a Marquesa")

Ser mãe é ter na parede um quadro com a foto do Padre Cícero e enfiar na moldura, num ritual protetor, dezenas de retratos 3x4 de pessoas conhecidas, parentes ou não, crentes ou não.

Ser mãe é gostar de escutar Agostinho dos Santos, Capiba, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Gal Costa, Altemar Dutra.

Ser mãe é botar água-pra-café no fogo às duas da manhã.

Ser mãe é ler escondido as cartas que o filho recebe das namoradas e dias depois abordar um assunto qualquer como se aquilo tivesse caído do céu no seu colo.

Ser mãe é dizer pro malcriado: “Ah, tá prendendo o choro? Pois vai apanhar até chorar”, e dizer depois: “Agora vai apanhar até parar”.

Ser mãe é contar a história de quando era garota na fazenda, e a porteira do curral caiu por cima dela enterrando-a na lama, e as vacas passaram por cima, e quando arrancaram a porteira e a tiraram dali ela estava inteira e viva, mas passou uma semana tirando terra do caroço do olho.

Ser mãe é receber um poema pelo correio e responder em versos.

Ser mãe é gostar de ler romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, e livros sobre discos voadores, os Exilados de Capela e a vida no planeta Marte.

Ser mãe é iniciar a noite com um olho na novela e outro na sopa no fogão.

Ser mãe é passar alguns anos da vida rodando de ônibus por cidades pequenas do Nordeste vendendo e doando botijões de uma infusão vegetal que é tiro-e-queda contra o câncer.

Ser mãe é perder uma hora antes de ir dormir amarrando um pano com Neocid no cabelo de um sujeito que se recusa a cortá-lo porque o cabelo faz parte da revolução mundial.

Ser mãe é ganhar de presente uma garrafa de Ballantine, agradecer, guardar no armário de bebidas, e ir lá dentro tomar uma dose de Natu Nobilis.

Ser mãe é repetir uma recomendação qualquer nunca menos de três ou quatro vezes, não importa quantas vezes o resignado interlocutor diga: “Sim, eu já sei”.

Ser mãe é saber preparar orelha-de-pau, doce de leite com cravo, imbuzada, gemada com farinha e açúcar, pão torrado com nata.

Ser mãe é ir pro Céu e não voltar pra puxar o pé do filho ateu durante o sono (conforme ameaçado), porque o bichinho está tão cansado, passou a noite escrevendo aquelas coisas que só ele entende.







4235) As invenções de Kafka (17.5.2017)

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Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner Stach, tem o interessante título de Isto é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.

Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!) inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a respeito aqui, em “O moído de Kafka”:


Um artigo em The Paris Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.

A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis, transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer sem gastar muito dinheiro.

Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.

Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito em setembro de 1911, e diz:

(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas de modo sistemático. (...)  Muito pouco disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente incluindo também custos de transporte.

Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus possíveis Guias:

Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas umhotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...) [Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)

Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:

Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p. ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?

Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser desenvolvidas ou não.

Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo como um Europa a 10 dólares por diadaquela época – nunca se concretizou.

A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.

O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.”  No filme, ela é vista durante alguns segundos manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.

Dizia Franz, escrevendo par a noiva:

A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos escritórios editoriais, agências de notícias, etc.

Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.

A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o telefone tem absolutamente que ser inventada.

O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o “Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi pra frente por ser cara e trabalhosa.

Aqui, o artigo da Paris Review:


Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:


(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si.







4236) "No tempo de Almirante" (21.5.2017)

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Poucos caras são tão interessantes na Música Popular Brasileira da primeira metade do século 20 quanto Almirante (1908-1980), que foi cantor, compositor, produtor musical, redator e produtor de programas de rádio, grande pesquisador. Chamava-se Henrique Foreis Domingues; eu sempre pronunciava “Forêis” esse sobrenome dele, mas mudei a pronúncia ao ver esse trecho de uma carta em verso escrita para ele por Aloísio de Oliveira, então (em 1943) morando nos EUA:

(...)
Se eu soubesse mais cedo
que pra você escrever
tivesse que aparecer
um caso de compaixão
que falasse ao coração
do meu amigo Foreis,
eu já teria arranjado
teria falsificado
uma porção de Josués.

Aloísio fazia parte do Bando da Lua e estava nos EUA acompanhando Carmen Miranda, uma das grandes amigas e parceiras musicais de Almirante. Pouca coisa que aconteceu de importante na música radiofônica das décadas de 1930 em diante não teve Almirante por perto. Foi também grande parceiro (e depois biógrafo) de Noel Rosa, seu companheiro do famoso “Bando de Tangarás”.

Em 1930 Almirante compôs (com Homero Dornelas) e gravou o samba “Na Pavuna” – uma gravação histórica. Ao que se diz, foi a primeira música gravada no Brasil utilizando as percussões típicas do samba (tamborim, surdo, pandeiro, cuíca, etc.).  Nenhum produtor musical ou técnico de som da época admitia que esses instrumentos fizessem acompanhamento – era só orquestra ou instrumentação “delicada”. “Na Pavuna” foi um sucesso fenomenal, tão importante quanto o primeiro samba gravado, o “Pelo telefone” de Donga e outros.

“Na Pavuna” (gravação original):

Outros sucessos gravados por Almirante fazem parte de qualquer antologia do samba ou da marchinha brasileira:

“O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe)

“Touradas em Madri” (Braguinha e Alberto Ribeiro):

Gavião Calçudo” (Pixinguinha e Cícero de Almeida):

Sem falar nesta marchinha, que todo torcedor do Treze já cantou:

Marchado Grande Galo” (Lamartine Babo e Paulo Barbosa):

A biografia No tempo de Almirante – uma história do Rádio e da MPB, de Sérgio Cabral, Pai (Ed. Francisco Alves, 1990) me chegou pelas mãos do parceiro musical Alfredo Del-Penho. Traz em 400 páginas um imenso material sobre esse personagem bem humorado, humano, incansável, que era chamado “A Mais Alta Patente do Rádio Brasileiro”. Almirante surgiu e cresceu com o rádio, e a ele, talvez mais do que à música, dedicou sua vida inteira, trabalhando em todas as grandes emissoras da época.

Interatividade é uma palavra que muita gente conheceu depois da Internet, mas era uma das grandes armas do rádio, que pedia insistentemente colaborações, críticas, informações, participação de todo tipo dos seus ouvintes, através do correio. Ouvintes enviavam letras, partituras musicais, recortes de jornais e revistas, para terem seus nomes citados nos programas que acompanhavam fielmente.

Almirante reuniu um espantoso arquivo de informações mandadas do Brasil inteiro para seus programas de variedades, como “Curiosidades Musicais”. Ainda em vida, ele repassou esse arquivo para o Governo Estadual, que criou com este material o atual Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro.

Numa carta de 1940 a Celestino Silveira (pág. 192-193 do livro), Almirante explica essas suas décadas de atividade:

(...) Comecei, então, a fazer o programa sobre todos os assuntos. O título a tudo permitia. Como a Nacional é uma estação de grande penetração  no nosso interior, passei a pedir colaborações dos ouvintes. Graças a isso, pude mostrar pelo Rádio belezas musicais do Brasil inteiramente desconhecidas, coisas que ninguém até hoje teve a iniciativa de fazer com a insistência com que eu faço. Foi assim que consegui fazer irradiar temas folclóricos que nunca tinham sido mostrados pelo Rádio. Cito, como exemplo, as cantigas de roda dos estados, pregões do Rio e dos estados, melodias de trabalho, cantigas e rezas para defuntos, rezas para chamar chuva, melodias de Natal e de Reis, cantigas de cegos e muitas outras. (...) Todos os meus colaboradores, desde o que me enviou a cantiga mais valiosa, até o que me informou o fato mais insignificante, sempre tiveram os seus nomes citados no programa.

Os programas sobre assuntos como o dos instrumentos exóticos (já feito) e o de pios de caça e o da música dos ruídos (ambos ainda por acabar) me fazem perder um tempo inacreditável. Basta que eu diga que o dos instrumentos rústicos tomou-me o ano inteiro. Um ano a fio reunindo elementos, um ano convocando instrumentistas curiosos, tocadores de violino de uma corda só, de flautas e clarinetas de bambu, de folhas de árvore, de lápis nos dentes e os legítimos berimbaus de cuia.

Dessa curiosidade, aliada à possibilidade de recolher e de divulgar, surgiu uma das mais interessantes amizades e parcerias de Almirante – com Luís da Câmara Cascudo, o grande folclorista natalense. À primeira vista parece uma dupla improvável, o cantor de sambas e o etnólogo livresco. Mas os dois pertenciam à mesma espécie, a do pesquisador autodidata, que recolhe informações, estuda, vasculha, pergunta, assedia, junta material, enche estantes e mais estantes de informações que não interessam a ninguém da sua época.

Cascudo, em suas raras idas ao Rio, ia ver no auditório os programas de Almirante. De volta a Natal, mandava-lhe cartas como esta, de 1964 (pág. 338-339):

(...) Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras:
a)      Uma batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários jagunços do meu tope e feição provinciana.
b)      Uma embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um versinho característico. 
Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou, como diz o povo, chorinho de sambinha?
Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra neste peito não senil.

O rádio o tornou uma figura íntima do Brasil inteiro, uma referência de cultura popular como a televisão transformou, décadas depois, figuras como Rolando Boldrin ou Téo Azevedo. Estudiosos como Renato Almeida escreviam para consultá-lo, como nesta carta de 1940 (pág. 196):

Uma coisa que quero lhe perguntar: o que se chama ‘samba de partido alto’? E, mais uma pergunta: o choro tem três partes, quais são elas? Desculpe essas caceteações, mas você é uma das raras pessoas a quem a gente pode se dirigir no Brasil. E um pedido final: você pode mandar-me aquele sambinha da Penha, que cantou no programa de ontem? E, com os votos de um felicíssimo 1940, lhe mando um abraço muito agradecido e afetuoso.

E até um romancista do porte de Érico Verissimo, fazendo pesquisa para um romance de época, lhe escrevia em 1950 (pág. 258-259):

Tomo a liberdade de pedir-lhe uma série de informações de que estou necessitado para o segundo volume do meu romance O Tempo e o Vento– “O Retrato” – e que cobrirá o período entre 1909 e 1945.
a)      Pode dar-me o nome de algumas músicas de dança mais populares entre 1910 e 1915?
b)      E das modinhas, lundus, etc. do mesmo período?
c)       Quais os discos mais populares da famosa Casa Édison, do Rio de Janeiro?
d)      Pode fornecer-me a letra da canção “Talento e formosura”?
e)      E da cançoneta cujo estribilho é “Varre varre, minha vassourinha”?
f)       Quando começou a voga de “O luar do Sertão”?
g)      E a de “Caraboo”?

Como você compreenderá, essas coisas – danças, canções, etc. – ajudam a criar atmosfera e a marcar o tempo. Como um pobre pagamento por essa sua colaboração, estou lhe remetendo um exemplar do primeiro volume de O Tempo e o Vento– com um abraço do seu fã Érico Verissimo.

Almirante entrou na minha vida quando eu tinha cerca de 8 anos, mas não foi através da música. Foi através do seu programa radiofônico de histórias de assombração, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!” – mas este é um assunto ao qual voltarei noutro dia.









4237) "Suje-se gordo!" (24.5.2017)

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(Machado, por Fernão Campos)


É um daqueles contos-não-contos de Machado de Assis, onde ele (ou um “eu” pretextual) conta o que lhe foi contado por um amigo, no intervalo de uma peça chamada A Sentença ou o Tribunal do Júri. Esse amigo narrador diz-lhe que já presidiu júris no passado e que não gostou da experiência, citando o preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”.

O narrador diz, com saborosos detalhes, o que foi o julgamento de um rapaz, “um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel”. Ele comenta a atuação do advogado, do promotor, lembra que o acusado admitia o crime, apenas atribuía a uma terceira pessoa, que não quis nomear, a iniciativa e o benefício do delito, para “acudir a uma necessidade urgente”.

E conta que no júri havia um sujeito ruivo, chamado Lopes, que “parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente”. O júri condena o rapaz por onze votos contra um, mas mesmo assim o Lopes continua inquieto, “e disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos”. Não se corre tal risco, com um placar de 11x1, mas o ruivo Lopes continua indócil, e brada:

– O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

O rapaz é condenado, o tempo vai se passando, e aquela frase não sai da memória do narrador. Suje-se gordo!  A princípio ele fica embasbacado, mas logo explica a expressão: “era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada”.

E muito tempo depois nosso narrador está de novo num júri, e quem se senta no banco dos réus, agora mais magro, mas igualmente ruivo? O mesmíssimo Lopes de antes, portando o mesmo sobrenome, sendo agora acusado de “uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis”, o que nem um pouco lhe tira o sossego:

Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

E nesse momento, vendo as esmagadoras provas acumuladas (inclusive “uma carta de Lopes que fazia evidente o crime”) o narrador é assaltado pela lembrança da famosa frase.

“Suje-se gordo!”. Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”. Queria dizer que um homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

E o narrador machadiano, com a melancolia de sempre, relata que nem todos viram com os olhos dele os autos e os fatos: “Votaram comigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua”.

Um é condenado por um desfalque de duzentos mil réis, outro é absolvido por um golpe de cento e dez contos. Parece familiar?

A Justiça, ao contrário do que se diz, não é cega: seus olhos são tão sadios e tão afinados com a vontade que só enxergam o que querem enxergar. O próprio narrador do conto reconhece que qualquer coisa pode ser interpretada de modo diferente, dependendo de que lado do muro estejamos.

[O rapaz dos duzentos mil réis] disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena: o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

(...)

[O Lopes] ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

De fato, não importa muito o que esteja gravado nos autos ou que seja alegado por um réu. A sentença que proferimos é uma questão de identificação ou repulsa à primeira vista. Lemos ali o que já estávamos prontos para ler.

Nosso atavismo emocional e social nos empurra para o gesto instintivo de condenar uns e absolver outros, e depois dessa decisão tudo se resume a ter alguma retórica inventadora de motivos. O ruivo Lopes estava mais magro, anos depois, mas isso não o impediu de sujar-se gordo, com “a grossura da soma”, e impor respeito ao júri.

Ia esquecendo: o conto é de Relíquias de Casa Velha, de 1906.








4238) O Roteirista do Mundo (28.5.2017)

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Uma coincidência pode ser vista como uma rima. A repetição de algo para criar uma harmonia. Isto, no entanto, nos obrigaria a postular a existência de uma intenção por trás do mundo, a presença de uma Inteligência Superior planejando e executando essas rimas.

Se não existe essa tal Inteligência Superior (e esta é minha hipótese-de-trabalho até hoje) então as coincidências são efeitos indesejáveis, são defeitos. Como a repetição de um som numa frase em prosa, tornando-a desgraciosa. (E levando as pessoas pouco inteligentes a fazer aquele mais idiota dos comentários: “Ih, rimou!”).

Se existe aquilo que Rômulo Azevedo chama de O Roteirista do Mundo, ele de vez em quando fica meio preguiçoso (como todo roteirista, aliás) e ao invés de procurar variar o repertório fica repetindo uma coisa que acabou de escrever, por mera preguiça.

Você vai andando na rua e vê uma loja chamada Armarinho Nossa Senhora de Fátima. Esquece logo. Aí, cinco minutos depois, compra um jornal naquela mesma rua, abre, e vê uma notícia sobre o turismo no santuário de Fátima, em Portugal.

É uma informação tão anódina, com um nome tão comum em nossa cultura, que a gente só percebe por causa da proximidade. Se fosse meia hora depois, talvez a gente nem se tocasse que tinha visto a mesma palavra duas vezes num só dia.

Isso acontece muito durante leituras que trazem uma grande carga de informação (muitos nomes, muitos fatos, etc.) e sobre um assunto que nos interessa, ou seja, que marca de maneira mais funda essas informações em nossa memória imediata – e a deixam mais atenta para possíveis repetições desse nome, que se não fosse assim passariam despercebidas.

Ontem à noite eu estava lendo Eyes Wide Open, livro de Frederic Raphael onde ele conta como escreveu com Stanley Kubrick o roteiro do filme Eyes Wide Shut (“De olhos bem fechados”), com Tom Cruise e Nicole Kidman.

No filme tem a cena em que Cruise entra de penetra numa orgia de milionários porque fica sabendo por acaso a palavra-senha de entrada. Na novela original de Arthur Schnitzler (Traumnovelle, “Uma novela de sonho”), essa palavra é “Dinamarca”.

E Frederic Raphael relata um diálogo com Kubrick em que ele aponta isto como uma intencionalidade do autor (ou um deslize freudiano), porque a esposa do personagem do livro tinha confessado ao marido um episódio de quase adultério com um militar da Dinamarca.

No livro, essa senha foi mudada por Kubrick/Raphael para “Fidelio”, e eu pensei que foi sem dúvida como alusão à infidelidade conjugal.

Isso foi ontem. E hoje de manhã eu peguei um livro de Philip K. Dick e cheguei a um trecho onde ele se refere a pessoas que “fingiam ter desprezo por televisão e por qualquer coisa que aparecesse na telinha, desde números de palhaços até a Ópera de Viena apresentando o Fideliode Beethoven.”

Coincidência? Sim, porque não me lembro de ter ouvido falar nessa ópera (ou nessa palavra, simplesmente) nos últimos seis meses, pelo menos, e agora vêm duas referências em poucas horas, em dois livros totalmente não-relacionados entre si.

É pouco? Tem mais.  Na mesma leitura do livro de Raphael, ontem à noite, li o trecho onde ele comenta que Kubrick, ao convidá-lo para escrever o roteiro, exigiu segredo absoluto, pois não queria que ninguém soubesse que ele estava adaptando o livro de Schnitzler, projeto pessoal que há alguns anos já tinha vazado para a imprensa.

Raphael diz que obedeceu, mas não podia evitar comentários de outras pessoas. Conversando com um amigo seu, chamado Stanley Baron, o amigo perguntou em que projeto ele estava trabalhando no momento. Raphael limitou-se a dizer que era uma história ambientada em Viena. E Baron perguntou: “Será Uma novela de sonho, de Schnitzler?”.

Ele diz que a única outra pessoa que adivinhou a natureza do projeto foi o diretor Stanley Donen (para quem Raphael escrevera o roteiro de Two For the Road), quando soube que Raphael estava trabalhando para Kubrick. Ele sugeriu essa possibilidade porque já sabia há muitos anos – antes mesmo dos dois se conhecerem – que Kubrick tinha interesse por aquele livro.

E Raphael diz:

E assim aconteceu que as únicas pessoas (além da minha esposa Sylvia) que sabiam o segredo também se chamavam Stanley.

Essa repetição de nomes próprios já dá uma boa coincidência, não é mesmo?

Acontece que justamente nesse trecho eu larguei o livro de F. Raphael e peguei, de uma pilha que tinha ao lado, uma coisa completamente não-relacionada para ler. (Eu costumo fazer isso, ler meia hora de cada livro e sair pulando por assuntos completamente diferentes.)

Peguei um volume de contos de Vladimir Nabokov para prosseguir na leitura do conto “The Vane Sisters”, um conto meio fantástico. E a certa altura o narrador do conto relata uma discussão que tem com uma amiga por ter esnobado um conhecido dela, chamado Corcoran, durante uma festa.

Diz Nabokov:

(Ela me disse) que Corcoran tinha salvo de afogamento, em dois oceanos diferentes, dois homens diferentes, que por uma irrelevante coincidência também se chamavam Corcoran.

Ou seja, meia hora depois de ler sobre a coincidência dos três Stanleys, leio em outro livro a coincidência sobre os três Corcorans.

Não, não existe O Roteirista do Mundo: o que existe talvez é O Cordelista do Mundo, e ele repete os efeitos de 3 em 3, como quem está rimando uma sextilha.








4239) O Desespero Precoce (31.5.2017)

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Existe um tipo especial de tragédia que nos faz sofrer ainda mais vividamente, seja uma tragédia da ficção ou uma da vida real. É aquela tragédia que só aconteceu por um triz, que teve tudo (ou pelo menos uma grande possibilidade) de ser evitada, mas que por um pequeno detalhe acabou acontecendo.

Diferentemente daquelas tragédias gregas em que o Universo e o Olimpo em peso parecem conspirar para a infelicidade de um personagem, estas outras tragédias doem ainda mais porque se devem a uma besteira, um detalhe, àquilo que o jagunço Riobaldo, de Guimarães Rosa, chamava “o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos”.

O telefone tocou com a mensagem salvadora, mas não havia ninguém para atender. O socorro chegou, mas não deu mais tempo. Um parafuso qualquer se soltou, e o terrível acidente aconteceu. Uma frase foi ouvida casualmente, e daí em diante vidas foram desgraçadas. A pessoa perdeu um voo por alguns minutos, e foi reencaminhada para o voo fatal. São tantas as possibilidades.

Uma destas, que lembro de vez em quando, é a que chamo de O Desespero Precoce. É quando em função de um problema grave ou de uma catástrofe o personagem se deixa abater por ela, sem saber que ela poderia ser cancelada se ele pelo menos tivesse tido, diante desse problema inicial, um pouco mais de paciência, de serenidade, de cabeça fria.

Um exemplo clássico é o do Romeu e Julieta de Shakespeare. Frei Lourenço, querendo ajudar na fuga dos jovens, sugere a Julieta tomar um narcótico e ser dada como morta, para despertar depois de 24 horas. Fazem isso. Julieta é pranteada, e colocada no sepulcro da família, enquanto Frei Lourenço manda alguém avisar Romeu do plano. O aviso não chega a Romeu: chega a notícia (de conhecimento geral) de que Julieta morreu. Quando ele vai ao sepulcro e a vê em estado meio cataléptico, ele se desespera e se mata.

Esse é o elemento trágico: o Desespero Precoce. Se Romeu tivesse ficado ali se lamentando durante mais umas horinhas, a namorada iria despertar, lépida e fagueira, e os dois seriam felizes para sempre. Mas Romeu reage apressadamente ao primeiro sinal negativo do Destino, e se mata. Fico imaginando um milhão de platéias ansiosas erguendo milhões de braços para o palco e gritando: “Não se mate! Ela está viva!”. O Destino é um dramaturgo cruel.

Há um versinho atribuído a Piet Hein (1905-1996) que diz (o original é em  dinamarquês; achei uma versão em inglês na web):

Losing one glove is certainly painful, 
but nothing compared to the pain 
of losing one, throwing away the other, 
and finding the first one again.

Conheço esta quadra desde pequeno, sob esta forma (muito bem traduzida, aliás):

Perder uma luva é uma dor profunda,
mas não se compara à dor pungente,
de perder essa luva, jogar fora a segunda,
e encontrar a primeira novamente.

É um mito persistente em nossa memória cultural.

Reza outra lenda que quando Teseu partiu para enfrentar o Minotauro no Labirinto de Creta, seu navio usava velas negras; ele prometeu ao seu pai, o rei Egeu, que se voltasse vitorioso as trocaria por velas brancas. Teseu derrotou o Minotauro, mas na comemoração ele e os marinheiros devem ter tomado tanta cerveja que esqueceram de trocar as velas. O rei, ao avistar de longe o navio se aproximando com velas pretas, teve o famoso acesso de Desespero Precoce e jogou-se no mar, morrendo afogado. (Ariano Suassuna usou uma variante deste episódio em seu romance Fernando e Isaura, de 1956).

Penso nessas coisas sempre que leio alguma coisa de ou sobre Walter Benjamin (1892-1940), um filósofo que conheço pouco mas que escreveu textos memoráveis sobre literatura. Benjamin era judeu, e durante a II Guerra tentou fugir da França invadida, para escapar à perseguição nazista. Chegou à Catalunha, de onde esperava seguir para Portugal e dali para os EUA.

Benjamin foi detido na fronteira com um grupo de fugitivos, e ali recebeu a péssima notícia de que o governo espanhol iria repatriar todos eles de volta para a França, para serem entregues aos nazistas. Abatido, exausto, ele se suicidou na noite de 25 de setembro. No dia seguinte, no meio do tumulto da guerra, o grupo de que fazia parte teve seu acesso liberado, e chegou a Lisboa no dia 30.

Romeu só faz falta a Julieta, um rei grego a mais não faz falta a ninguém, mas perder um autor como Walter Benjamin aos 48 anos de idade é algo pra fazer a gente sentir na carne a tragédia do Desespero Precoce. Dá vontade de morrer também.

Existe remédio contra essa síndrome? De que maneira reagir ao primeiro sinal de que não há mais esperanças, de que está tudo acabado? O único contraexemplo que me ocorre é o de Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica.

O episódio é meio controvertido, porque ele costumava fantasiar muito a própria biografia. Mas consta que Burgess trabalhava no Serviço Colonial inglês na Malásia, e em 1959 foi dispensado, ao receber um diagnóstico de câncer terminal. O escritor ficou apavorado, entre outras coisas pela perspectiva de deixar a família passando necessidades. E danou-se a trabalhar.

Reza a lenda que Burgess escreveu cinco romances ao longo do ano de 1960, e em 1964 tinha concluído um total de onze livros, entre eles o famoso A Clockwork Orange, e enquanto isso nada de câncer. Ele podia ter pulado de um prédio, não é mesmo? Mas ao invés de ceder ao Desespero Precoce o nosso amigo sentou no teclado e mandou brasa. Só foi morrer, coitado, em 1993, mais de trinta anos depois da sentença de morte proferida pela medicina.

Seu caso não é o único, pois grande parte da obra do chileno Roberto Bolaño, o autor de Os Detetives Selvagens e de 2666, foi escrita após o diagnóstico de uma doença grave, da qual acabou morrendo mesmo, mas bem depois do previsto, e não sem produzir uma quantidade enorme de livros para garantir o leite das crianças.

Não sei bem como batizar esse impulso; talvez a gente possa chamá-lo de Teimosia Esperançosa, ou a Persistência Obstinada. Não salva a vida de ninguém, mas dá, para um jogo que parecia perdido, a chance de ir para uma prorrogação. E numa prorrogação tudo pode acontecer, inclusive o jogo não acabar.







4240) Todo mundo é ladrão (3.6.2017)

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É um dos bordões mais pessimistas repetidos hoje em dia em nossa malbaratada República, não é mesmo?  

Sou um antigo leitor de romances policiais e já li todo tipo de conversa de bandido. Em romance, em filme, em série de TV, e até mesmo no noticiário jornalístico ou em mesas de bar, a gente está sempre sujeito a ouvir explicações ou justificativas de todo tipo para esse refrão recorrente: “Todo mundo é ladrão”.

Tanto é assim que resolvi começar a colecionar estas justificativas.

“Todo mundo é ladrão... Quem faz o roubo é a ocasião, porque o ladrão já nasce feito.

"Todo mundo é ladrão... Basta ter coragem. Você só não é ladrão porque é frouxo.”

“Todo mundo é ladrão... Quem paga o pato são aqueles que se deixam apanhar.”

“Todo mundo é ladrão... Mas não necessariamente de dinheiro.”

“Todo mundo é ladrão... Por isso é tão fácil roubar usando a mão alheia”.

“Todo mundo é ladrão... Portanto, vá roubar no seu ambiente de trabalho, e me deixe roubar em paz no meu”.

“Todo mundo é ladrão... Você é apenas a exceção-que-confirma-a-regra”.

“Todo mundo é ladrão... Você pensa que não é, mas só porque a oportunidade ideal ainda não apareceu na sua frente”.

“Todo mundo é ladrão... Você pensa que é honesto porque só dá golpezinhos mixurucas, aquelas coisa que todo-mundo-faz.”

“Todo mundo é ladrão... Mas existem os amadores e existem os profissionais.”

“Todo mundo é ladrão... Mesmo que seja escrupulosamente honesto em outros departamentos”.

“Todo mundo é ladrão... Porque isso não é escolha, vem na hemoglobina, vem no DNA”.

“Todo mundo é ladrão... Só que alguns nunca precisaram disso pra valer.”

“Todo mundo é ladrão...E tem tanto defeito mais importante do que esse!”

“Todo mundo é ladrão... E o mundo é dos mais competentes”.






4241) Bob Dylan: a aula do Nobel (5.6.2017)

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Conferência Nobel sobre Literatura 2016
Bob Dylan
Gravada em 4 de junho de 2017 - Los Angeles, CA
Tradução: Braulio Tavares


Assim que recebi este Prêmio Nobel de Literatura, comecei a imaginar de que maneira precisa minhas canções se relacionam com a literatura.

Eu queria refletir sobre isto e ver onde era a conexão. E vou tentar articular essas reflexões para vocês.

Provavelmente vou fazer isso usando muitos rodeios, mas espero que o que eu vou dizer valha a pena, e explique minhas intenções.

Se eu me reportar ao início de tudo, acho que tenho de começar com Buddy Holly.

Buddy morreu quando eu tinha por volta de 18 anos, e ele tinha 22. No momento em que o ouvi cantar pela primeira vez, senti que tínhamos afinidade.

Senti que havia uma relação, como se ele fosse um irmão mais velho. Cheguei até a achar que eu me parecia com ele.

Buddy tocava a música que eu amava – a música que eu cresci escutando: country western, rock’n’roll e rhythm and blues.

Três correntes musicais diferentes que ele misturava e destilava num único gênero. Uma marca.

E Buddy escrevia canções – canções que tinham belas melodias e versos cheios de imaginação. E ele cantava muito bem – cantava em muitas e diferentes vozes.

Ele era o arquétipo. Tudo que eu não era e que queria ser. Eu o vi somente uma vez, e isto foi poucos dias antes da sua morte.

Tive que viajar 100 milhas para vê-lo tocar, e não me decepcionei.

Ela tinha força, era eletrizante, tinha uma presença dominadora. Eu estava a apenas dois metros de distância. Ele era hipnótico.

Eu olhava o rosto dele, as mãos, o modo como ele marcava o ritmo com o pé, seus grandes óculos de armação preta,

Os olhos por trás dos óculos, o modo como segurava a guitarra, a postura de pé, o terno caprichado.

Olhei tudo nele. Ele parecia ter mais do que 22 anos.

Algo nele parecia ser permanente, e ele me transmitia uma enorme convicção.

Então, de repente, a coisa mais estranha aconteceu. Ele me olhou direto, no fundo dos olhos, e me transmitiu alguma coisa.

Algo que eu não sabia o que era. E aquilo me arrepiou por inteiro.

Acho que foi apenas um ou dois dias depois disto que o avião dele caiu.

E alguém, alguém que eu nunca vira antes, me deu um álbum de Leadbelly, o disco que tinha a canção “Cottonfields”.

Aquele disco mudou minha vida, naquele local e naquele momento. Me transportou para um mundo que eu jamais teria conhecido.

Era como se tivesse havido uma explosão. Como se eu estivesse andando na escuridão e de repente tudo ao meu redor se iluminasse.

Era como se alguém tivesse imposto as mãos sobre mim. Eu devo ter tocado aquele disco umas cem vezes.

O disco era de um selo de que eu nunca tinha ouvido falar, e dentro havia um folheto com anúncios de outros artistas daquele selo:

Sonny Terry e Brownie McGhee, os New Lost City Ramblers, Jean Ritchie, grupos de cordas.

Eu nunca tinha ouvido falar em nenhum deles. Mas deduzi que se pertenciam ao mesmo selo de Leadbelly eles tinham que ser bons, então eu precisava ouvi-los.

Eu queria saber tudo a respeito deles e tocar aquele tipo de música. Eu ainda amava a música que crescera ouvindo, mas, naquele momento, eu a esqueci.

Nem pensava mais nela. Naquele momento, ela tinha ficado lá para trás.

Eu ainda não tinha ido embora de casa, mas estava impaciente. Queria aprender aquela música, e conhecer as pessoas que a tocavam.

Finalmente saí de casa, e comecei a aprender a tocar aquelas músicas. Eram diferentes das canções de rádio que eu vinha escutando até então.

Eram mais vibrantes, mais cheias de vida. Nas canções do rádio, um artista podia emplacar um sucesso como quem joga dados ou cartas, mas no mundo folk isso não tinha importância.

Tudo ali fazia sucesso. Tudo que era preciso ali era ser bom de verso e saber tocar a melodia. Algumas daquelas canções eram fáceis, outras não.

Eu tinha um jeito natural para as antigas baladas e os country blues, mas todo o resto eu tive que aprender do zero.

Eu tocava para públicos pequenos, às vezes não mais do que quatro ou cinco pessoas numa sala ou numa esquina.

Era preciso ter um repertório amplo, e era preciso saber o quê tocar, e em que momento.

Algumas canções eram intimistas, outras você tinha que gritar para poder ser ouvido.

Ouvindo os antigos artistas folk e cantando suas canções, você aprendia o vernáculo deles. E o internalizava.

E você canta os ragtime blues, as canções de trabalho, os cânticos marítimos da Georgia, as baladas dos montes Apalaches e as canções de vaqueiro.

Você escuta os aspectos mais sutis, e aprende cada detalhe.

Você aprende como são as coisas. Puxar a pistola e guardá-la de novo no bolso.

Abrir caminho no meio do trânsito, falar no escuro. Você aprende que Stagger Lee era um sujeito mau e que Frankie era uma boa menina.

Você aprende que Washington era uma cidade burguesa, e você escuta a voz grave e profunda do profeta João em Patmos e você vê o Titanic afundar num riacho lamacento.

Você fica amigo do rebelde andarilho irlandês e do rebelde rapaz da colônia. Você escuta os tambores surdos e os pífanos que tocam devagar.

Você vê o lúbrico Lord Donald enfiar a faca na esposa, e vê que os corpos de tantos camaradas seus estão envoltos em linho branco.

Eu já estava de posse do vernáculo. Eu sabia a retórica.

Nada daquilo se perdeu: os recursos, as técnicas, os segredos, os mistérios, e eu conhecia também todas as estradas desertas por onde aquela música viajou.

Eu podia fazer aquilo tudo se conectar e se mover com a correnteza dos meus dias.

Quando comecei a escrever minhas próprias canções, o linguajar folk era o único vocabulário que eu conhecia, e foi o que usei.

Mas eu tinha outra coisa. Eu tinha mestres, e sensibilidade, e uma visão do mundo bem informada. Já tinha isso há algum tempo. Aprendi isso na escola fundamental.

Dom Quixote, Ivanhoé, Robinson Crusoe, Uma História de Duas Cidades e todo o resto – as leituras típicas do ensino fundamental, que nos forneciam um modo de encarar a vida,

um entendimento da natureza humana, e um padrão com que comparar as outras coisas.

Eu trazia isso tudo comigo quando comecei a escrever minhas letras. E os temas daqueles livros acabaram desaguando em muitas das minhas canções, conscientemente ou sem intenção.

Eu queria escrever canções diferentes de tudo que já houvesse sido escutado, e esses temas eram fundamentais.

Há livros específicos que permaneceram comigo desde que eu os li na escola, quando garoto, e gostaria falar a respeito de três deles.

Eles são Moby Dick, Nada de Novo na Frente Ocidental e A Odisséia.

Moby Dické um livro fascinante, um livro cheio de cenas de alta dramaticidade e de diálogo dramático. É um livro que impõe exigências ao leitor.

O enredo é linear.

O misterioso Capitão Ahab, o capitão de um navio chamado Pequod, é um egomaníaco com uma perna de pau, perseguindo sua nêmese, a grande baleia branca Moby Dick, que arrancou sua perna.

E ele a persegue por todo o Atlântico, rodeando a extremidade da África e indo até o Oceano Índico.

Ele persegue a baleia em ambas as faces da Terra. É um objetivo abstrato, nada que seja concreto ou definido.

Ele chama Moby Dick “o Imperador”, e a vê como a encarnação do mal. Ahab tem esposa e filho lá em Nantucket, e fala de vez em quando sobre eles.

A gente pode antever o que vai acabar acontecendo.

A tripulação do navio é formada por homens de diferentes raças, e aquele que primeiro avistar a baleia receberá uma moeda de ouro.

Há uma porção de símbolos do Zodíaco, alegorias religiosas, estereótipos. Ahab encontra outros navios baleeiros, e pressiona os capitães pedindo informação sobre Moby.

“Vocês a viram?”  Há um profeta maluco, Gabriel, em um dos navios, e ele prediz a desgraça final de Ahab.

Ele diz que Moby é a encarnação do deus dos Shakers, e que mexer com ela conduz ao desastre. Diz isso ao capitão Ahab.

Outro capitão de navio, o capitão Boomer, perdeu um braço lutando com Moby Dick. Mas ele suporta isto, e está feliz por ter sobrevivido.

Ele não consegue aceitar a sede de vingança de Ahab.

Esse livro mostra como homens diferentes reagem de maneiras diferentes à mesma experiência.

Há muita coisa do Velho Testamento, de alegorias bíblicas: Gabriel, Raquel, Jeroboão, Bilda, Elias,

Nomes pagãos também: Tashtego, Flask, Daggoo, Fleece, Starbuck, Stubb, Martha’s Vineyard. Os pagãos são adoradores de ídolos.

Alguns adoram pequenas imagens de cera, outros adoram imagens de madeira. Alguns adoram o fogo. Pequod é o nome de uma tribo indígena.

Moby Dické uma história de aventura marítima. Um dos homens, o narrador, diz: “Chamai-me Ismael”.

Alguém lhe pergunta de onde ele é, e ele diz: “Não está em nenhum mapa. Os lugares de verdade nunca estão”.

Stubb não atribui significado a nada, diz que tudo está predestinado. Ismael tem vivido em navios a vida inteira.

Ele chama os navios de sua Harvard e Yale. Ele se mantém distanciado das pessoas.

Um tufão atinge o Pequod. O capitão Ahab acha que aquilo é um bom agouro. Starbuck pensa que é um mau agouro e pensa em matar Ahab.

Assim que a tempestade passa, um tripulante cai do mastro e se afoga, dando um prenúncio do que está para acontecer.

Um pastor Quaker, um pacifista que é na verdade um voraz homem de negócios, diz a Flask,

“Alguns homens que recebem ferimentos são conduzidos para Deus, outros são conduzidos para a amargura.”

Tudo se mistura ali. Todos os mitos: a Bíblia judaico-cristã, os mitos hindus, as lendas britânicas, São Jorge, Perseu, Hércules – todos são caçadores de baleias.

Mitologia grega, a atividade arrepiante de retalhar uma baleia.

Muitos fatos deste livro, conhecimentos geográficos, sobre óleo de baleia (bom para a coroação dos reis), as famílias nobres da indústria da baleia.

O óleo da baleia é usado para ungir os reis.

A história da baleia, a frenologia, a filosofia clássica, as teorias pseudo-científicas, as justificativas para a discriminação—

Tudo é jogado ali dentro, e nada é sequer um pouco racional.

Gente culta, gente inculta, a busca de ilusões, a busca da morte, a grande baleia branca. Branca como um urso polar, branca como o homem branco, o imperador, a nêmese, a encarnação do mal.

O capitão insano que perdeu a perna anos atrás tentando atacar Moby com uma faca.

Vemos apenas a superfície das coisas. Podemos interpretar o que jaz por baixo dela da maneira que quisermos.

Tripulantes andam pelo convés escutando sereias, e tubarões e abutres seguem o navio. Lendo caveiras e rostos como quem lê um livro.

Aqui está um rosto. Vou pô-lo à sua frente. Leia se puder.

Tashtego diz que morreu e nasceu de novo. Seus dias extra são um dom.

Mas ele não foi salvo por Cristo, ele diz que foi salvo por outro homem, e um não-cristão ainda por cima. Ele parodia a ressurreição.

Quando Starbuck diz a Ahab que ele devia deixar para trás o que aconteceu, o capitão, zangado, retruca: “Não venha me falar de blasfêmia, homem, eu atacaria o sol se ele me insultasse”.

Ahab, também, é um poeta eloquente. Ele diz: “O caminho da minha idéia fixa está provido de trilhos do tamanho da bitola da minha alma”.

Ou esta frase: “Todos os objetos visíveis são máscaras de papel machê”. Frases poéticas boas de citar, insuperáveis.

Finalmente Ahab avista Moby, e os arpões são preparados. Os barcos descem para a água. O arpão de Ahab foi batizado com sangue. Moby ataca o barco de Ahab e o destrói.

No dia seguinte, ele avista Moby de novo. Os barcos descem novamente. Moby ataca o barco de Ahab novamente.

No terceiro dia, mais um barco. Mais alegoria religiosa. Ele se ergueu dos mortos. Moby ataca mais uma vez, chocando-se contra o Pequod e afundando-o.

Ahab se enrola nas cordas do arpão e é jogado para fora do barco, para o sepulcro nas águas.

Ismael sobrevive. Ele fica no mar, flutuando com um ataúde. E isto é tudo. É toda a história.

Este tema, e tudo que ele sugere, acabaria surgindo em várias das minhas canções.

Nada de Novo na Frente Ocidentalfoi outro livro que me marcou. Nada de Novo na Frente Ocidentalé uma história de horror.

Este é um livro onde você perde sua infância, sua fé num mundo que faça sentido, sua preocupação com os indivíduos.

Você está preso num pesadelo. Arrebatado por um redemoinho misterioso de morte e de dor. Você está se defendendo da aniquilação.

Você está sendo varrido do mapa. Houve um tempo em que você era um jovem inocente que sonhava em ser pianista de concerto.

Houve um tempo em que você amava a vida e amava o mundo, e agora você os está reduzindo a pedaços com uma arma.

Dia após dia, os marimbondos o ferroam, e os vermes bebem seu sangue. Você é um animal encurralado. Não se encaixa em lugar nenhum.

A chuva cai, monótona.

Há intermináveis tiroteios, gás venenoso, gás dos nervos, morfina, faixas ardentes de gasolina, a caça febril por comida, a gripe, o tifo, a disenteria.

A vida desmorona ao seu redor, e as balas passam zunindo. Esta é a mais baixa região do inferno.

Lama, arame farpado, trincheiras cheias de ratos, ratos comendo os intestinos de homens mortos, trincheiras cheias de sujeira e excremento.

Alguém grita: “Ei, você aí, fique de pé e lute!”

Quem sabe quanto tempo essa loucura vai demorar? A guerra não conhece limites. Você está sendo aniquilado, e essa sua perna está sangrando demais.

Você matou um homem ontem, e conversou com o corpo dele. Você lhe disse que quando isto tudo terminar, você vai passar o resto da sua vida cuidando da família dele.

Quem ganha alguma coisa com isto? Os líderes e os generais ganham fama, e muitos outros têm lucros financeiros.

Mas é você quem faz o trabalho sujo. Um dos seus camaradas diz: “Espere aí, onde você está indo?” e você responde: “Me deixe em paz, eu volto num minuto”.

E você sai andando por entre o bosque da morte, à procura de um pedaço de salsicha. Você não entende como é que qualquer pessoa na vida civil possa ter algum propósito na vida.

Todas as preocupações deles, os seus desejos – você não consegue compreendê-los.

Mais metralhadoras disparam, mais pedaços de corpos pendem dos arames farpados, mas pedaços de braços e pernas e cabeças onde as borboletas pousam sobre os dentes,

Mais feridas horrendas, o pus brotando dos poros, ferimentos no pulmão, ferimentos grandes demais para um corpo, cadáveres soltando gases, corpos de defuntos produzindo ruídos repugnantes.

A morte está por toda parte. Nada mais é possível. Alguém vai matá-lo e usar seu corpo para praticar tiro ao alvo.

As botas também. São sua coisa mais preciosa. Mas daqui a pouco estarão nos pés de alguém.

Os franceses estão surgindo por entre as árvores. Bastardos impiedosos. Sua munição está acabando. “Não é justo nos atacar de novo tão rápido”, diz você.

Um dos seus colegas está caído na lama, e você quer levá-lo para o hospital de campanha. Alguém diz: “Pode economizar essa viagem.”

“O que quer dizer?”  “ Vire o corpo dele, vai ver o que é”.

Você espera para ouvir as notícias. Não entende por que essa guerra não acabou ainda.

O exército está tão entregue a seus próprios recursos para repor tropas que está recorrendo a meninos, que têm pouca utilidade militar, mas têm que ser convocados de qualquer modo, porque os homens estão acabando.

A doença e a humilhação deixam você de coração partido. Você foi traído pelos seus pais, seus professores, seus ministros, seu próprio governo.

O general que fuma devagar seu charuto traiu você também – transformou você num bandido e num assassino. Se você pudesse, meteria uma bala na cara dele.

O comandante também.

Você fantasia que se tivesse dinheiro, ofereceria uma recompensa para qualquer homem que tirasse a vida dele por qualquer meio.

E se perdesse a vida fazendo isso, o dinheiro iria para seus herdeiros. O coronel, também  - com seu caviar e seu café. É outro.

Passa todo o seu tempo no bordel dos oficiais. Você gostaria de vê-lo morto também. Mais soldados rasos cantando “whack for me daddy-o” e “whiskey in the jars”.  [https://en.wikipedia.org/wiki/Whiskey_in_the_Jar ]


Você mata trinta, e outros trinta se erguem no mesmo lugar. O mau cheiro enche suas narinas.

Você sente desprezo pela velha geração que mandou você para essa loucura, para essa câmara de tortura. À sua volta, seus camaradas estão todos morrendo.

Morrendo de ferimentos abdominais, amputações duplas, fêmures destroçados, e você pensa: “Eu só tenho vinte anos, mas sou capaz de matar qualquer um”.

“Até meu pai, se aparecer aqui”.

Ontem, você quis salvar um cão-mensageiro ferido, e alguém gritou: ”Não seja idiota”.

Um francês está gorgolejando aos seus pés. Você enterrou a baioneta no estômago dele, mas ele ainda continua vivo.

Você sabe que devia acabar o serviço, mas não consegue. É você quem está numa cruz de verdade, e um soldado romano pondo uma esponja com vinagre em sua boca.

Os meses passam. Você recebe uma licença para visitar a família.

Você não se comunica mais com seu pai. Ele diz: “Você seria um covarde se não se alistasse”.

Sua mãe também; quando o acompanha até a porta ela diz: “É melhor ter cuidado com aquelas garotas da França”.

Mais loucura. Você luta durante uma semana ou um mês, e avança dez metros. E na semana seguinte é forçado a recuar.

Toda aquela cultura de mil anos atrás, aquela filosofia, aquela sabedoria – Platão, Aristóteles, Sócrates – o que aconteceu com ela? Ela devia ter evitado isto.

Seus pensamentos se voltam para sua casa. E mais uma vez você é um estudante caminhando entre as árvores. É uma lembrança agradável.

Mais bombas caem à sua volta. Você precisa se controlar agora. Não pode sequer olhar para alguém com medo de algo imprevisível que possa acontecer.

A vala comum. Não há outra possibilidade.

Então você vê as flores brotando, e percebe que a natureza não é afetada por aquilo tudo.

As árvores, as borboletas vermelhas, a beleza frágil das flores, o sol – você vê como a natureza é indiferente àquilo tudo.

Toda a violência e o sofrimento da humanidade. A natureza nem sequer se dá conta.

Você está tão sozinho. Então um estilhaço de obus acerta o lado de sua cabeça e você morre.

Você foi riscado, eliminado. Foi exterminado.

Eu pousei esse livro e o fechei. Nunca quis ler outro romance de guerra depois, e não li.

Charlie Poole, da Carolina do Norte, tem uma canção que tem a ver com isto. Ela se intitula “Você Não Está Falando Comigo”, e a letra diz assim:

“Eu vi um letreiro numa janela quando vinha pela cidade um dia. Venha para o Exército, veja o mundo e o que ele tem para dizer.

“Você vai conhecer belos lugares com uma turma animada, vai encontrar gente interessante, e aprender a matá-la também.

“Ah, você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Eu posso ser doido e tudo o mais, mas veja que eu tenho bom senso

“Você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Matar com um a arma não parece muito divertido. Você não está falando comigo.”

A Odisséiaé um grande livro cujos temas chegaram até as baladas de muitos compositores:

“Indo Para Casa”, “Os Verdes Relvados da Minha Terra”, “Casa na Campina”... e nas minhas canções também.

A Odisséiaé a história estranha e aventurosa de um homem adulto tentando voltar para casa depois de lutar numa guerra.

Ele está numa longa viagem para casa, cheia de acidentes e armadilhas.

A maldição dele é vaguear. Ele está sendo sempre levado para o mar, sempre perseguido. Grandes rochedos caem perto do seu barco.

Ele irrita pessoas que não deveria irritar. Na sua tripulação há uma porção de encrenqueiros. Traidores.

Seus homens são transformados em porcos, e depois em homens jovens e bonitos. Ele está sempre tentando resgatar alguém.

Ele é acostumado a viagens, mas desta vez está fazendo paradas demais.

Ele está perdido numa ilha deserta. Encontra cavernas vazias e se esconde nelas. Encontra gigantes que dizem: “Vou comer você por último”.

E ele escapa dos gigantes.

Ele tenta ir para casa, mas está sendo empurrado e retido pelos ventos.

Ventos inquietos, ventos gelados, ventos inimigos. Ele viaja para longe, e depois é empurrado de volta pelo vento.

Ele está sempre recebendo avisos de coisas que estão por vir. Tocando em coisas proibidas. Há dois caminhos para escolher, e ambos são más escolhas. Ambos são incertos.

Num você pode se afogar, no outro pode morrer de fome.

Ele entra no desfiladeiro estreito onde redemoinhos espumejantes o engolem. Encontra monstros de seis cabeças com dentes afiados. Raios caem sobre ele.

Galhos altos de onde ele se joga e se agarra para fugir de um rio furioso.

Deuses e deusas o protegem, mas há outros que querem matá-lo.

Ela muda de identidade. Está exausto. Adormece, e acorda com um som de gargalhada.

Ele conta sua história a alguns estranhos. Esteve fora durante vinte anos.

Ele foi carregado por alguém e largado ali. Botaram drogas no seu vinho. Foi uma estrada muito dura de trilhar.

De muitas maneiras, estas mesmas coisas aconteceram com você.

Também botaram drogas no seu vinho. Você também dividiu a cama com a mulher errada.

Você também foi seduzido pelo encantamento de vozes mágicas, vozes doces com estranhas melodias.

Você também chegou até aqui e foi empurrado de volta.

Você também passou por perigos iminentes.

Você irritou gente que não devia.

Você também andou sem destino por este país. E você também sentiu o sopro daquele vento mau, aquele que não traz nenhuma coisa boa.

E isto ainda não é tudo.

Quando ele volta para casa, as coisas não estão melhores. Canalhas invadiram sua casa e estão tirando proveito da hospitalidade da esposa dele.

E eles são muitos.

E embora ele seja maior que todos, e seja o melhor em tudo – o melhor carpinteiro, o melhor caçador, o melhor conhecedor de animais, o melhor marinheiro –

Sua coragem não vai poder salvá-lo, mas sua esperteza sim.

Todos esses penetras vão pagar por terem profanado o seu palácio.

Ele se disfarça como um mendigo sujo, e um dos criados o derruba na escada a pontapés, com arrogância e estupidez.

A arrogância do criado o revolta, mas ele controla sua raiva. Ele é um contra uma centena, mas todos eles vão tombar, mesmo os mais fortes.

Ele não era ninguém. E quando tudo acaba, quando finalmente ele pode dizer que está em casa, ele senta com sua esposa, e conta a ela as histórias.

Então, o que significa tudo isto?

Eu e muitos outros autores de canções fomos influenciados por estes mesmos temas.

E eles podem significar uma porção de coisas.

Se uma canção emociona você, é isso que importa.

Eu não preciso saber o que uma canção significa. Eu já escrevi todo tipo de coisas em minhas canções.

E não vou me preocupar com isso – com o que aquilo significa.

Quando Melville emprega todas aquelas referências bíblicas do Velho Testamento,

Teorias científicas, doutrinas protestantes,

E todo aquele conhecimento do mar, dos navios e das baleias, tudo numa só história,

Eu também não creio que ele estivesse também preocupado com isso – com o que aquilo significa.

John Donne, também, o padre-poeta que viveu no tempo de Shakespeare, escreveu estas palavras,

“O Sestos e Abydos dos seus seios. Não de dois amantes, mas dois amores, os ninhos”.

Eu também não sei o significado. Mas o som é bonito.

E você vai querer que suas canções soem bem.

Quando Odisseu, na Odisséia, visita o famoso guerreiro Aquiles no mundo subterrâneo,

Aquiles, que trocou uma vida longa, cheia de paz e satisfação, por uma vida curta cheia de honra e de glória,

Diz a Odisseu que foi tudo um engano. “Eu morri, e isso é tudo.

“Não houve honra. Não houve imortalidade.

E diz que se pudesse escolheria voltar e ser escravo de um fazendeiro qualquer na terra do que ser o que é–

“Um rei na terra dos mortos."

Diz que não importa quais fossem suas lutas na vida, elas eram preferíveis a estar ali naquele reino dos mortos.

E é isso que as nossas canções também são. Nossas canções estão vivas, na terra dos vivos.

Mas canções são diferentes da literatura. São feitas para serem cantadas, não para serem lidas.

As palavras nas peças de Shakespeare foram feitas para ser ditas num palco. Assim como as letras das canções são feitas para ser cantadas, não para ser lidas numa página.

E eu espero que alguns de vocês tenham a chance de escutar estas letras de acordo com a intenção com que elas foram feitas:

Em concertos, ou em discos, ou onde quer que as pessoas estejam escutando canções nos dias de hoje.

Volto mais uma vez a Homero, que diz: “Canta em mim, ó Musa, e através de mim conta a história”.


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O arquivo de áudio com o texto em inglês:

https://www.youtube.com/watch?v=3Zf04vnVPfM



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