(ilustração: Giambatista Della Porta)
Dizer que o original erra parece uma heresia tão grande quanto afirmar que o Papa se equivoca em matéria canônica. A idéia de um erro no livro original produz no tradutor, no revisor, um vacilo de incerteza cósmica. Seria como dizer que Deus joga dados. Mas é fato. Os originais impressos em qualquer país estão sujeitos às idas e vindas do trabalho assalariado em qualquer país. O que eu já vi de calamidade de editoração em livro estrangeiro não tá no gibi.
Traduzindo um livro de Tim Powers me deparei com a frase “a darting garb” (numa cena de multidão ao ar livre), cujas traduções possíveis não se encaixavam. Comecei a pedir ajuda. Chegou uma carta (era nos tempos das cartas, dos aerogramas, do Coupon Réponse International, tudo o mais) de um amigo dizendo que os livros da Ace Books eram notórios pela revisão claudicante, e que aquilo devia ser “a darting grab”. Abri uma cerveja e escrevi “um bote certeiro” (o autor estava descrevendo a coreografia de um batedor de carteiras).
Traduzi um romance de horror contemporâneo, ambientado no campus de uma universidade nos EUA, e a certa altura o livro era interrompido por umas duas páginas de um texto totalmente diferente falando de antropóides primitivos duelando numa caverna, e depois voltava para o romance como se nada tivesse acontecido. Uma gralha; um pedaço de arquivo que alguém tinha botado na Área de Transferência e sem querer tacou Ctrl+V noutro arquivo que estava revisando, e depois ninguém revisou de novo.
Já vi num livro que eu estava traduzindo o autor colocar umas 3 ou 4 vezes ao longo de um compridíssimo diálogo: “ele ergueu-se da mesa”, “ele levantou-se para sair”, etc. Como se tratava de um enorme “infodump” de desfecho da história, um entulho de explicações do enredo, imaginei que o autor tinha recortado com tesoura-e-cola vários trechos (da Era pré-computador), e os montou. Algumas dessas rubricas, que vinham de diferentes esboços, acabaram vindo junto das respectivas falas. Cortei e deixei apenas o que orientava a ação.
O original pode errar. Que o digam Joyce, Rosa, Flaubert e outros que sucumbiram à maldição de Lynotípia, a cruel deusa invocada pelos tipógrafos quando querem rogar praga a um autor muito trabalhoso. Quanto mais eles corrigiam, mais erros novos se infiltravam em seu edifício perfeito, corroendo-o por dentro.