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4182) A pista do passado (25.11.2016)

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Falei dias atrás sobre as histórias de viagem no Tempo onde dois fatos, em momentos diferentes do Tempo, se refletem um no outro, quando um personagem, viajando na direção do passado, encontra um objeto significativo que conhecera em sua própria época, e que de certa maneira é a razão de sua viagem.

Outro efeito empregado pelos autores dessas histórias pode ser resumido assim: alguém da nossa época viaja (mental ou fisicamente) ao Passado. Lá, interfere de alguma maneira nos acontecimentos e isso produz uma marca que poderá ser vista pelas pessoas do “presente”, da época de onde ele próprio partiu.

Um dos melhores livros de Isaac Asimov é The End of Eternity (1955) (no Brasil, O Fim da Eternidade, Editora Aleph), cuja premissa básica é a existência de uma espécie de Túnel do Tempo pelo qual um grupo de “Eternos” é capaz de acessar cada século da História. Um personagem é enviado ao passado, o ano de 1932, e por uma série de razões fica preso ali.

Os Eternos se reúnem. Sabem que estando preso no passado o explorador pode tentar mandar algum recado para eles. E começam a pesquisar as revistas da época, até que encontram um desenho de uma nuvem em forma de cogumelo (que em 1932, antes da bomba atômica, não despertaria nenhuma ressonância especial nos leitores) e a frase “All the Talk Of the Market”, que forma o acróstico A-T-O-M. É um recado, à vista de todos, mas que só poderia ser corretamente interpretado pelas pessoas do futuro.

(Segundo consta, Asimov teria visto a foto casual de uma nuvem-cogumelo (natural, não atômica) numa revista antiga, e isso lhe deu a idéia da história, plantando um viajante do Tempo no passado.)

Outro exemplo vem do conto “Uma mensagem de Charity” (“A message from Charity”, 1967, de William M. Lee), que incluí na minha antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, Rio, 2011.

Desta vez não se trata de viagem no Tempo, mas de contato telepático através do Tempo entre dois adolescentes, um garoto do século 20 e uma garota do começo do século 18, no mesmo local da Nova Inglaterra (EUA).

Charity e Peter (por mecanismos que não vale a pena questionar aqui) entram em contato telepático, leem o pensamento um dos outro, ficam amigos. Ela descreve para ele o mundo soturno em que vive, cheio de caças às bruxas; ele mostra a ela o mundo moderno (cada um consegue, numa certa medida, ver o que o outro está vendo). Eles moram exatamente no mesmo local físico, e há um rochedo, a Pedra do Urso, onde os dois costumam sentar para “conversar” mentalmente – como se fosse um local onde o sinal do celular pega melhor.

Só que, com esse moído todo, o pessoal da época de Charity começa a desconfiar do comportamento dela, alheia, distraída, aparentemente falando sozinha. Suspeitam que ela é bruxa. Ela é submetida a um julgamento onde Peter ajuda na sua defesa – no futuro ele é capaz de pesquisar na biblioteca local e descobrir informações sobre crimes praticados pelos acusadores de Charity, que os ameaça veladamente no tribunal e acaba se safando.

Mas o perigo continuia, e ela resolve cortar a ligação com Peter. Despede-se dele, e diz: “Olhe na Pedra do Urso, embaixo do queixo, do lado esquerdo”.

Peter vai lá, naquele lugar tão conhecido dele, tateia embaixo da pedra, e encontra, gravado na pedra, um coração com as iniciais deles dois.

É mais uma vez essa figura das duas pontas que se encontram; neste último caso, o detalhe mais significativo é saber que, durante todas as conversas dos dois, o sinal (em 1967, digamos) já estava gravado na pedra, três séculos antes, mas é só quando ela o revela que ele vai à procura e o encontra.

Em sua Poética, Aristóteles propõe uma figura literária chamada “anagnórise”, que é “um recurso narrativo que consiste no descobrimento por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade, de entes queridos ou do entorno, ocultos para ele até então. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma idéia mais exata de si mesma e do que a rodeia.” (Wikipédia).


Quando eu tiver tempo vou inventar um nome para esse instante em que duas pontas do Tempo se tocam e um personagem, ao conhecer o Passado, entende o real significado de algo que fez parte do seu Presente. 






4183) Uma vez numa terra remota (27.11.2016)

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“Uma vez, numa terra remota, havia uma donzela. Ela morava perto de uma grande floresta.  E o pai dela disse: ‘Não entre no bosque’. Mas ela era uma menina má e não obedeceu. Ela queria saber o que tinha lá dentro. Ela achou que ia poder entrar lá somente um pouquinho. A floresta é muito escura, e cheia de barulhos que dão medo. A donzela falou assim consigo mesma: ‘Eu não gosto disto aqui’, e ela tentou voltar, mas ela não conseguia mais avistar a trilha por onde viera, e estava ficando de noite, e de repente alguma coisa pulou em cima dela! Era um urso. E o urso disse: ‘O que você está fazendo na minha floresta?’ ‘Oh, senhor Urso, por favor não me coma!’, disse a donzela. ‘Eu me perdi e não estou conseguindo voltar para minha casa.’ Agora: o urso era um urso bom, mesmo tendo cara de cruel, e ele disse: ‘Eu posso lhe ajudar a sair de dentro da floresta’, e a donzela disse, ‘Mas como? Está tão escuro’, ‘Bem, então vamos perguntar à coruja’, disse o urso, “ela pode ver no escuro’. Ela continuou a falar, inventando à medida que avançava, sentindo um estranho conforto naquilo.

O parágrafo acima é uma síntese de uma cena aparentemente banal, uma moça de vinte e poucos anos, solteira, botando para dormir um menina de cinco, à qual se afeiçoou. A autora é Connie Willis, uma escritora muito popular e premiada nos EUA, autora de contos ora engraçados, ora sentimentais, mas sempre com leveza. Este romance, O Livro do Juízo Final (Doomsday Book,1992) deverá sair pela Suma de Letras, com tradução minha.

Willis tem mais formação literária do que científica. Não quer dizer que ela não entenda de ciências, mas quando ela inventa aqui no seu romance uma máquina do tempo, ela, como H. G. Wells, fornece apenas informações genéricas sobre como a máquina é posta a funcionar. Não se dá o trabalho de explicar como se obtém um resultado tão espantoso, nem parece perder muito sono com isto. (Em termos das redes sociais de hoje, Willis é uma escritora de Humanas.) 

Seu interesse é o paralelismo entre os tempos, as rimas de pequenos acontecimentos ou dramas refletindo um ao outro através dos séculos, e alguém sendo capaz de perceber isso. Esta sua série de narrativas sobre viagens temporais leva historiadores de Oxford a diferentes momentos da História. Uma espécie de Túnel do Tempo.

“Firewatch” (1982), o conto que deu origem a esta série, mostra um desses estudantes vindo do futuro para ajudar a proteger a Catedral de São Paulo, em Londres, durante os bombardeios alemães na II Guerra.  

Nesse conto inicial já se menciona, meio indiretamente, uma aluna chamada Kivrin, que acabou de chegar da Idade Média, bastante abalada. Doomsday Booké a narração do que aconteceu a essa personagem citada de passagem em alguns parágrafos do “Firewatch”

O parágrafo transcrito no começo deste texto, a história da donzela que mergulha na floresta escura, é a própria história da mulher que a está contando, uma estudante de História na faculdade de Brasenose, em Oxford, que recua ao século 14 para examinar as condições de vida do campesinato inglês durante a Guerra dos Cem Anos.

Kivrin Engle, a estudante, traz um sobrenome em homenagem a uma famosa autora de viagem temporal, Madeleine l’Engle, autora do clássico juvenil A Wrinkle in Time (1963), livro que a geração de Willis (ela nasceu em 1945) provavelmente leu na juventude.  

Kivrin tem algo de quase Nikita, quase uma Lara Croft crononauta. Estuda plantas medicinais, latim, religião, equitação, toma umas quinze vacinas diferentes, passa o pente fino na história e na geografia da época. Instala um tradutor simultâneo no cérebro. Instala um minigravador camuflado no pulso e ativado ao pressionar juntas as palmas das mãos. Desse modo, ao se misturar ao mundo do passado, poderá gravar seus relatórios enquanto dá a impressão de estar rezando em voz baixa.

Em alguns momentos, Kivrin me lembrou também a Psicóloga, de outro livro que traduzi, o Aniquilação(Ed. Intrínseca) de Jeff VanderMeer. Uma mulher jovem, expedita, imaginativa mas atenta, capaz de se virar sozinha, e um tanto introspectiva. Disposta a saltar num abismo e saber que, mesmo que continue viva, essa pessoa que ela é agora deixará de existir durante essa experiência.







4184) O plágio involuntário (29.11.2016)

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Um dos exemplos clássicos de plágio inconsciente é o episódio narrado pelo filósofo Nietzsche, incluído no seu Assim Falou Zaratustra (1883-1891). Ele diz:

Nesta época em que Zaratustra residia nas Ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica o vulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Ao meio-dia, no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunido novamente, viram, de repente, um homem que vinha pelo ar em sua direção e uma voz que dizia nitidamente: “É tempo, é mais que tempo!”. Mas quando a figura aproximou-se deles, passando rápido como uma sombra em direção ao vulcão, reconheceram com grande espanto que era Zaratustra... “Vejam!”, disse o velho timoneiro, “vejam Zaratustra que vai para o inferno!” (capítulo XL, “Grandes Acontecimentos”).

Em O Homem e Seus Símbolos (Ed. Nova Fronteira, trad. Maria Lúcia Pinho), Carl Jung mostra que esse trecho corresponde quase exatamente a um trecho de um livro publicado meio século antes da obra de Nietzsche; e depois verificou-se que uma irmã de Nietzsche lembrava de terem lido o livro com essa cena. (Na qual são dois os homens que passam voando por cima dos marinheiros; sem dizer nada, eles mergulham na cratera do vulcão e ali desaparecem.)

Jung questiona os processos que levam uma imagem assim a ficar guardada na memória e depois ser evocada no ato da escrita, apresentando-se com tal força e tal poder de convencimento que nem por um segundo o escritor duvida ser ela de sua autoria.

Ou talvez duvide, como Paul MacCartney, que passou mais de um ano tocando “Yesterday” para Deus e o mundo e perguntando se conheciam aquilo. Todos diziam que não, e ele acabou gravando a música – e correndo o risco de pegar um processo bilionário. Processo não houve, mas alguns anos atrás descobriram uma canção antiga do repertório de Nat King Cole (que Paul provavelmene ouviu na época de garoto), com uma modulação parecida, e com algumas das frases e rimas contidas na letra.

Não é um plágio. Até porque são canções diferentes, que durante alguns trechos breves coincidem exatamente e logo voltam a se separar por linhas melódicas distintas. Pode haver aí o plágio inconsciente, ou o que Jung chama de criptomnésia, memória oculta. Oculta até do dono, que não sabe que a possui.

Freud mostrou, em seus estudos sobre os sonhos, como nossa mente adormecida cria seus filminhos oníricos através de processos de fusão, substituição, transposição, etc.  Nossa memória-desperta parece recorrer também a esses artifícios, quando o que tenta evocar não se apresenta instantaneamente. Quando não acha, ela inventa alguma coisa lançando mão do que efetivamente achou em suas buscas randômicas.

Howard Schneider, professor de jornalismo na StonyBrook University (Nova York), lembra aos seus alunos que nossa mente gosta de misturar coisas que estavam separadas. Diz ele que acontece muito, por exemplo, do indivíduo ouvir um programa do horário eleitoral intercalado a um telejornal, e depois referir-se a algo que viu na propaganda política, pensando ter visto no noticiário da imprensa. (Deve ser por isto que existe a tradição de intercalar aos telejornais os drops de propaganda partidária. Para que na memória do eleitor tudo pareça ter sido escutado através de uma “fonte imparcial e objetiva”, criatura mitológica na qual muita gente acredita.)

Algumas pessoas me consideram um cara de memória excepcional, porque tenho certa facilidade para nomes, datas, versos, etc. O problema é que “boa memória”  não é uma qualidade que se aplica a tudo. Sou capaz de conversar durante duas ou três horas com alguém que acabei de conhecer, olhando no rosto, e não reconhecer a pessoa um mês depois, se ela não disser quem é. O que já me valeu ser considerado grosseiro, metido a besta, arrogante, etc. Não é isso. É um “branco” mesmo. Para usar uma metáfora contemporânea: era algo que estava na memória-RAM mas por um motivo ou outro deixei de “salvar no HD” e se perdeu.

Ainda não cheguei ao ponto de um amigo meu, que certa vez saiu com uma garota, e quando estavam na cama comentou: “Dias atrás saí com uma garota que tinha uma tatuagem igual essa tua.”  Ela disse: “Era eu, idiota.”

Já cometi lapsos absurdos de memória. Uma vez fiz um show em São Paulo juntamente com Lenine e com Gereba (ex-banda Bendengó). Lá pelo meio, eu e Lenine improvisávamos um “mourão voltado”, gênero de repente em que um cantador faz um verso perguntando, e o outro faz um verso respondendo. Eu e ele improvisávamos assim, e Gereba nos acompanhava ao violão. A certa altura, fechando a estrofe, Lenine perguntou: “ E pra que serve um violão?”  Eu apontei Gereba e disse: “Pra quem é predestinado...”  E fechamos com o refrão em uníssono: “Isso é que é mourão voltado / isso é que é voltar mourão”. Aplausos mil.

Dez anos depois, encontro Gereba novamente em São Paulo e ele me dá um CD com a gravação do show. Quando chegou nesse trecho, constatei que os versos estavam lá, mas fui eu quem fez a pergunta, e foi Lenine quem respondeu.

Por isso, dou sempre a todos o conselho antigo que me foi dado pela minha mãe: “Des – con – fi – e!”.






4185) Os 100 anos do samba (2.12.2016)

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(da esq. para a dir.: Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Marçal)


Estamos comemorando 100 anos do samba, data estabelecida em função da gravação de “Pelo Telefone” de Donga, em 1916. O jornal O Globo reuniu um enorme painel de compositores e jornalistas para que cada um fizesse sua lista dos “dez sambas fundamentais”. Não me arrisco a voar tão alto, não conheço o gênero tanto assim. Mas acho que todo compositor de MPB (como é o meu caso) tem seus sambas-referência.
O número de dez é a camisa-de-força obrigatória pra neguinho não chegar com lista de 237. Vão aqui, portanto, dez sambas “meus”, canções que na minha vida são referência estética, poética, afetiva, autobiográfica. Sem ordem de preferência.

1) PRESSENTIMENTO (Elton Medeiros & Hermínio Belo de Carvalho)
Pra quem não liga o nome a pessoa, é aquela jóia que começa: “Ai, ardido peito... Quem irá entender o teu segredo? Quem irá pousar em teu destino? E depois morrer do teu amor?”. Não só como samba, mas uma das canções de amor mais bonitas da MPB. Começa melancólica, reflexiva, em tom menor, mas vai se animando, o tom modula para maior (“Vem, meu novo amor, vou deixar a casa aberta!...) e vai subindo, em modulações sucessivas, a melodia vai galgando patamares cada vez mais altos, até terminar numa última frase triunfalmente lá em cima: “Tudo faz pressentimento, que este é o tempo ansiado de se ter felicidade!”. Olha o braço como fica.

2) SAUDOSA MALOCA (Adoniran Barbosa)
Os Demônios da Garoa eram minha banda favorita aos 12, 13 anos. As músicas tinham humor, pareciam histórias em quadrinhos com seus personagens, suas narrativas aparentemente ingênuas mas cheias de sutilezas. “Saudosa Maloca” é o hino nostálgico, estoico, resignado, de todos os sem-teto de São Paulo e do mundo, dos invasores, dos squatters. Adoniran foi um contemporâneo de Noel que viveu mais do que Noel, foi precursor de Vanzolini e de Itamar; ninguém compreende sua cidade se não passar por dentro da obra dele.

3) UM APITO NO SAMBA (Luiz Bandeira & Luiz Antonio)
Das tantas músicas de Luiz Bandeira eu podia ter escolhido a clássica “Na Cadência do Samba (Que Bonito É)”, que, em sua gravação com a orquestra de Waldir Calmon, virou hino do futebol brasileiro como tema musical dos jogos do “Canal 100”. Mas o “Apito no Samba” faz a ponte entre o samba das Escolas, regido a apito, e o samba orquestral dos anos 1950, quando o balanço sambista encontrou tantas orquestras (Tabajara, etc.) dispostas a concretizar o que Jackson do Pandeiro sonhou e fez: o samba cadenciado, melódico, fluente, encorpado com orquestrações complexas e balançadas como as de Glenn Miller, que Jackson curtia tanto. É o samba épico dos anos 1950.

4) OLÊ, OLÁ (Chico Buarque de Hollanda)
Antes de surgir “A Banda”, antes de clássicos como “Quem te viu, quem te vê” ou “Roda Viva”, foi essa a primeira música que eu vi cantada na TV por aquele rapaz de smoking, gravatinha borboleta e cara encabulada. Era um samba, mas não era um samba! Era uma canção com formato próprio, melodia insinuante cheia de acordes que a mão não achava. Era uma canção sobre o samba, mas não era a mera exaltação, era outra dicção, outra filosofia. Tinha horas que parecia até ficção científica (“é um samba tão imenso que eu às vezes penso que o próprio Tempo vai parar pra ouvir”). E era uma canção-de-boêmio, aquelas que levam o ouvinte madrugada afora e, como o “Mr. Tambourine Man” de Dylan, se encerram com o nascer do sol (“quem passa nem liga, já vai trabalhar”). E ainda por cima deixou de herança na fala brasileira a fórmula imorredoura de quem vai pra farra: “a noite é criança”.

5) ALVORADA (Cartola)
E por falar em dia amanhecendo, não sei de música que fale isso com maior beleza e simplicidade do que Cartola: “O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo... E a Natureza sorrindo, tingindo, tingindo...”  Cartola é um desses sambistas como Elton, Jamelão, Nelson Cavaquinho, que parecem sobreviventes de uma guerra e quando pegam o instrumento pra cantar falam de tudo menos da guerra. Falam que quando um dia começa lá no morro ainda não existe a tristeza, o dissabor. Sofreram todas as desilusões, mas a ilusão da beleza continua intacta. E o sol quando nasce, nasce embelezando o mundo, “tingindo, tingindo”.

6) SEI LÁ, MANGUEIRA (Paulinho da Viola & Hermínio Belo de Carvalho)
Na linha dos sambas filosóficos, nenhum me estremece tanto quanto essa homenagem do portelense Paulinho à verde e rosa, que Hermínio cobriu com versos definitivos: “E a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais – que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, os pés recusam pisar”.  Uma dessas canções “nascidas clássicas” como diz a crítica, e o simples fato de ser feita por um não-mangueirense nos faz acessar o veio profundo do samba, que não é somente um estilo de música, é “um modo novo da gente viver”. Que o futuro o escute.

7) LAPINHA (Baden Powell & Paulo César Pinheiro)
Eu quase furei o meu elepê da “Bienal do Samba” de 1968, com canções que ficaram na história (como “Coisas do mundo, minha nega” de Paulinho da Viola e “Pressentimento” de Elton) e foi vencida por Elis Regina com essa música de Baden Powell (que àquela altura eu já conhecia com “Canto de Ossanha”, etc.) e de um pirralho de 16 anos chamado Paulo César Pinheiro. Essa música sempre me deu uma emoção enorme e eu pensava: um dia vou morar no Rio e fazer samba. Ela tem uma estrutura clássica: primeira parte (ou refrão) tirada do folclore, e segunda parte “erudita”, fazendo uma variação melódica e poética, mais elaborada. E uma poesia que nos inundava: “ah, tanto erro eu vi, lutei, e como perdedor gritei: que eu sou um homem só, sem poder mudar, nunca mais vou lastimar...”

8) CONTO DE AREIA (Toninho & Romildo Bastos)
É um daqueles sambas praieiros onde Clara Nunes deitava e rolava: “É água no mar, é maré cheia, ô... Mareia, oi, mareia...” A letra cadenciada, melodia linda, cheia de imagens bonitas. É principalmente a estrutura desses sambas que me encanta, fugindo ao esquema primeira/segunda/refrão; não são estrofes longas de formato recorrente, mas guardam, dos sambas antigos do tempo de Donga, aquela estrutura de quadrinhas ou sextilhas superpostas, com células melódicas de quatro ou seis linhas que, quando se encerram, em vez de voltarem ao começo dão lugar a uma nova célula semelhante com letra nova, melodia diferente. Sambas encadeados, sambas-colagem, surpresas poéticas e melódicas que se renovam, um modo antigo e novo de fazer canção.

9) FESTA PARA UM REI NEGRO (Zuzuca)
Tinha que botar um samba-enredo de escola para representar o gênero. Qual, no meio de mais de mil? Este aqui (Salgueiro, 1971), o famoso “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá”, é um dos meus favoritos, inclusive porque lembra o auge da “Batucada de Lanka” dos nossos fins de semana em Campina, regados a samba, forró, suor e cerveja. Eita tempo bom; que o digam Biliu de Campina, Tadeu Mathias e Elba Ramalho, cujas carreiras começaram ali. O samba de Zuzuca é samba pra levantar arquibancada, com sua letra lembrando os velhos congados, estrutura simples (primeira + refrão), aquela clássica subida onde um milhão de pessoas eleva a voz em uníssono, até quem não sabe a letra (“que beleza...”), e o carimbo africano das sonoridades “ê / á” (que Chico aliás já evocara em “Olê, Olá”).
Com a Velha Guarda do Salgueiro: https://www.youtube.com/watch?v=2qvDJ9BXhA0

10) CONVERSA DE BOTEQUIM (Noel Rosa & Vadico)
Pois é, faltava Noel. O samba urbano, refinado, afiado. Samba crônica, como Lenine insiste em lembrar: o samba que fotografa um momento da História. Riqueza de rimas, de vocabulário, de detalhes fotográficos, da cenografia de época, da pequena malícia das relações de classe. O cotidiano do malandro folgado mas sem maldade, o bon-vivant, o flâneur de mãos nos bolsos indo de cabaré em cabaré, de café em café, esticando a noite para que o dia não amanheça. A noite de Noel foi curta, 27 anos somente, mas ainda hoje transborda para dentro das nossas.


Não é nada, não é nada, são dez sambas no meio de milhares. Se eu quiser, amanhã apago essa lista e faço outra tão-boa-quanto. Pra quem gosta de ouvir, de cantar, de fazer, de analisar samba, existe uma floresta amazônica de alegrias e tristezas a serem aprendidas, impregnadas, depuradas, sublimadas em forma de música. Viva o samba centenário! Tomarei uma em sua homenagem.














4186) Ferreira Gullar, 1930-2016 (4.12.2016)

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A poesia de Ferreira Gullar me chegou através do LP de estréia de Caetano Veloso, onde ele cantava “Onde Andarás”, com letra do poeta. Um bolero dolente, e lá pelo meio virava uma espécie de tango onde o intérprete mudava surpreendentemente de voz, imitando Orlando Silva. Fiquei associando esta canção àqueles fins de tarde de domingo, quando o sol começa a se por e a gente está meio de bobeira, preparando a hora de voltar pra casa:

Onde andarás
nessa tarde vazia
tão clara e sem fim?
Enquanto o mar
bate azul em Ipanema,
em que bar, em que cinema,
te esqueces de mim?

Gullar àquela altura (1968) já tinha publicado livros importantes, e não tardou para que eu me agarrasse à sua poesia, que sempre me pareceu, em seus melhores momentos, reunir o melhor de vários mundos: as cadências das redondilhas portuguesas (que ele explora tão bem quanto Cecilia Meireles), as imagens surpreendentes e inexplicáveis do surrealismo, a dicção das ruas que o aproxima das letras da MPB, o vigor imagético que (principalmente nas obras mais encorpadas, como o Poema Sujo) fazem o poema virar quase que um roteiro para uma viagem da câmera cinematográfica.

O Gullar teórico também marcou muito a minha geração, até porque ele fundamentava suas teorias sobre cultura e brasilidade não apenas na literatura, onde eu me movia mais à vontade, mas também nas artes plásticas. Tem dois livros dele que eu li intensamente (gostaria de reler agora) entre os 20 e os 30 anos, que foram Cultura Posta em Questão (1965) e Vanguarda e Subdesenvolvimento (1969). Me deixaram conceitos que aplico até hoje.

Nunca tive grande contato pessoal com ele, embora tenhamos participado juntos de mesas redondas, por mais de uma vez. Era um contato rápido, de cumprimentos, mas sem conversa, o que sempre lamentei.

Gullar era um esquentado, pelo que me dizem, e tem no currículo polêmicas famosas, primeiro com o grupo concretista de São Paulo, e mais recentemente com os governos do PT. Mas era também (os amigos me contam) um sujeito compassivo, humano, afetuoso. Era a impressão que deixava nas pessoas com quem conviveu.

Nós, paraibanos, devemos muito a ele, pelo extraordinário ensaio que fez sobre a obra de Augusto dos Anjos, quando estava no exílio. Publicado pela Paz e Terra em 1977, Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestinaé um desses casos em que um crítico, em meras 45 páginas, sem recorrer a grandes bibliografias nem a anos de pesquisa, mergulha direto nos textos, toca na sua medula e sai dali cheio de revelações.

Exilado em Buenos Aires, Gullar pegou o Eu de Augusto e de certa forma fez com que o lêssemos pela primeira vez. Uma façanha que eu só comparo à de Eric Auerbach, também no exílio, criando seu clássico Mimesis (1946) sem ter acesso a grandes bibliotecas, mergulhando direto na obra de Homero, Rabelais, Tolstoi, revelando  a mecânica entre a tradição coletiva e a inteligência individual dos autores.

Gullar teve uma passagem não muito bem sucedida pelo poema-protesto na série Violão de Rua, na época do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Quando li um dos seus “cordéis” (acho que foi João Boa Morte, Cabra Marcado Para Morrer, 1962), não achei ali nada de cordel. Estrofe, sílabas, esquemas de rimas, tudo era uma salada.  Me pareceu uma contrafação, uma tentativa de pastiche feita por quem não conhecia bem o original, e os resultados, anunciados como “cordel”, acabavam passando para os leitores (e futuros poetas) uma imagem distorcida.

Era sintoma da época, em que a politização da literatura levava os autores a recorrerem, meio às pressas, a modelos populares que eles tinham ouvido cantar sem saber ao certo onde. Algo parecido com os versos de Antonio Callado em sua peça Forró no Engenho Cananéia (1964), onde o grande romancista perde a mão ao lidar com as formas poéticas populares.

Quando esqueceu os modelos e falou somente por si, Gullar produziu alguns dos mais belos poemas em redondilha da língua portuguesa-brasileira.

 Se eu tivesse que pegar apenas uma obra dele, faria como muitos: escolheria o Poema Sujo (1976), um poema-livro autobiográfico onde o poeta, a pretexto de falar de si mesmo, faz um retrato cruel e sincero do seu país.

Não li nenhum dos seus livros de poesia mais recentes, e lamento. Quando esses livros saem, recebem boa cobertura da imprensa, que cita, transcreve. A gente fica conhecendo 10 ou 20 poemas republicados nos jornais e na web, e de certa forma se dispensa de ler o livro, o que é sempre um erro. Não importa. Cada poema lido reafirmava sem susto o poeta que eu sempre soube.





4187) Os totalmente ricos (7.12.2016)

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Segundo o Equality Trust, as 100 famílias mais ricas da Grã-Bretanha aumentaram sua fortuna em cerca de 57 bilhões de libras entre 2010 e 2016, um período em que a renda média do país sofreu uma queda. A Oxfam International afirma que o 1% mais rico da população mundial detém hoje mais riqueza do que os 99% restantes somados.

Pode não parecer, mas a riqueza absoluta é um tema recorrente na ficção científica. Não precisa envolver espaçonaves, alienígenas, robôs, pistolas desintegradoras. Estou falando da FC que especula o formato e a substância das sociedades futuras, partindo do nosso presente e exagerando alguns aspectos.

Riqueza é um deles. Para quem gosta de fazer FC sociológica, é interessante investigar, ficcionalmente, os limites do poder financeiro.

Alguém dirá que isso já é feito pelos romances mainstream tipo Sidney Sheldon ou Danielle Steel, a respeito de executivos milionários com suas esposas neuróticas entupidas de barbitúricos, suas amantes longilíneas e vorazes, suas tenebrosas transações em Wall Street, seu consumo conspícuo de bugigangas kitsch que custam os olhos da cara, suas férias em Aruba ou nas Bahamas.

A FC, no entanto, explora a ligação entre riqueza fabulosa + absoluta impunidade moral + alta tecnologia a serviço de quem pode investir pessoalmente nela algumas dezenazinhas, algumas centenazinhas de milhões.

Em “A Carícia” (“The Caress”, 1990) de Greg Egan (que incluí em Detetives do Sobrenatural, Casa da Palavra, 2014), um milionário recorre à engenharia genética para produzir seres híbridos e com eles reconstituir, usando criaturas vivas de carne e osso, uma pintura fantástica pela qual tem obsessão. Só isso. Ele quer ver o quadro “de verdade”; depois que vê, vai fazer alguma outra coisa.

Em “Death Do Us Part” (1997), Robert Silverberg descreve a vida de bilionários do futuro, capazes de prolongar indefinidamente a vida e a juventude. Ele começa o conto relatando a lua de mel dos protagonistas:

“Era o primeiro casamento dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida.  Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi, na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’ L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes.  E depois partiram para a bela casa aérea dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.

Em “Neve” (“Snow”, 1985), de John Crowley (que incluí em Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, 2011), as pessoas ricas gravam suas vidas por completo através de uma “vespa”, um mini-drone com câmera que as acompanha por toda parte, para que nenhum dos preciosos momentos de suas vidas se perca para a posteridade.

No romance Holy Fire (1996) Bruce Sterling descreve minuciosamente como a ciência do futuro-próximo pode (a um custo financeiro imenso, claro) reconstruir uma pessoa idosa, rejuvenescendo-a – e o mundo se torna uma gerontocracia governada por indivíduos ricos, centenários, com aparência eternamente jovem.

O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em livro em Out of My Mind, New York, Ballantine, 1967) conta uma história parecida – a de uma mulher que tenta manter-se eternamente jovem e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu. Um eco do clássico Ela, a Feiticeira(“She”, 1887) de H. Rider Haggard.

Mais interessante do que a história em si, que é bem escrita mas sem grandes novidades, é a reflexão inicial de John Brunner sobre a vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para autores de FC.)

Diz ele:

“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB  de todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)

“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está visível.

“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos”

Estes (dizia John Brunner, já nos idos de 1963) são os Totalmente Ricos.






4188) O dia em que John Lennon morreu (9.12.2016)

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“Onde estava você... no dia em que John Lennon morreu?”

Eu estava de passagem pelo Recife.  Estava resolvendo detalhes da publicação do meu primeiro livro, Balada do Andarilho Ramón e Outros Textos, que graças à indicação de Cavani Rosas e à produção de Andréa Mota saiu pelas Edições Pirata (leia-se Jaci Bezerra e Alberto da Cunha Melo), com capa de Cavani. Foram duas impressões apenas, uma de 80 exemplares e outra de 300, o que faz dele uma peça de colecionador. (Eu, pelo menos, sempre que vejo um, compro. Tenho dois.)

Na véspera, Andréa reuniu um grupo de amigos e fomos de ônibus para Itamaracá, para ver a apresentação de um bumba-meu-boi que se estendeu noite afora.

Um bumba-meu-boi, para quem não sabe, é uma espécie de peça teatral dirigida a quatro mãos por Bob Wilson e Zé Celso Martinez. Uma viagem ao Reino do Vai-e-Não-Torna. Uma sucessão de quadros em que os atores se sentem à vontade para esticar os improvisos e as brincadeiras (entre si ou com a platéia) pelo tempo que lhes der na telha. Quando vai com duas ou três horas, você se pergunta se aquilo não vai acabar nunca. Quando chega por volta das seis ou sete horas ininterruptas, você tem vontade que aquilo não acabe nunca.

E num certo sentido filosófico, um bumba-meu-boi não acaba nunca.

A gente assistia, cantava, aplaudia, dançava, tomava umas e outras, ia no terraço da casa de uns amigos para um cochilo de uma hora (dormir mesmo era impossível, o barulho é muito), voltava...

No dia seguinte, no fim da tarde, pegamos o ônibus de volta para o Recife. E ao chegar no famoso Beco da Fome (que ligava a Rua 7 de Setembro à Rua do Hospício), me deparo com a vida real em forma de notícia.

Se bem me lembro era Samuel Costa, o “Galileu”, que estava sentado numa mesa na calçada e disse: “Oi, mataram seu ídolo e você tá aí todo tranquilo?”.

Eu não acreditei. Sentei na mesa do bar e pouco depois começou o Jornal Nacional. Desabei. Felicidade que também na mesa estava uma ex-namorada minha que tomou as rédeas da situação, me ajudou a assoar o nariz, me trouxe de volta ao regaço da existência, rolou um momento “won’t you pleeeease help me?...”

No dia seguinte fui para Campina Grande, e não preciso dizer que na casa de Rômulo Azevedo e Íris Medeiros a situação estava mais pra “Cry Baby Cry” do que pra “I Feel Fine”. E começou nessa época (durou umas duas semanas) uma enxurrada de piadas de humor negro onde a gente exorcizava o sofrimento diante da surpresa, da crueldade gratuita, do absurdo total daquele fato.

De meia em meia hora um de nós coçava a barba e mandava:

-- Pois é, velho, disse na TV que quando ele levou os tiros ele gritou: “But why?”, e o cara cantou: “ ’Cause I’m the chapman... yeeeeh, I’m the chapman...”

E todo mundo estourava na risada.

Por que isso?  Catorze anos depois, quando Ayrton Senna morreu, esse festival de gracejos dolorosos tomou o Brasil de ponta a ponta.

Maldo eu que é porque a piada tem várias funções terapêuticas.

Quando você pega a fonte central de sofrimento daquele instante e faz uma piada sobre ela, você reafirma seu poder de decidir o que é capaz de lhe derrubar ou não. Ficar de coca e cair no choro é confessar a derrota. Fazer piada com a própria desgraça é um sinal de que a briga ainda não terminou.

Por outro lado, o humor negro cauteriza. Por cima de uma dor-de-agressão ele chapa uma dor-de-cura muito mais dolorosa, mas originada em nós mesmos. Como se a gente dissesse: “Ah, você acha que isso aí doeu?  Apois eu tenho uma coisa aqui que dói o dobro.”  A ciência moderna me desculpe, mas eu não acredito em mertiolate que não queima.

E terceiro, o próprio Lennon era assim. Emotivo e ácido, sensível e cruel, menino carente e machão repressor, “Nowhere Man” e “Bad Boy”.

Ele tinha a coragem (que a maioria de nós, poetas, não ousa ter) de escancarar musicalmente diante do mundo inteiro suas carências, suas inseguranças, suas brutalidades, seu medo, seu machismo, sua procura às-cegas dessas duas coisas que parecem tão inconciliáveis: amor e amor-próprio.

Paul McCartney era um sorriso, Lennon era uma fratura exposta. Só quem ia fundo na escuta das canções e na leitura das vidas percebe como cada um trazia o outro em seu reverso. Daí, talvez, a especialíssima tensão-positiva que a parceria dos dois produziu.

Retomando: “Onde estava você... no dia em que John Lennon morreu?”

Eu estava no Recife publicando uma coletânea de poemas e canções onde, a certa altura, estão estes versos, da letra de uma música:

“E certa noite
a violência desce com seu punho selvagem
batendo em nossa cara e acordando a coragem
que a gente tinha, e nem sabia;
força tão funda, faca tão fria
brilhando na mão da nossa alegria;
tu me ensinaste, naquele dia,
menina,
em que eu vi nos teus olhos o Atlântico Blue”.








4189) O Livro do Juízo Final (11.12.2016)

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Doomsday Book(que acabei de traduzir para a Suma de Letras) ganhou os três prêmios principais da FC norte-americana: o Hugo, o Nebula e o Locus. O livro é de 1992, e depois Willis publicou mais títulos nessa série de viagens no Tempo envolvendo historiadores de Oxford: To Say Nothing Of The Dog (1998), Blackout (2010), All Clear (2010) e outros.

O livro é contado em paralelo, do ponto de vista de Kivrin Engle, a estudante que viaja no Tempo, rumo ao passado, e do seu professor, James Dunworthy, um historiador cinquentão para quem a idéia de mandar uma moça de vinte anos à Idade Média é condená-la à morte e a algo pior do que a morte.

Kivrin salta para o século catorze. No ano de 2050, de onde ela saiu, primeiro a Universidade e depois toda a cidade de Oxford são varridas por uma epidemia de gripe, tão perigosa quando a famosa Gripe Espanhola que matou dezenas de milhões. Natal sob epidemia e quarentena. Todo mundo doente, instalações interditadas. Como trazer a estudante de volta?

Willis é uma escritora bem humorada, e confessa uma influência das comédias screwballnorte-americanas dos anos 1930-40, de Preston Sturges, Frank Capra, Howard Hawks e outros. Isso não a impede de narrar com eficácia longas sequências trágicas. Qualquer manual de escrita criativa preparado nos EUA nos adverte que o mais importante é fazer com que o leitor se importe com o personagem, se preocupe com ele, acredite nele.  Na maioria de suas histórias, ela consegue.

Esse veio de comédia (menos presente em forma de piadas, e sim nas interações entre os personagens, e em certas ações absurdas que as pessoas não conseguem deixar de executar) ajuda a diluir o sentimentalismo que nos faz simpatizar com A e antipatizar com B. Seus tipos começam caricaturais, mas Kivrin, ao conviver com os aldeões do século 14, tanto confirma informações livrescas que trazia como quebra a cara porque nem tudo é como tem no livro.

Mas a História (não a ciência histórica, mas isso que as redes sociais de hoje chamariam “a Narrativa, o arco civilizatório da humanidade”), para acontecer, precisa que a donzela desobedeça à proibição do pai (ou as advertências do sr. Dunworthy) e mergulhe no bosque escuro. Isso fica ainda mais interessante quando sabemos que Willis já praticava em 1992 o que alguns chamam agora a “Lei de (George R. R.) Martin”: quanto mais querido um personagem, maior o risco de vida que ele corre.

Connie Willis é uma escritora de gênero, ou seja, formada dentro da cultura de pulp fiction, dos fanzines e clubes, dos colecionadores e fãs. Um dos seus contos mais emotivos mostra, em Portales (New Mexico), turistas do futuro que vão àquele remoto sertão do faroeste porque foi lá que viveu grande parte da sua vida Jack Williamson (1908-2006), o veterano criador da “Legião do Tempo” e “Legião do Espaço”. Os turistas parecem já saber os menores detalhes da vida do escritor. Há uma corrente de emoção, mas subterrânea, na medida em que percebemos o significado de alguns detalhes, e de outros não.

Por outro lado, há momentos no Doomsday Book em que ela parece ceder ao zás-trás do melodrama. Um personagem, em menos de um mês, passa por severas doenças que quase o aniquilam, e fica com o cabelo completamente branco. Pelo que entendo, o cabelo pode até embranquecer, mas a partir daquel ponto apenas, começando a crescer já branco. Os cabelos que eram de outra cor não embranquecem em pouco tempo, a não ser em Ponson du Terrail ou Michel Zevaco.

Há uma hipótese em favor disso, indicando uma reação do corpo a algo contido no pigmento do cabelo, de modo que os cabelos com mais pigmento tendem a morrer e cair, enquanto o que há de cabelos brancos se mantém.

Talvez isso seja um detalhismo bobo, como o dos leitores de Julio Cortázar, surpresos pelo fato do personagem chegar depois de meses viajando e ligar a ignição do carro, na garagem, logo de prima. Cortázar dizia: ele deixou uma cópia da chave com algum vizinho, algum amigo, para ficar usando o carro, ou para dar-lhe uma esquentada de vez em quando. “Meus romances são fantásticos,” dizia ele, “não é por detalhes assim, é por outra ordem de coisas.”










4190) Algumas palavras sobre Gonzagão (13.12.2016)

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Brincando, brincando, são 104 anos de nascimento de Luiz Gonzaga, e o pessoal não deixa de comemorar, lembrar, fazer homenagens. Que são sempre poucas, para a importância que teve o Rei do Baião como artista e como personalidade pública.

Anotei aqui algumas impressões sobre ele, alguns detalhes que sempre me vêm à mente quando o ouço cantando, quando o vejo dando entrevistas ou conversando nos palcos. Ou quando faço uma avaliação da importância que ele teve para a música.

Tecnologia
A invenção do baião no Rio de Janeiro foi (já escrevi sobre isso) um momento crucial na história da apropriação da tecnologia urbana pelos artistas populares nordestinos. Gonzaga e Humberto Teixeira tomaram de assalto um patamar tecnológico (gravadoras, rádios cariocas) que até então estava com porta trancada e segurança na frente. Com poucas exceções, e em fixas resttitas. Foi algo parecido com o que Leandro Gomes de Barros fez em 1895 quando se apropriou da tecnologia gráfica e começou a imprimir os poemas que antes eram recitados de memória ou copiados à mão. Foi parecido com Linduarte Noronha e sua equipe fazendo Aruandano menos provável dos Estados onde pudesse aparecer um modo novo de fazer cinema brasileiro.

A ode à tecnologia está presente, principalmente, na canção “Respeita Januário”, onde ele reafirma orgulhoso o sua  conquista do poder high-tech da capital (a “sanfonona” de 120 baixos) e ao mesmo tempo o orgulho do artista popular: “Eu não sei pra que tanto baixo, porque espiando bem ele só toca em dois. Januário não. O fole de Januário só tem 8 baixos, mas ele toca em todos 8”. Tem toda uma teoria da Estética nessa música.

Respeita Januário:



Largueza
Gonzagão tinha um sorriso largo, franco, que iluminava o rosto em forma de lua. Sorriso de quem não tem medo. Mesmo já velho, abatido pela doença e pelos desgostos, sem poder andar direito, cantar direito, quando ele via algo ou alguém que o alegrava o sorrisão voltava inteiro. Não só o sorriso: o coração era largo, brigava mas perdoava, todo mundo cabia ali dentro. (O bolso era largo também.)  O sorriso parecia o abrir de uma sanfona. A voz era larga. Voz de quem já cantou muitas noites em cima de um caminhão, numa praça, e tinha que cantar mais alto do que a sanfona, porque não tinha microfone.

Boiadeiro:



Política
Poucos artistas se misturaram tanto com a política, não no sentido da militância, mas na convivência misturada que caracteriza o artista nordestino evoluindo entre coronéis, deputados, fazendeiros, prefeitos, vereadores , “homens por nós escolhidos para as rédeas do poder”. Qual o nordestino que nunca pediu um favor a um cidadão desses?  No tempo das vacas magras, quando passou o tsunami do primeiro sucesso, Gonzagão botou o trio no carro e saiu de Brasil afora, de cidadezinha em cidadezinha. Riscava na frente da Prefeitura, descia, avisava: “Diga ao prefeito que Luiz Gonzaga está aqui e queria humildemente uns minutinhos de atenção dele”. Descolava hotel, refeição, gasolina e cachê para aquela noite.

O povo de Exu lembra os longos esforços dele para a construção da estrada que ligou o município às cidades em volta. Gonzagão foi lobista, “lobista do povo”, como ele mesmo se apressaria a acrescentar. A convivência com políticos está no início mesmo de sua carreira. Ele contava que na época em que passava a noite tocando “In the Mood” na sanfona, na zona do Rio, um grupo de estudantes cearenses, tendo à frente o futuro ministro Armando Falcão, ficavam lá da mesa lhe pedindo para tocar as coisas do Nordeste. Esse toma-lá-dá-cá nunca mais parou.

Vozes da Seca:



Oralidade
Quem melhor do que Gonzagão cultivou, em cima do palco, a arte do monólogo entremeado às canções? Eram cinco minutos de conversa e uma música, oito minutos de conversa e outra música. Herdeiro da imensa informalidade dos forrós de candeeiro, para ele não tinha essa coisa do roteiro-de-ferro do show business. Ele aprendia tudo e botava no bolso para usar quando lhe desse na telha.

Muita conversa; e ao se juntar com parceiros igualmente loquazes como Zé Dantas, que era um tesouro de cultura oral, produzia canções-não-canções como “Sá Marica parteira”, que na verdade não tem nada a ver com a canção do show business (letra + melodia + arranjo), é um interminável monólogo puxado pelo resfolêgo da sanfona, cheio de efeitos sonoros de-boca (“piriri, piriri, piriri...”, “nheeeééém-pááá!”), sem primeira e segunda parte, sem refrão, um misto de teatro de palco e anedota radiofônica. Eita caminho largo para a música brasileira, caminho largo onde tão pouca gente já passou!

Samarica Parteira:



Gonzagão foi contraditório como todos os grandes artistas populares que saem da pobreza, chegam à riqueza, e insistem em continuar segurando ambas as pontas de um cordão tão comprido. Contraditório como quem, mesmo amado e endeusado por milhões, ainda se dirige a certas figuras com o tratamento respeitoso de “Seu Dotô”.  Contraditório ao assinar composições que só eram suas pelas beiradas, graças à adição de um riff de teclado, de um refrão concebido na hora de gravar, mas que o fazia com o coração aberto de quem sabia que aquilo ali, num sentido artístico bem profundo, era tudo seu.

Numa entrevista antiga, o repórter lhe perguntava no final como ele via toda a sua trajetória, a vida, a obra, tudo que realizou. E ele já velhão, cansado, tranquilo, alargou o sorriso e disse:

-- Isso estava escrito. Deus quis, aconteceu. Foi bom pra mim.  É bom pro povo.

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4191) Como enrolar o leitor (17.12.2016)

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Qualquer literatura que dependa de mistério e de suspense precisa mentir para o leitor, ou, na mais santa das hipóteses, despistá-lo. Precisa evitar que ele perceba de antemão as surpresas que o autor está armando à sua revelia. Isso nos sugere em primeiro lugar o romance policial de mistério, aquele tipo de enigma: quem cometeu o crime, como conseguiu fazê-lo, que motivos tinha para isso.

A literatura de suspense, o chamado thriller, precisa disso também, não porque haja nela propriamente um grande mistério a ser desvendado, mas dezenas de pequenas lacunas, omissões, coisas mal explicadas... É preciso que o leitor fique sem saber de dados essenciais. O efeito dramático dessa ignorância se reflete no protagonista, principalmente quando este está acuado, perseguido, na defensiva, enfrentando situações inesperadas e arriscosas; quando tem que tomar decisões fatais sem ter dados suficientes para isso.

O que significaram tal frase, tal atitude, tal gesto de alguém? O personagem, em perigo, é obrigado a examinar com intensidade tudo com que vai se defrontando no transcorrer da sua aventura. E o leitor também.

Cabe ao autor, então, ter seus recursos para, ao mesmo tempo em que faz jogo limpo com o leitor, obscurecer sua vista. Tem que dar ao leitor as informações miúdas, aparentemente desimportantes, que serão cruciais no desfecho. Mas dá-las assim como quem não quer nada, no meio de um diálogo, uma descrição, uma enumeração tediosa que o leitor lê, não valoriza, mas que recordará quando o véu se rasga e a explicação final cai no seu colo.

Agatha Christie, por exemplo, é mestra disso. Um dos meus exemplos favoritos é o daquele romance em que Poirot questiona (a propósito de um álibi, ou coisa assim) uma data qualquer, com um personagem. No aceso da discussão, o outo caminha até a parede e confere o calendário pendurado ali. Poirot queria apenas testar sua impressão de que o criminoso era míope; a data era mero pretexto.

Isso é uma bobagem, mas é como o drible de fingir que vai para um lado e ir pro outro. Por algum mistério, todos os zagueiros estão prevenidos contra ele, e ele continua funcionando.

Isaac Asimov, num dos seus formulaicos e divertidos mistérios dos “Viúvos Negros”, conta a história de um segredo de cofre ou coisa parecida, que não passava de uma fórmula, uma sequência de números e letras, datilografada nas velhas máquinas mecânicas (esta expressão não é tão redundante quanto parece) de 1976. No final do conto, ele mostra que o que vinha sendo lido por todos como um número 1 era na verdade uma letra “l” minúscula – pois nas máquinas antigas essa tecla era usada tanto para esse algarismo quanto para essa letra.

Diz Asimov: “Onde quer que alguma coisa, não importa o quê, possa ser vista de duas maneiras diferentes, eu tenho uma história de mistério na mão para ser escrita. Todo mundo vê do jeito errado, e só meu detetive vê do jeito certo.”

Isso é o Ovo de Colombo. Equivale a Garrincha avisar os russos que vai driblar pra direita e cruzar pro meio da área.

Outro exemplo: não quero citar diretamente a história original, para não dar spoiler, mas digamos que no auge de uma epidemia numa cidade moderna os médicos estivessem tentando desesperadamente identificar de onde provinha o contágio de tanta gente, e  alguém dissesse:

“O professor passou metade da noite checando os lugares onde os pacientes tinham estado, em busca de possibilidades de contágio. Oito eram estudantes na Faculdade X. Onze tinham estado na fila de uma mesma loja. Nove tinham trabalhado na restauração de um prédio e trinta tinham feito compras no Shopping Y.”

No fim do livro a gente fica sabendo que o lugar crucial para esse fato foi justamente o prédio restaurado; mas o autor soube deixar essa informação quase invisível. Primeiro, diluiu a informação vital no meio de três outras. Depois, indicou na tal restauração uma quantidade de “casos” menor que o exemplo anterior, e logo depois deu uma brusca subida, arrastando, para esse último registro, a atenção de um leitor que está calculando possibilidades numéricas de contágio.

Ou seja: a informação foi dada ao leitor, estava ali o tempo todo.  É essa arte de enrolar o leitor que o autor do romance ou conto de detetive compartilha com o mágico de salão: “Vou serrar esta pin-up ao meio! Vou explodir o cubo de água e ninguém vai se molhar! Vou tirar de dentro desta cartola uma coisa que não ocorreu a nenhum dos meus colegas!”

Tanto no mistério quanto no suspense, muita coisa depende da habilidade do autor em nos fazer ver as coisas de um modo X e logo depois demonstrar que não, a interpretação correta era Y. Um dos grandes defensores do “fair play” no romance policial (a atitude de dar ao leitor as informações necessárias para solucionar o enigma), John Dickson Carr, comenta isto num ensaio famoso (“The Grandest Game in the World”, escrito em 1946, em resposta a “A Simples Arte do Crime” de Raymond Chandler, de 1944).

Ao revelar a resposta do mistério, diz ele, o autor evoca detalhes que não foram corretamente interpretados pelo leitor:

“Seres humanos se movem ali, e não bonecos cheios de serragem, porque o autor nos descreveu suas inflexões de voz, e suas nuances de sentimentos, com o mesmo rigor com que descreveu a descoberta das tachinhas de metal  embaixo do sofá, por parte do Inspetor Hogarth. Ele não deixou de fazer um estudo dos seus personagens somente porque estava preparando seu enredo de trás para diante. Aquele giro com os olhos – mas é claro!  Aquela hesitação momentânea, quando Betty põe a mão no peitoril da janela, como para se apoiar – naturalmente!”.

E o leitor de romance policial atravessa o livro com o movimento pendular entre o “você não é mais esperto do que eu” e o “me engana que eu gosto”.








4192) Spielberg 70 anos (22.12.2016)

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Dias atrás o diretor Steven Spielberg completou 70 anos, e recebeu homenagens nas redes sociais. Fiquei pensando se valeria a pena escrever alguma coisa a respeito, não apenas porque todo mundo está falando, mas porque ele é um dos cineastas que eu mais presto atenção.

Não direi que é um dos meus 10 preferidos, nem dos meus 20, até porque não costumo classificar coisas dessa maneira. Mas simpatizo com a persona pública dele, com o modo como ele filma, com muitas idéias que ele expõe nas suas entrevistas...

Enfim, me veio a idéia de fazer pequenas comparações entre ele e outros diretores, para deixar mais claro, por efeito de contraste, as razões por que gosto de algumas coisas dele e não gosto de outras.

Spielberg x Kubrick

Nunca deixei de comparar os dois diretores desde que Spielberg herdou de Kubrick, após a morte deste, a realização do projeto I. A. -- Inteligência Artificial (2001), aquela fábula de Pinóquio futurista, o menino robô que sonha em virar menino de verdade. Os dois são cineastas que exploraram a FC mas se dão bem em qualquer gênero.

Para mim quem colocou de maneira mais precisa a diferença entre eles foi Terry Gilliam nesta entrevista: http://www.openculture.com/2011/11/terry_gilliam_on_filmmakers.html. O que estraga o cinema de Spielberg, diz ele, é a obrigatoriedade do final feliz, da resposta reconfortante, ingrediente hollywoodiano obrigatório.  Filme de Hollywood é como uma refeição que precisa terminar com doce. Mesmo quando aborda assuntos amargos, Spielberg cede a esse dogma dramatúrgico.

Diz Gilliam: “Há uma frase bem esclarecedora de Kubrick sobre A Lista de Schindler. Ele diz que é um filme sobre o sucesso: ‘vejam que cara fodão, ele salvou uma porção de gente’. Mas o Holocausto é uma história de fracasso, do fracasso da Humanidade em impedir o assassinato de seis milhões de pessoas”. 

Eu completaria o comentário de Gilliam dizendo que o uso da música revela muito bem o espírito de cada um dos dois. Kubrick já fez milhões de espectadores darem um pulo de susto na poltrona meramente por causa da música: a valsa das espaçonaves em 2001, a canção nostálgica que sublinha o holocausto atômico em Dr. Fantástico, a impressionante e assustadora trilha de De Olhos Fechados, a ironia de justapor tortura e Beethoven em Laranja Mecânica...

Já Spielberg nunca deixa de usar o amaldiçoado indutor-emocional feito de violinos plangentes e teclados exuberantes para sugerir amor, ternura, nostalgia... Falta pouco para Spielberg filmar Kafka e botar Richard Clayderman na trilha sonora.


Spielberg x Lucas

É quase inevitável citar os dois juntos, porque são amigos, parceiros, começaram juntos, e os dois se destacam na sua geração pelo fato de serem dois cinéfilos, dois caras que não gostam de bebida, nem de drogas, nem de farra (eu quase diria que não gostam de sexo): gostam de cinema e nada mais. (Leiam os capítulos sobre esses dois monges perdidos num carnaval de cocaína e surubas, em Como a Geração Sexo, Drogas & Rock-and-Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, Ed. Intrínseca).

Os dois estão para o filme de aventuras juvenis assim como Francis F. Coppola e Martin Scorsese estão para o filme policial de sua época. Enquanto Lucas realizava a primeira trilogia de Star Wars (em 1977, 1980 e 1983), Spielberg produziu sua trilogia de Indiana Jones (em 1981, 1984 e 1989) No espaço de uma década, uma geração inteira de adolescentes sofreu um brutal upgrade em seu conceito de filme de aventura.

Comparando os dois: Spielberg é um diretor de cinema completo, com qualidades e defeitos que são a cara do cinema do seu país e do seu tempo. Lucas não é bom diretor, mesmo tendo iniciado a carreira com dois filmes fortemente autorais e satisfatórios (a distopia FC THX-1138 e o rito de passagem adolescente de Loucuras de verão).

Lucas é um produtor e idealizador em grande escala, mas como diretor involuiu ao longo dos anos. A trilogia do meio de Star Wars é constrangedora. Spielberg tem algumas escorregadas brabas, mas volta e meia vem com um filme que merece respeito, como Minority Report.



Spielberg x Hitchcock

Meus filmes preferidos de Spielberg são Encurralado, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T., Caçadores da Arca Perdida, O Império do Sol e Minority Report. (Com a ressalva de que não vi vários filmes importantes dele – ainda preciso ver o Soldado Ryan e aquele dos agentes do Mossad executando os terroristas de Munique.)

Alguém definiu Spielberg como “um animal cinematográfico”, e eu interpreto isso no sentido de que ele pensa instintivamente em forma de imagens em movimento, é algo que está nos seus processos mentais básicos. Outros cineastas têm uma idéia e depois pensam em como transpor essa idéia para imagens: Spielberg já pensa em forma de imagem. É como certo tipo de jogador de futebol, como Romário e Messi – quando a bola chega no pé, ele já sabe tudo que vai fazer.

Hitchcock é a mesma coisa, elevada a um grau que chega ao preciosismo. Muita gente criticava Hitchcock por sacrificar tudo ao efeito de linguagem.  Ele sacrificava a verossimilhança da história, a psicologia dos personagens, a verdade factual, tudo pelo prazer de criar uma cena bem feita. Eu acho que ele não conseguiria filmar de outro modo. Ao escolher uma história, era a forma cinematográfica que aquela história ia assumir que lhe interessava. Spielberg também.

Houve um aprendizado, claro. O livro de Peter Biskind que citei aí em cima fala do terror de Spielberg durante a filmagem de Tubarão ao perceber que seus diálogos em campo e contracampo, filmados no próprio mar, davam saltos incômodos na tela porque a cada plano o céu estava com uma luminosidade diferente.

Mas mesmo nos seus filmes mais fracos a gente percebe como ele dominou rapidamente essa percepção instintiva da melhor maneira de posicionar e mover a câmera e os atores, mudar o enquadramento, destacar o som, fazer o corte, encaixar o momento do diálogo... 

É o cinema ideal?  Não, mas é uma depuração perfeita do cinema-de-efeitos norte-americano, que teve entre seus criadores, é claro, o inglês Hitchcock, o irlandês John Ford, o austríaco Billy Wilder, o alemão Ernst Lubitsch etc.









4193) Natal 2016 (24.12.2016)

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(ilustração: Michael Hutter)


...como a ave que volta ao ninho antigo
mas um degrau acima na espiral,
volta a Terra em seu giro sideral
para um lugar de onde jamais saiu.
Um campo fumegante: é o Brasil.
É a rua a que volto, é meu dezembro,
é a dor que lateja em cada membro,
punhalada de sangue, o osso vivo,
onde pulsa o relógio primitivo
da hora, do minuto e do segundo.

É o bafo da máquina do mundo
no cangote dum bicho encurralado,
roldanas, aguilhões, aço cromado,
cremalheiras, pistões, tornos de prensa.
Uma engrenagem dadaísta, imensa,
se arrastando em clangor de ferro velho,
balbuciando ao vácuo um evangelho
de cataclismos e de armagedons,
profecias do caos, deuses anões,
monstros sem ossos, feras amputadas.

Sento na cama. Quantas madrugadas
inda terei que despertar assim?
Que febre é essa que fervilha em mim,
coisa mil-bocas que me rói por dentro?
Um labirinto em ziguezague. Eu entro.
O piso range. O ar cheirando a mato,
e eu caminho a pisar cocô de rato...
Sento na cama: agora despertei.
Acendo a luz. Vou levantar. Farei
o meu café e vou pensar na vida.

Uma terra arrasada e comburida
é tudo que percebo atrás do véu
de ilusão que costura a terra ao céu
como cascata virtual de imagens.
Eis a mais verossímil das miragens:
uma falácia de nação feliz,
versão fotoshopada de um país
para iludir os tolos e os incautos
disfarçando os conluios e os assaltos
na bruzundanga da maracutaia.

E a gente nada e nada rumo à praia,
recebe o forno-inferno do verão,
finge estar bem, mente que sim, que não,
malabariza as contas todo mês,
paga duas em quatro ou uma em três,
pede emprestado a João pra pagar Zé,
tropeça, cambaleia, fica em pé,
respira fundo, calma, vai dar certo,
fique frio, meu bom, e fique esperto,
ninguém teve jamais segunda chance.

Enquanto tiver perna, amigo, dance
conforme a música da Cosmo-Esfera:
monte no tigre, deite com a pantera,
dê nó cego com as pontas do arco-íris,
se veja esquartejado como Osíris
e ressuscite como fez Sherlock,
saia voando no Pássaro Rock,
grite, esbraveje contra o fim da luz,
erga o brinde espumante pra Jesus
bebendo a Itaipava a dois reais.

E retornam os mitos estivais
os perus, os pavês; bimbalham sinos.
E o loop inapelável dos destinos
entrelaçados no DNA.
Pois não houve, não há nem haverá
algo além dos limites desta vida.
É no tempo-real desta partida
que tudo se decide no placar,
e enquanto brilhe acesa a luz do bar
ergue o copo sorrindo, vem comigo...









4194) A Baleia Jupiteriana (29.12.2016)

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Eu vinha chegando em casa e no saguão do prédio encontrei um vizinho que não via há meses. Trocamos cumprimentos rápidos e ficamos esperando o elevador. Ele estava carregando embaixo do braço um quadro emoldurado. Quando percebeu meu olhar, ergueu a pintura para que eu visse melhor. Parecia uma proposta recusada para pôster de filme-de-tubarão japonês, um leviatã pouco anatômico brigando com as próprias pinceladas.

- E aí? – disse ele. – O que achou?

- Que legal – disse eu. – É impressionante.

- Foi minha mulher quem fez, estou trazendo do moldureiro. É um retrato de Anikiok. Você sabe sobre Anikiok, claro.

Comigo não tem tempo ruim, de modo que respondi:

- Sim, tenho ouvido falar, mas do que se trata mesmo?...

- A fé encontra seus caminhos – disse ele. – E Anikiok se manifesta em nós prioritariamente através de emanações de fé. Claro que ela não atingiu você ainda. Normal. É só uma questão de tempo.

Com o rabo do olho vi o elevador vindo do 18 para o 17 e fui me preparando.

- Sem dúvida – respondi.

- Fatos: Anikiok é a baleia jupiteriana cujo influxo telepático é a única força responsável pela harmonia em nosso planeta. Ela nos comunica a sensação do bem, da verdade, da justiça.

- Beleza – respondi.

- Beleza também – disse ele. – Toda a arte legítima produzida pela humanidade é uma emanação de Anikiok. Mas, por que estou lhe dizendo isso?!  Você não é um crente.

- Eu sou uma espécie de agnóstico – respondi.

- Você nega a existência de Anikiok?

- Não, não, é justamente o contrário. Digamos que eu não tenho dados para comprovar nem a existência nem a inexistência dela. É tudo muito novo ainda.

- Se você dedicasse algumas horas por dia a pensar em Anikiok facilmente aceitaria a existência dela – disse ele.

- É por isso mesmo que eu... – O elevador estava parado há horas no 15. – Que eu dedico sempre um pouquinho de tempo a todas as religiões. Já li a Bíblia, já consultei o Alcorão, li sobre Taoísmo, Budismo... Tudo ao mesmo tempo.

- A diferença – disse ele – é que essas são as falsas religiões, e a nossa é verdadeira.

- Não duvido – disse eu. – Parabéns.

- Você aceita Anikiok, então.

- Quem sou eu pra aceitar nada, amigo. Diga a Anikiok que estou receptivo às emanações telepáticas dela. Sou um homem mente-aberta.

- Mas acabou de dizer que é agnóstico. Um agnóstico é alguém que nega.

- Acho que me exprimi mal, essa palavra é meio arriscada – disse eu. Catorze... treze... doze...– Um agnóstico não nega a existência de um determinado ser. Ele apenas acha impossível provar que esse ser existe ou não. Para os crentes, a fé basta. Para nós, precisa algo mais que a fé.

- Você tem nível – disse ele. – Está convidado para vir ao nosso culto hoje à noite, para conversar com o pastor González.

- Tem pastor também? Eita, é o mundo todo.

- Vamos ter um culto e uma ceia. Não adotamos restrições allimentares. Tem peru, tênder, arroz de passas, farofa... Uísque e vinho também, se bem que você deve ser da linha cerveja. Pois vai ter cerveja e castanha assada.

- Eu sou um homem de linhas variadas – falei. Oito... nove...– Não tenho preconceito com religião, que dirá com bebida.

- Sobe lá em casa às 20 horas, - disse ele. - Eu moro no 2203.

Na subida do elevador ele me explicou detalhes do quadro: “O verde-limão exprime a amônia, que é para Anikiok o que o oxigênio é para nós”.  E reforçou o convite: “Venha mesmo, você vai somar. Vai ter pessoas da área da cultura - meu cunhado é publicitário”.

E não é que eu fui?  Tinha mesmo tudo, e muito mais. Houve um momento em que demos todos as mãos em torno da grande mesa redonda e cada um foi convidado a cerrar (não era fechar, era cerrar) os olhos e dizer em voz alta a mensagem que recebia de Anikiok. Como no momento eu era o primeiro à direita do anfitrião, tive que começar. Nem tive tempo de pegar os motes alheios pra dar uma glosada com diplomacia. Cerrei os olhos e disse a primeira coisa que me veio à cabeça, o título do conto submarino-venusiano de Roger Zelazny:

- The Doors of his Face... the Lamps of his Mouth.

Disse até bem, e num tom de voz que preservou as iniciais maiúsculas. Parece que impressionou, porque vários outros mandaram em inglês também, com múltiplos resultados.

A ceia rolou e nem precisei argumentar minhas posições. Os devotos de Anikiok estão mais ansiosos para falar do que para ouvir, e eu sou um Ouvidor Sênior desde os quinze anos.

Comi da castanha assada, do tênder, fui iniciado nos mistérios da telepatia vibracional enquanto degustava um Camembert de primeira com um Rufino tinto de boa safra.

Desci para meu apartamento depois da meia-noite, e mergulhei num sono empanzinado, agnóstico e jupiteriano, tudo ao mesmo tempo. E tive um vislumbre do que é ser um cetáceo num mar de amônia fervente, que nenhum sal de frutas é capaz de dissipar.










4195) Resoluções para 2017 (31.12.2016)

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Gravar um CD com as benditas músicas que as pessoas gostam.

Elucidar o Mistério das Máscaras de Chumbo.

Concluir o projeto alquímico-cibernético da abertura de um portal para um mundo menos chato.

Inventar um idioma aglutinante desprovido de vogais.

Consertar o encanamento da área de serviço.

Resolver o problema daquela esquina em Manaíra onde chega a ter três batidas de carro por dia.

Ler os 163 livros em PDF gratuito armazenados no computador.

Chamar para beber no bar cinco amigos meus que têm tudo a ver uns com os outros e que não se conhecem pessoalmente.

Fazer cirurgia naquele calo-de-sangue na sola do pé.

Trocar a porta do armário onde deu cupim.

Juntar num volumezinho os poemas alheios que já traduzi.

Descobrir como passar as fotos do celular velho para o celular novo.

Redigir e fazer publicar na grande imprensa uma “Carta Aberta aos Políticos Brasileiros”.

Recomeçar a jogar Riven (eita como eu sou velho).

Editar uma versão de “Grande Sertão: Veredas” com 800 páginas de notas.

Deixar a barba crescer e fazer um certo mistério a respeito.

Escrever biografias de Pete Best, Manuel Xudu, Raymond Queneau, James Ensor, Saul Steinberg e Edvaldo do Ó.

Fotografar um disco voador voando.

Fazer seis meses de psicanálise e usar isso como pretexto pra tudo que me der na veneta.

Pegar minhas fotos de Instagram e fazer um livrinho (só as fotos e os títulos) do tamanho de um compacto de vinil.

Aprender a andar de bicicleta o bastante para alguém me filmar por uns 10 ou 15 segundos, e registrar para a posteridade.

Fazer uma lista e sair ligando de pessoa em pessoa, pedindo desculpas por desatenções que vai ver que elas nem se lembram mais.

Faxina nas gavetas. Mesmo.

Passar um dia rodando por Campina e fotografando lugares especiais, projeto a se chamar “There are Places I Remember”.

Voltar a caminhar, a tratar dos dentes e a fazer checape.

Sair a pé de manhã de Laranjeiras rumo à Zona Norte, sem rumo pré-estabelecido, e pegar um táxi de volta quando me sentir na lona.

Consertar meu Prêmio Jabuti que levou uma queda há três anos e quebrou a base.

Comprar um HD externo pra copiar o HD do computador velho.

Decorar uma dúzia de poemas meus na ponta da língua pra não pagar mais o mico de recitar lendo.

Emoldurar as incontáveis gravuras de artistas amigos meus que tenho em forma de canudo, deitadas por cima dos livros.

Descobrir a pedra filosofal, a quadratura do círculo e a fonte da juventude.

Fazer uma limpeza em regra nas pastas de papéis obsoletos (recibos de contas de luz da casa onde morei 20 anos atrás, etc.).

Escrever o último capítulo (o único que falta) daquele livro iniciado em 2001.

Comprar um tênis e um sapato novo, tou precisando.

Praticar ioga, pilates, musculação, RPG, ginástica aeróbica e capoeira.

Traduzir “Le Bateau Ivre” de Rimbaud e abaixar de vez a crista da concorrência.

Inventar uma esferográfica que não deixe um borrão assim que encosta no papel.

Botar letra naquelas 76 músicas e música naquelas 118 letras.

Prestar mais atenção aos sentimentos dos terráqueos, eles não têm culpa de serem assim.

Levar um tiro de espingarda-doze na caixa-dos-peitos, acender um cigarro e dizer: “Nem doeu”.






4196) Um cão de lata ao rabo (9.1.2017)

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(Machado, por: Rocha + Takiguthi + Ramon Muniz)





Na velha edição da “Obra Completa” de Machado de Assis em três volumes, da Aguilar, li uma crônica dele em que um mestre escola sugere um tema a seus alunos.

O tema proposto é “Um cão de lata ao rabo”, e ao recolher os trabalhos o imaginário professor recebe três que se destacam dos demais. Os respectivos estilos são: “1 – Estilo antitético e asmático; 2 – Estilo ab ovo; 3 – Estilo largo e clássico.”

Esse é o exemplo mais antigo que me lembro de uma história sendo repetida, de três maneiras diferentíssimas, por três maneiras diferentes de pensar, que Machado parodia de modo muito divertido.


Anos depois dei uma furtadinha nesse título para um conto, tendo como mote a imagem sugerida por Machado. O escritor é um cachorro correndo. Amarrada ao rabo dele, há latas que produzem sons musicais diferentes. Essa melodia é o estilo dele, e a obra é o que resulta dela.

Existem escritores para quem escrever é rasgar a alma e as tripas e botá-las à venda na tábua de uma barraca pouco higiênica na esquina da baixa da Rua da Lama num país periférico e suicida. Para escritores assim, o estilo é a pessoa. Eles não poderiam escrever de maneira diferente, mesmo se disso dependessem suas vidas. O escritor é aquilo, ele escreve aquelas coisas, sempre daquele jeito. Ele não tem dois ou mais conjuntos de entranhas, só tem aquele.

E existem os que, sem perder a sinceridade ou o personalismo, manejam essas técnicas como Machado manejou. Para este segundo tipo de escritores, trocar de estilo é tão banal quanto trocar de roupa. Ou de figurino, porque o autor assim é um ator, troca de máscaras como bem lhe convém. Como faz Raymond Queneau em seus famosos Exercícios de Estilo, livro onde ele reconta uma mesma cena casual, entre transeuntes, de 99 maneiras diferentes.



Um cão que atravessa a mesma rua 99 vezes, cada vez com uma lata diferente atada à cauda. E cada vez uma sonoridade, um timbre, um andamento diferente. A lata é outra mas, por baixo disso, algo se repete e está sempre presente, porque o cão e a rua são os mesmos.

Queneau fez no seu livrinho uma demonstração meio por “redução ao absurdo”. Diante de suas piruetas verbais, os seus tradutores acabam se divertindo também, porque é um processo reiterativo que convida à reaplicação. Existe, sim, a Grande Arte da paródia, ou do pastiche, ou da imitação meramente técnica. 

Experimentos lúdicos desse tipo parecem às vezes, ao leitor pouco aficionado desses jogos mentais, uma demonstração de erudição, de alta complexidade. Nem tanto. Em geral, os escritores que gostam de truques assim (Lewis Carroll, James Joyce, Umberto Eco, Thomas Pynchon, Georges Perec) fazem porque acham divertido, e conseguem usar essa diversão como um gerador de energia-de-escrever.

Perec dizia que seu objetivo era produzir uma obra extensa onde não houvesse dois livros quaisquer pertencentes ao mesmo gênero. Não sei se conseguiu, mas em todo caso isso descreve bem a variedade das suas abordagens narrativas. Ele era cruzadista, meio cientista, fã de whodunits e de pulp fiction. E dominava (embora não tanto quanto seu mestre Queneau) um grande número de estilos.




Nem por isso sua visão do mundo, ou o que a valha, deixa de aparecer em tudo quanto ele escreve. A obra é raramente autobiográfica, mas estão há sempre referências a toda uma história sua que se perdeu e outra que se salvou.

Em casos como esses todos, a multiplicidade de estilos não se transforma numa multiplicidade de capas escondendo o autor, e sim como uma multiplicidade de rascunhos feitos de memória para captar uma imagem que se viu poucas vezes. Não são mil disfarces, mil camuflagens, são mil tentativas de aparecer feitas por algum fantasma.

Alguns têm a facilidade de ser publicados como humoristas, como foi o caso de Millôr Fernandes (“enfim, um escritor sem estilo!”), outro notório surrupião de modos de falar, ou como poetas, caso de Fernando Pessoa, que inventava tanto o estilo quanto o homem.



Ou como Daniel Clowes, o surrealista-lynchiano de novelas gráficas: Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro (Like a Velvet Glove Cast in Iron, 1993) tem a nonsequiturice de Um Cão Andaluz numa ambientação de road movie e semi-enredo de filme policial noir.

Um dos seus álbuns, Wilson, segue, de leve, a sugestão dos 99 de Queneau. Cada página isolada do livro é desenhada num estilo de grafismo e de cor diferente das anteriores – mas a história avança. Não é a mesma cena, são capítulos de uma mesma história, desconjuntada mas proposicionalmente única. Como se a cada salto do olhar para o começo da página nova houvesse uma troca de canal, ou uma aplicação de filtro.



Em Wilson, Clowes conta as atribulações de seu barbudo sub-herói, que em algumas imagens é a cara do Walter White de Breaking Bad (só que numa versão existencialista e menos agressiva). As mudanças de estilo têm continuidade suficiente para que o leitor possa pular de uma faixa para a outra sem atrapalhar o passo.  Li em algum lugar que alguns críticos nem perceberam, pelo pouco que comentaram, o uso de toda essa variedade de formas, com transições tão insistentes e propositais.



Se algum crítico nem percebeu isso não percebeu, está na companhia dos críticos que leram o livro de Georges Perec onde ele proibiu a letra E (La Disparition) e não perceberam que uma das vogais estava ausente do livro inteiro. O romance foi traduzido ao inglês por Gilbert Adair como A Void, e agora no Brasil como O Sumiço, em tradução de Zéfere (Ed. Autêntica).




Saber imitar estilos é como saber imitar a voz e os trejeitos dos amigos, ou ser capaz de produzir 99 personagens e diluí-los em si próprios, deixando ver o ator.




















4197) "Fogo Pálido" de Vladimir Nabokov (3.1.2017)

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Acabei ontem a leitura de Fogo Pálido de Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, 1962). É um daqueles romances policiais de “crime anunciado” onde nas primeiras páginas tomamos conhecimento de que foi cometido um crime mas nos é dito apenas o básico: quem matou, quem morreu. Todo o resto do livro é a reconstituição implacável dos fatos que conduziram àquele desfecho.

Meu livro preferido nesse subgênero é A Judgement in Stone (1977) de Ruth Rendell (“Um Assassino Entre Nós”, Editora L&PM), que começa com a frase famosa: “Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever”.

Dizer isso de Fogo Pálido, na verdade, nem raspa o verniz desse romance complexo e divertidíssimo, daqueles que mal a gente termina de ler tem vontade de voltar ao começo para reler tudo à luz das muitas revelações que são feitas ao longo de todas as páginas.

São várias histórias por trás do enredo básico, e a edição que li (Penguin, 2000) tem um ensaio introdutório de Mary McCarthy tão cheio de alusões surpreendentes que a releitura parece obrigatória.

Não garanto que todo mundo ache o livro tão divertido quanto eu achei. Talvez o excesso de referências literárias e de digressões fantasiosas desconcerte algum leitor. Mas é inevitável. Fogo Pálidoé formado por dois textos sucessivos: um poema em quatro Cantos e 999 versos, escrito pelo fictício poeta John Shade, e um ensaio explicativo escrito pelo também fictício Prof. Charles Kinbote, um dos mais formidáveis exemplos de narrador não-confiável em toda a literatura moderna.

Shade e Kinbote são professores de literatura na universidade fictícia de New Wye, nos montes Apalaches, e residem no campus. Ou seja: o livro é ambientado no universo onde Nabokov, também professor, passou a maior parte de sua vida adulta. É cheio de rivalidades e maledicências acadêmicas, aquelas briguinhas-de-departamento que consomem a maior parte do fosfato dos cérebros mais privilegiados de nossa pirâmide intelectual.

A tradução brasileira que tenho é uma edição do Círculo do Livro, traduzida por Jório Dauster, que também já traduziu o Lolita do mesmo autor. Dauster é um tradutor ambicioso, que também já encarou livros de Thomas Pynchon, Virginia Woolf e Philip Roth, ossos saborosos e duros de roer.



Gostei do modo tran-chan como ele corta um nó górdio bastante embranquecedor de cabelos, ao anunciar que certos comentários do Prof. Kinbote, sobre detalhes técnicos de metrificação e prosódia na língua inglesa, não têm equivalente em português e não podem (ou não precisam) ser traduzidos. Nenhum problema, pelo que me toca. O livro é tão pontilhado de pequenos achados verbais invariavelmente brilhantes que ninguém vai sentir falta.

Claro que nem todo mundo aprecia as piruetas verbais de Nabokov: somente os que curtem trocadilhos, anagramas, jogos de palavras, acrônimos, mutações verbais, neologismos... Nem todo mundo gosta disso. Somos poucos, mas somos felizes.

O ensaio de Mary McCarthy registra, entre outras coisas, as incontáveis referências shakespearianas no livro de Nabokov. Elas começam pelo titulo: o fogo pálido a que ele se refere é a luz do sol, roubada pela lua para poder brilhar também.

A citação é da peça Timon de Atenas, ato IV, cena 3, quando Timon se dirige a um grupo de ladrões:

(...) Eu vos darei exemplos de ladroagem:
o Sol é um ladrão, que com sua atração poderosa
rouba o mar para si; a Lua é ladra contumaz
e seu fogo pálido é roubado ao próprio Sol;
o Mar é ladrão também...  (trad. minha)

Mary McCarthy parte desta citação para glosar temas associados ao “roubo”, principalmente o tema do reflexo, da imagem roubada a alguém. Esse jogo de duplicidades é mantido durante o livro inteiro com o uso de duplas personalidades, identidades falsas, passagens secretas, espionagem, duplicidade sexual etc.  Há sempre alguém furtando e usando algo que não lhe pertence, seja uma identidade, uma imagem, um papel social.

Pale Fireé também o livro em que Nabokov introduziu uma de suas criações mais memoráveis, o país imaginário de Zembla, situado ao norte da Rússia. É de lá que vem o Prof. Kinbote, daquela espécie de Ruritânia cheia de príncipes, palácios, arquiduques, jardins de inverno, paradas militares e golpes de Estado.

Exilado nos EUA, Kinbote torna-se amigo e tiete do poeta John Shade, e de certo modo o influencia a escrever um poema sobre o reino fantástico de Zembla. Um dos grandes efeitos cômicos do livro é o fato de que o poema acaba sendo escrito, mas o poeta só fala de si mesmo, e o comentarista sempre dá um jeito de dizer que ele está se referindo a Zembla.

As quilométricas notas do Prof. Kinbote criam uma fascinante realidade paralela e têm muito pouco a ver com o texto sendo analisado. Mas, como Kinbote afirma em sua Introdução, “para o bem ou para o mal, é sempre o comentarista que tem a última palavra”.









4198) A festa dos poetas (8.1.2017)

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(foto: Dantinhas Vilar)


E lá fui eu mais uma vez parar em São José do Egito (PE), para a Festa do Rei, que celebra a data de nascimento do cantador Lourival Batista, o famoso “Louro do Pajeú”. Este ano o mote da festa foi: “102 anos de Louro / e 100 de Zezé Lulu”. Não cheguei a conhecer pessoalmente este último, cujos versos aparecem em todas as antologias, mas fui amigo de Louro, vi-o cantar pelo Brasil afora numa excursão, e muitas vezes nos bares de Campina Grande.

Louro era chamado o Rei do Trocadilho, pela sua obsessiva mania de desmontar e remontar palavras, refazendo-lhes o som e o sentido. Um dos seus versos mais famosos diz:

Você diz que eu sou pobre
isso é desgraça perene
mas tire o P, bote um N
e eu acabo sendo nobre...
Troque por C, fica cobre;
cobre é parente de ouro;
botando um T fica touro
como a carne e vendo a pele;
o T sem o traço é L
e eu fico mesmo por Louro. 

Isso é da mesma família dos “doublets” ("dublês"), as mutações verbais praticadas por Lewis Carroll (o de Alice no País dasMaravilhas), onde ele transformava GOOD em EVIL trocando uma letra por vez (e cada palavra resultante tem que ser obrigatoriamente uma palavra de verdade, de uso corrente). Augusto de Campos adaptou essa brincadeira para o português, produzindo séries como BEM / sem / som / sol / sal / MAL, etc.

Acho que é o mesmo jogo a que Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, na nota à linha 812 do poema) se refere como “Word Golf”, onde se transforma HATE em LOVE em três estágios, e LIVE em DEAD em cinco (“com LEND no meio”). Uma arte que no Brasil teve também entre seus praticantes o poeta Augusto de Campos:


("doublets" de Augusto de Campos)


Mas enfim. Lá me fui para São José do Egito na confortável carona de Leimar de Oliveira e Maria Inês, comparsas fiéis de várias décadas. No trajeto Campina-São José fomos vendo a caatinga esturricada. Entre o Natal e o Ano Novo caiu um dia de chuva em Campina, e bastou isso para que a vegetação na estrada para o Sertão estivesse verde pela metade.

Lancei na festa meu livro Cantoria: Regras e Estilos, volume 1 da série "Arte e Ciência da Cantoria de Viola" (Ed. Bagaço, Recife), o que só aconteceu graças à insistência de Amaro Filho e Cláudia Moraes, da Página 21 (que produz o evento) e à acolhida sempre carinhosa da família Marinho, descendentes de Louro, tendo à frente Antonio Marinho, meu parceiro em outros trabalhos. (O nome de Lourival era Lourival Batista Patriota; a família usa artisticamente o sobrenome Marinho, da linha materna, que descende do grande Antonio Marinho, o primeiro cantador que Ariano Suassuna viu cantar, quando era menino.)



Reencontrei Zé de Cazuza, o homem-gravador, paraibano véi que é a memória viva de cantoria, e com 87 anos sabe tanto verso que se fosse recitar tudo ia precisar de outro-tanto de prazo. Me recitou versos fesceninos, sonetos de Rogaciano Leite, repentes geniais de cantadores cujo nome nunca ouvi. 


(foto: Amaro Filho)

Aqui, um pequeno vídeo sobre Zé, pela TV Itararé de Campina Grande:

Reencontrei Dedé Monteiro, o poeta de Tabira que recentemente foi reconhecido como “Patrimônio Vivo de Pernambuco” pela Fundarpe, poeta do coração grande, do gesto elegante e da palavra precisa. Aqui, um vídeo de Dedé recitando um dos seus poemas mais conhecidos, “Fim de Feira”:


Direis agora: é uma festa da velha guarda?  Sim, mas a jovem guarda também pisa no palco. Vi apresentação de bandas heavy metal de São José homenageando um jovem integrante falecido no ano passado, Carlinhos Veras, cantando metal em inglês mas também um belo e vigoroso arranjo para “Assum Preto” de Gonzaga e Humberto Teixeira. (Furar os olhos dum passarinho pra ele cantar melhor. Tem coisa mais heavy metal do que a letra dessa música?!). 

Shows com bandas jovens como Em Canto e Poesia (dos irmãos Antonio, Greg e Miguel Marinho), Vozes e Versos (que fez uma bela recriação do meu “Caldeirão dos Mitos”), As Severinas (uma das melhores bandas femininas de forró que se pode encontrar por aí), e até do Spock Quinteto, do Recife, trazendo frevo e ciranda para a festa do Sertão.

Teve uma mesa de glosa cheia de suspense e bem conduzida por Jorge Filó; teve a projeção de filmes sobre o universo da cantoria, com destaque para "Maria" de Carol Correia e "O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras" de Petrônio Lorena, sobre a dama-da-noite Severina Branca, musa de muitos poetas boêmios de São José, hoje octogenária e bem humorada, sentada na fila da frente.

Tive também a alegria de receber a visita de Dantas Suassuna e Dantinhas Vilar, que estavam em Taperoá e queimaram o chão quando souberam que eu estava em São José, porque temos projetos em comum que serão anunciados no momento propício.

E para que isto aqui não fique parecendo uma enorme coluna social, um pouquinho de reflexão. A festa de Louro é uma festa que celebra velhos poetas centenários, mas também é uma festa realizada por jovens. Jovens como eu fui um dia, curiosos de conhecer não apenas o andar térreo do mundo, que é o presente, mas todos os demais andares daí pra cima, que são os séculos acumulados no arranha-céu do Tempo.

Porque só o Passado existe. O presente é uma luz estroboscópica piscando entre o instante, a memória e a imaginação. Tudo que existe de material e imaterial no mundo pertence ao passado. O tênis que estou calçando, o café que tomo, o pão quente que estou comendo agora, tudo isto foi feito no passado. O futuro é uma aposta, uma suposição de fé.

Uma vez eu discutia com um amigo punk sobre “essa mania que os nordestinos têm de cultuar o passado”. Passado para ele, naquela conversa específica, eram os Beatles. Perguntei: “Quem é o presente, então?”. Ele disse “Os Ramones”. Eu disse: “Rapaz, os Ramones são passado também, aliás, se for fazer uma estatística, no cemitério já tem mais Ramone do que Beatle.”

Tudo é passado. A música do século 18, o cinema do século 20, o rock de 2016 e o jornal de ontem são passado. A epopéia de Gilgamesh, as lendas do Rei Artur, tudo são partes do passado, mas se mantêm vivas no presente, graças a nossa memória e nossa recriação.

Sim: na memória, que mantém vivos tanto os Beatles quanto os Ramones. Lá, os dois são contemporâneos de Dedé Monteiro e Zé de Cazuza, são contemporâneos de Lewis Carroll e de Lourival Batista.

O passado que continua acontecendo agora, através de alguém, é tão presente quanto as coisas que acabam de brotar pela primeira vez. Na frase famosa de William Faulkner, “o passado não morreu, ele nem terminou de passar ainda”. Podemos dizer também que não existem o passado, o presente e o futuro. Só existem dois tempos: o Passado e o Passando.

E dou a cara a bofete se na festa dos 200 anos de Louro não houver rock, forró, cantoria, mesa de glosa, cerveja em lata e churrasquinho no espeto de pau (porque ninguém é de ferro).







4199) Romances emprestados (12.1.2017)

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Alguns escritores afirmam que as idéias caem do céu sobre a sua cabeça como cocô de pombo. O cara sai de casa para ir na papelaria da esquina a fim de comprar um cartucho de tinta 92 preto, e de repente sente alguma coisa quente a lhe escorrer pelo cérebro. É um conto policial pronto, protinho, saído do forno, desencadeado pela visão de um grupinho de pessoas conversando diante de um prédio enquanto um deles toca a campainha.

Por esses mecanismos inexplicáveis, ele percebe (não “imagina”; ele sabe, com a convicção dos verdadeiros ficcionistas) que aquele velhote é Fulano que tem tais ou quais objetivos inconfessáveis, aquela mocinha é Sicrana que está entrando de gaiata numa conspiração alheia, aquele senhor de terno é Beltrano que pensa estar dando um golpe mas também é vítima, aquela menina emburrada de óculos será a narradora de tudo, quando na velhice vier a entender de fato o que se passou.

Assim nascem muitos contos: como uma configuação casual que se cristaliza quando a imaginação malévola (mas em últimos termos inofensiva) de um escritor projeta sobre gente de verdade seus sonhos ou pesadelos de mentira.

Julio Cortázar comentou certa vez que a coisa que mais lhe ocorria em coquetéis ou reuniões sociais era alguém se aproximar dele e dizer algo na linha de:

-- Bem, já que você é escritor, escuta esse fato que se deu comigo, tenho certeza de que você vai fazer dele um conto sensacional.

O longilíneo Julio garante que nunca um conto lhe brotou depois de um ameaço dessa natureza, mas, em compensação, um papo casual entre algumas senhoras, entreouvido sem compromisso, lhe inspirou “Los buenos servicios”, um dos contos mais tocantes do livro Las Armas Secretas (1959) – a história de uma criada, uma mulher simples, que é contratada para fazer o papel da mãe de alguém desconhecido durante um velório.



Histórias emprestadas podem se transformar em grandes livros quando pousam no ouvido certo. Reza a lenda que o argentino Manuel Puig (o autor de O Beijo da Mulher Aranhae outros belos romances), quando morava no Rio de Janeiro, precisou fazer uma obra qualquer em sua casa e mandou vir um pedreiro. O pedreiro passava o dia trabalhando e conversando, e de seu monólogo autobiográfico Puig extraiu seu romance Sangue de amor correspondido (1982) – exercendo, sem dúvida, seu privilégio autoral de inventar quando lhe convinha.

Um dos clássicos da literatura brasileira, Memórias de um Sargento de Milícias (1852-53) foi publicado pelo seu autor, Manuel Antonio de Almeida, sob o pseudônimo de “Um Brasileiro”. Li em alguma parte – quem conhecer melhor a história que me ajude – que Almeida teve um certo pudor em se assinar como autor do romance (que saiu em folhetins nas páginas do suplemento “A Pacotilha”, do Correio Mercantil) porque toda a história lhe tinha sido passada verbalmente pelo sargento citado no título, e ele não fez mais do que registrá-la por escrito e publicá-la.



A prática do jornalismo é um dos principais canais deste veio da literatura em que a história narrada oralmente por A se transforma no romance escrito por B. No Rio de Janeiro contemporâneo os romances de Julio Ludemir sobre personagens obscuros do crime organizado têm também como base essas histórias de vida recriadas por escrito: No Coração do Comando (Ed. Record, 2002), Lembrancinha do Adeus (Ed. Planeta, 2004) e outros.




“Romance emprestado” talvez não seja o nome mais adequado para essa vertente, porque romance é o resultado final, e o que o primeiro narrador empresta é apenas o argumento errático, episódico, fragmentado, que serve de base ao trabalho estrutural e formal realizado pelo escritor. Mas não há dúvida de que quando não somos capazes, naquele momento, de conceber uma grande história, podemos pelo menos estar atento às histórias que o mundo coloca de bandeja no colo da gente.







4200) Flash Fiction (16.1.2017)

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Os textos curtíssimos de ficção, dos quais falo aqui de vez em quando, estão para a prosa narrativa mais ou menos como o cartum está para a história em quadrinhos (HQ).

O cartum é algo que a gente olha, lê em alguns segundos, e recebe o impacto – pá!...– de uma idéia, que em geral vem sintetizada em uma imagem e uma ou duas frases (às vezes só a imagem mesmo).

Dizem os teóricos e praticantes da ficção curtíssima que ela serve como equivalente verbal disto.

Seriam as famosas “histórias em 6 palavras”: o exemplo famoso é atribuído a Hemingway: “Vende-se. Sapatinhos de bebê. Nunca usados.

Ou as “histórias em duas frases”. Gosto desta, que achei em inglês por aí, assinada com nickname: “Dia 312. A Internet ainda não está funcionando.” – fluffyponyza.

Ou as “histórias com 100 caracteres”: “Quando Gustavo C. acordou de sonhos intranquilos, estava metamorfoseado num livro escrito em húngaro.”, de Gustavo Melo Czekster.

Em inglês usa-se muito o Drabble, que são historietas de exatamente 100 palavras (não contando o título). Exemplos aqui:



Tudo isto, para mim, equivale a um cartum. Pá!– e o efeito acontece. Acho que a principal crítica que pode ser feita a isto, em termos de ficção em prosa, é que a ficção geralmente busca produzir uma impressão de passagem de tempo, de mudança, de transformação psicológica. E essas ficções curtíssimas proporcionam apenas a mais rápida e superficial das mudanças, que é a surpresa.

Em tese, qualquer história, com o mínimo de duas palavras, pode indicar permanência + mudança, identidade + alteridade, espaço + tempo. Mesmo a mais curta. “Eu morri”– está tudo aí.

Tem gente que pergunta: “Mas então o romance vai deixar de existir?! Vamos ser proibidos de escrever livros de 200 ou 300 páginas?!”  Não, colega. Ninguém vai proibir nem aposentar coisa nenhuma. Cada um faz o que lhe der na telha, conforme a altura de sua escada. Fazer microficções desse tipo é apenas um exercício que agrada a alguns porque parece aquelas esculturas de santos feitas num palito de fósforo, ou os caras que conseguem escrever o Pai Nosso numa cabeça de alfinete.

Quando comcei a escrever no “Jornal da Paraíba” em 2003, minha coluna tinha tamanho fixo entre 2.900 e 3.000 caracteres. Amigos perguntavam por que eu não publicava um conto de vez em quando, e eu dizia que era impossível escrever um conto que prestasse num tamanho tão pequeno. E o fato é que, olhando meus registros, vejo que só comecei a tentar fazer isso depois de mais de 800 colunas publicadas.

Depois, em 2011, o limite de espaço no jornal caiu para 2600 / 2800 caracteres com espaços. A esta altura eu já tinha “pegado o cacoete” e estava produzindo pequenos contos curtos que, sem serem textos extraordinários, eram compactos, precisos, tinham começo-meio-fim, e me deixavam satisfeito, porque sempre fui de escrever muito. Se eu me pegasse com dois ou três personagens conversando numa mesa, então, não tinha papel que chegasse.

Vários desses contos estão em Histórias Para Lembrar Dormindo (Casa da Palavra, 2013). Algum desses meus contos é uma obra prima? Não, e nenhum deles precisa ser. São exercícios. Obra-prima é algo que acontece como resultado do nosso trabalho, mas independente de nossa intenção. Resulta de uma mistura misteriosa entre Inevitabilidade e Acaso.

Sentar no computador com a intenção de produzir uma obra-prima é como ir para a cama com a esposa com a intenção de produzir um filho bonito. Não é assim que essas coisas acontecem.

A “flash fiction”, como se chama por aí, é uma boa escola para quem pertence ao time dos fluentes, dos caudalosos, dos escrevedores velozes e compulsivos.

É neste sentido que oficinas literárias podem ser muito úteis inclusive para quem já escreve bem, para quem já publicou, ganhou prêmios, o escambau. Escritores assim alcançam uma certa medida de sucesso pelas qualidades que de fato existem nas suas obras, mas têm defeitos (esse de escrever demais, no presente caso) que a médio prazo começam a cansar o leitor.

Já vi oficinas de roteiro de cinema em que se cobrava dos alunos: conte sua história em uma frase, depois em um parágrafo de cinco linhas, depois em uma lauda, depois em dez laudas. Claro que uma tarefa assim nunca é feita em sequência. O cara vai botando a história no papel e vai percebendo os detalhes que pertencem a cada um desses estágios.

Praticando essa forma, o escritor, se chegar a dominá-la em certa medida, percebe a força dos efeitos narrativos na prosa muito curta, onde cada palavra pesa, onde se diz “o casarão” sem poder descrever o telhado, as cornijas, as janelas, as balaustradas, o pórtico, o muro coberto de hera...

A grande maioria desses textos curtos não tem muita narrativa, no sentido de contar uma historinha completa com começo, meio e fim: tem mais de reflexão abstrata ou de descrição concreta de uma cenazinha do cotidiano.

Não importa, a não ser que o autor queira se tornar um mestre nesse estilo. Para quem o utiliza como um meio, apenas, pode ajudar muito. Raymond Chandler escrevia seus romances usando folhas de papel cortadas ao meio. Cada fragmento de cena específico tinha de caber ali. Cada meia-folha daquelas era reescrita várias vezes. A existência de um limite nos obriga a valorizar tudo que poderá caber lá dentro. A extensão é uma “contrainte”, uma restrição voluntariamente auto-aplicada e fielmente seguida.








4201) Onze talismãs (20.1.2017)

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(ilustração: Greg Craola Simkins)

1
A medalha do santinho, cerrada com força na mão direita de Luísa, durante a decolagem e aterrissagem, e a tentativa de não pensar numa possível futura matéria de jornal registrando que na mão de uma das vítimas foi encontrado uma medalha milagrosamente intacta.

2
Uma foto dela na carteira, apenas isto; uma foto de doçura especial, foto que Maurício leva consigo para toda vez que tiver uma raiva dela recorrer à foto e fazer a raiva passar mais depressa.

3
O botão de volume do rádio da sala, que Betinho ao abaixar fazia o time jogar mal e ao aumentar jogar bem; de modo que o recurso era ir aumentando de pouquinho até a mãe reclamar lá da cozinha, e então abaixar de vez e depois passar looongos minutos aumentando de pouquinho a chances de gol e vitória.

4
As sementes de romã mastigadas por Carlos na ceia do réveillon, dobradas em papel laminado, guardadas com esperança na carteira eternamente vazia.

5
O caldo de cana tomado à tarde por João Dias, naquela mesma esquina, encostado no mesmo balcão, vendo as gerações passarem diante dos seus olhos, cada vez que algo momentoso sucedia em sua vida, paixão nova, filho nascendo, eleição ganha ou perdida, sucesso no trabalho, demissão, cedo ou tarde ele dava um jeito de passar naquela rua, tomar aquele caldo, mesma esquina, mesmo balcão, como fazia há mais de trinta anos, olhando, lembrando, dizendo: “Eita mundo véio.”

6
Uma pedrinha qualquer achada na rua por Zuleika e guardada no bolso durante anos, à qual ela atribuiu por-decreto poderes miraculosos, que vem por outra se confirmavam.

7
O ritual que o dr. Amândio Correia executa para dar sorte, todos os anos, no dia do seu aniversário, quando ele manda rezar uma missa em honra dessa data na igreja próxima do engenho dos seus pais, onde ele foi criado, e para essa missa ele traz os parentes mais próximos, parteira, padre velho que o batizou, sacristão, um comício de gente, todos os anos sem falta ele convoca e financia a vinda de todos, sendo que após a missa é servido um lanche de biscoitos, salgadinhos e suco de maracujá aos presentes.

8
A água de coco gelada que para Jacira era tiro-e-queda contra inveja, olho grande e língua ferina, e que a ajudou a chegar aos 92 anos feliz como uma garota.

9
O gato que nas noites de verão miava pelas eiras e beiras do telhado; quando Jorge menos esperava o felino aparecia, arauto da sorte, mascote da magia, acordando as pessoas, e em noites assim, no andar abaixo do seu, a vizinha do 203 escancarava a janela com estardalhaço, como quem manda um sinal de fumaça privê, e o rapaz se sentia o dono do mundo, botava uma camisa, um perfume, e descia pra bater baixinho na porta dela.

10
A frase cabalística, inventada por ela mesma a partir de radicais e prefixos, que quando digitada no Google levava Ludmila sempre para algum saite inesperado, misterioso e fascinante.

11
Uma camisa cor-de-baunilha com uma faixa larga horizontal cor-de-maçã que um garoto de 16 anos usou na estréia do time no campeonato, que terminou com vitória, obrigando-o moralmente a repetir a camisa em todas as partidas da jornada invicta do time, até que no dia da decisão ele descobriu com horror que ela tinha sido mandada à lavadeira, o que desencadeou uma verdadeira operação de guerra até que a camisa úmida e amarfanhada foi trazida de volta, vestida às pressas, e horas depois agitada em triunfo nos ares, na comemoração do tão-sonhado título.







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