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3982) "Outro" de Augusto de Campos (27.11.2015)

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Outro (Ed. Perspectiva, 2015), o novo livro de poemas de Augusto de Campos, é um dos mais visuais do autor, trazendo em cada folha dupla uma experiência de dissolução e recombinação do texto em efeitos de cores, formas, estruturas, desmontagens, paralelismos, alternâncias de imagem e função. Augusto foi um dos primeiros poetas que vi usar a antiga letra-set para compor cada poema numa fonte gráfica com letras diferentes. Agora, são efeitos visuais mais sofisticados, de textos que se entrelaçam, que giram em espiral. Tem muita gente que não gosta, mas eu acho bonita essa concretude que se dá à palavra, à letra, cravando-a com peso em cima da página. Como Paulo Leminski, que fazia fotografar e ampliar letras datilografadas até ficarem com 2 ou 3 cm de altura na página. Às vezes a fonte é tão rebuscada que ler as palavras vira uma decifração vagarosa e (im)paciente.

Muita gente aproveitou alguns efeitos do concretismo para fazer suas próprias experiências de desmontar e remontar os Legos das palavras, discípulos formais ou informais de Augusto, como Glauco Mattoso, André Vallias, Paulo de Toledo, Arnaldo Antunes, Tom Zé etc. Eu faço uma poesia completamente diferente da de Augusto de Campos mas ainda bem que isso não me impede de ver nessa poesia um caminho possível, entre tantos outros. Um dia podemos vir a ter uma prosa concretista no dia-a-dia, projetada em 3D à nossa volta, com blocos de textos surgindo soltos no ar como hologramas de lojas.

Há uma subdivisão do livro apenas com efeitos de imagens, trocadilhos ou rimas visuais comentadas. Um muito simples, mas eloquente, foi o que mostra andando lado a lado na rua dois homens de terno preto, em duas fotos muito conhecidas dos leitores de cada um. As fotos são emolduradas acima e abaixo pelas palavras: “passos em lisboa / anjos em pessoa”. Isso é um poema? Tanto faz se é poema ou não, para mim é um fragmento literário de impacto tão simpático quanto o de um cartum ou de uma foto artística ou qualquer outra forma pseudo-instantânea de arte.

A poesia de Augusto e dos seus colegas concretistas é um cabo-de-guerra permanente entre fragmentação e discursividade. Comparado ao seu irmão Haroldo, já falecido, Augusto é de um laconismo extraordinário. As Galáxias de Haroldo têm os mesmos jogos de sonoridade do Concretismo, só que diluídos numa prosa caudalosa e aliterada, de onde Caetano Veloso tirou a letra de “Circuladô de Fulô”.  Augusto só é loquaz quando senta-se à mesa de tradutor, de investigador cheio de teorias, de defensor ardoroso do talento alheio. O tradutor seria capaz de recriar um livro inteiro da Bíblia, mas o poeta escreve um hexagrama e pronto.





3983) O inimigo de fora (28.11.2015)

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No sábado era festa de São Gedeão, no domingo as cavalhadas; as festas mais populares ali em Aramoabe, no coração do Curimataú. Pois foi nesse sábado que a notícia caiu como um raio num trono de ferro. Epitacinho do Hotel anunciou ter recebido uma reserva para vinte pessoas, mais equipamentos e bagagens, a partir “de primeiro de março do ano que vem”. Como ainda estavam em junho, o assunto deu o que falar, rendeu mais do que as cavalhadas propriamente ditas, de onde era difícil tirar uma conversa nova. Nem Epitacinho tinha jamais recebido tanta gente numa carrada só como também nem sabia que era possível alguém reservar um hotel com semelhante antecedência.

No domingo, um hóspede atendeu por acaso o telefone do balcão (era de casa, morava no hotel há anos, sem pagar) e chamou Epitacinho: “Ei, Pita, é do Rio de Janeiro, os rapazes que vêm fazer o filme sobre São Gedeão”. Ele talvez tivesse esquecido tudo se Epitacinho não se precipitasse estrepitosamente de lá de dentro, esbarrando em móveis, para arrebatar o fone da mão dele. Bem feito. No outro dia, do renque da cavalhada à roda-gigante não se falava noutra coisa.

Um surto de patriotismo ofendido tomou conta de Aramoabe. Os cariocas estão pensando o que? Que o santo é deles? Na manhã da segunda, câmara de vereadores, clube de diretores lojistas, lideranças religiosas e sindicais, todos se deram as mãos. Epitacinho foi forçado a fornecer o fone de contato que recebera. Ligaram e quem disse estar do outro lado foi um tal de Douglas. Sim, era produtor de cinema. Sim, um filme sobre o santo. O melhor filme brasileiro do ano que vem. Vamos botar Aramoabe no mapa do mundo, das grandes produções internacionais.

Era no viva-voz; Simas de Seu Nô pulou mais para perto e bradou que Aramoabe era citada em duas enciclopédias brasileiras e uma fora, tinha seis agências bancárias e merecia mais respeito. Seguiu-se o que um jornal local, “A Trombeta”, chamou no dia seguinte de “balbúrdia” e o editorialista de “charivari”. Autoridades que usaram do receptor garantiram terem sido ofendidas em sua honra “pelo carioca ixperto”.

Telefonemas febris, um projeto arquivado na secretaria é trazido à luz e assoprado (“só preciso atualizar os valores”, garantiu o jovem e assustado diretor), verba liberada do fundo de perdidos e achados, o poço mais sem fundo da contabilidade. Vetos enérgicos foram telegrafados ao tal Douglas. Em poucos meses, o elenco começava a decorar os papéis, a equipe estava a postos, e Epitacinho, co-produtor-executivo, mandava uma caixa de uísque para o ator carioca que contratara para essa boa ação em nome do cinema brasileiro.




3984) Os enganos da memória (29.11.2015)

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Há uma história sobre um rapaz distraído que quando foi à Alemanha lhe pediram que levasse uma encomenda para uma tal de Dona Erda. Um mês depois, ele bateu à porta do chalé e perguntou por Dona Osta. Nossa memória é vulnerável a esses pequenos atos falhos, que segundo algumas teorias são todos propositais. Embora não sejam propriamente nossos. São das criaturas trancafiadas que existem em nós, invisíveis para nós, e que somos nós. Toda vez que a gente erra, um desses avatares está querendo nos dizer alguma coisa.

O Padre Massote, diretor e professor da escola de cinema da UCMG, era jesuíta, muito falador, discorria muito bem sobre tudo, porque lia muito e adorava cinema. Pertencia, a certa distância, àquela corrente mista de cineclubismo e igreja católica que no Nordeste teve também um papel tão importante.  Massote exibiu para nós, seus alunos, Un Chien Andalou e L’Âge d’Or, dizendo: “Vocês têm que ver isso, porque Buñuel é um dos maiores do mundo, apesar do infantilismo ateu dele. Mas não amarra a chuteira de Antonioni”.

Uma vez ele estava falando, provavelmente sobre economia de linguagem, sobre sintetizar uma cena inteira numa imagem, e disse: “Você pode dizer tudo em uma simples frase. Drummond fez um poema para a cidade de Nova Friburgo que diz apenas: ‘Um cravo na lapela’”. Anos depois me caiu sob os olhos esse poema. O poema diz, na verdade: “Esqueci um ramo de flores no sobretudo”. É Nova Friburgo também. A memória emotiva de Massote não lhe faltou, nem a visual, porque ele apenas reduziu o que lembrava; e o que disse está essencialmente certo, poeticamente certo.

Quantas vezes já me pediram para contar a história de um filme que eu vi dez anos atrás e eu contei, mas pintando um filme novo por cima do que eu não lembrava? Era uma mentira? Talvez, mas não pelo prazer de mentir, e sim pela vertigem de inventar, e nem quem dela é capaz pode definir o mistério que tem.

O pensamento abomina o esquecimento, tal como se diz que a natureza “tem horror ao vácuo”. É preciso preencher aquele não-espaço. E cada vez que a gente pensa num verso, numa melodia, num diálogo, numa lembrança da vida real, a gente está na verdade abrindo um arquivo, mexendo nele, e salvando, com alterações. Nossa memória pode até ter o Ur-documento de tudo, a memória-prima de cada recordação, um filminho total para cada momento “x, y, z” guardado até hoje num Fort Knox de segurança máxima nos subterrâneos da mente. Mas está soterrado por décadas de reedições dele mesmo, revistas e melhoradas. Toda lembrança é uma história de ficção baseada numa história real da qual se perdeu o registro.




3985) Os livros inacabados (1.12.2015)

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Umberto Eco propôs num livro homônimo e famoso o conceito de “Obra Aberta” para falar dessas obras que criam espaços a serem preenchidos, ou elementos a serem re-arranjados, pelo leitor. Obra que “chama o leitor pra dentro”, com poderes para interferir. Uma obra interativa, diríamos hoje, quando o conceito se expandiu a ponto de termos obras de arte – como os videogames – em que a interatividade é estrutural, essencial, não pode ser retirada sem que a obra inteira desmorone.

Um tipo particular de obra aberta, na literatura, é o livro deixado incompleto por um autor falecido. Há muitas obras assim, e acabam sendo publicadas sem o final (caso mais frequente) ou sem o meio, caso de O Processo (1925) de Kafka, do qual ele chegou a escrever o último capítulo, mas ficaram faltando muitos trechos intermediários. Um passatempo de autores sem assunto é propor “finais” para clássicos inacabados como O Mistério de Edwin Drood (1870) de Charles Dickens, que tem o charme adicional de ser um romance policial, o que convida todo mundo a descobrir o verdadeiro criminoso (que Dickens morreu sem revelar).

Também foram deixados inacabados As Confissões do Impostor Felix Krull (1954) de Thomas Mann, O Último Magnata (1941) de F. Scott Fitzgerald, The Pale King de David Foster Wallace (2011). Isso não os impede de terem sido publicados, depois de um trabalho de ordenação de todo o material deixado pelo autor. Ou de serem concluídos por alguém, como é o caso the The Poodle Springs Story, que Raymond Chandler deixou incompleto ao morrer. Eram 3 ou 4 capítulos muito ruinzinhos, que foram complementados e publicados em 1989 por Robert B. Parker (ainda não tive coragem de checar o resultado).

Um que me fascina é outro romance policial, o 53 Jours de Georges Perec (1989). A edição da Folio traz doze capítulos (o último deles apenas iniciado), em 128 páginas, e as 176 páginas restantes transcrevem as anotações deixadas pelo autor (que era meticuloso e detalhista), organizadas por seus amigos Harry Matthews e Jacques Roubaud. Note-se que Perec trabalhou na era pré-computador e todas suas notas estavam em cadernos manuscritos e folhas soltas. Não pode haver obra mais aberta do que essa, cuja primeira metade consiste num texto mais-ou-menos amarrado (o câncer levou Perec antes de uma revisão final) e a segunda metade numa babel-babilônia de pistas, hipóteses, possibilidades, questionamentos, preparativos, subtextos inspiracionais, todo o tumulto criativo que o escritor ferve e destila no alambique da mente para fazer gotejar, palavra por palavra, no manuscrito final.




3986) O espírito do texto (2.12.2015)

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Traduzir não é apenas encontrar palavras equivalentes às que estão escritas em outra língua. É produzir na mente do leitor um efeito semelhante ao da leitura do original. Ou melhor, um conjunto de efeitos, porque a experiência literária tem várias dimensões. Um diálogo literário, p. ex., não consiste apenas no que é dito, mas revela também a intenção com que foi dito, sugere algo que deveria ter sido dito também e não foi, e assim por diante. O leitor tem que perceber essas nuances, essas intenções que estão presentes mas não são visíveis. O leitor experimentado faz isso quase sem perceber, porque já leu tantos diálogos parecidos que quando um aspecto qualquer está faltando ele percebe essa falta e a completa mentalmente, assim como nosso olho completa desenhos onde faltam certos elementos.

Para além desses elementos que pertencem a história propriamente dita, existe outro que nem sempre é percebido. Um livro tem muitas vezes um clima peculiar, uma afinação, uma tonalidade de pensamento ou de emoção que perpassa todo o texto, algo que tem a ver com enredo e com estilo mas que está também além e em volta de ambos. É produzido por ambos, mas não parece estar presente em nenhum elemento isolado. Chamamos a isso clima, atmosfera, espírito – buscando símiles que traduzam essa impressão de algo que está por toda parte mas não pode ser dividido em unidades menores, nem apontado com o dedo numa frase específica. São exemplos disso a sensação de absurdo que se tem lendo Franz Kafka ou Philip K. Dick, a sensação de exaltação aventureira que produz a leitura de Alexandre Dumas ou de Maurice Leblanc, a sensação do peso opressor de um passado sombrio que vem da leitura de Lúcio Cardoso ou de Dostoiévski.

Jorge Luís Borges (em suas Norton Conferences) cita uma observação de Matthew Arnold segundo a qual existem na poesia de Homero numerosas qualidades (clareza, nobreza, simplicidade, etc.), e que um tradutor deveria sempre reproduzir essas qualidades, mesmo quando o texto não as exibe de maneira explicita.

Este princípio pode ficar mais claro usando como exemplo a ironia. Como sabemos quando um personagem, ou o próprio romancista, está sendo irônico? A ironia é um anti-texto, com sentido em sinal trocado, e só pode ser entendida se o leitor estiver com acesso a um contexto muito mais amplo de valores e de intenções. (Não vale recorrer a informações biográficas ou a entrevistas do autor: o texto deve valer pelo que está escrito.) Um texto irônico torna-se inteligível por ter seu sentido literal negado por um conjunto inteiro de alusões, indicações, etc. que se estende ao longo de toda a obra.




3987) A civilização do olho (3.12.2015)

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Num artigo de 1931 sobre fotografia, Walter Benjamin dizia: “Sob o efeito dos deslocamentos de poder, como os que hoje estão iminentes, aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos pode converter-se numa necessidade vital. Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos. Por outro lado, temos também que olhar os outros”. É de certa forma a extrapolação sensata dos esboços de “Big Brother” que já surgiam na época do texto. É a época da foto, do documento, do passaporte, do salvo-conduto, do nada consta. E a das impressões digitais, e depois a do chip biométrico, do exame de fundo de retina, do DNA.

Isto é surpreendente? Não para quem se torna capaz de extrapolar situações sociais futuras com alguma verossimilhança, como alguns escritores conseguem. A Benjamin basta observar meia dúzia de elos de uma corrente para intuir até onde essa corrente pode se estender no futuro. Com a fotografia, não só a arte avançava, mas também a ciência. No mesmo espírito estava o físico Arago, citado pelo próprio Benjamin, que discursava assim em 1839: “Quando os inventores de um novo instrumento o aplicam à observação da natureza, o que eles esperavam da descoberta é sempre uma pequena fração das descobertas sucessivas, em cuja origem está o instrumento.”

A frase de Benjamin sobre ser visto e olhar os outros lembra esses quarteirões residenciais onde praticamente toda a calçada e todo o asfalto estão na área de cobertura de alguma câmara em algum ponto dali. Não sei se é ballardiano demais imaginar um condomínio onde qualquer morador, da TV de sua sala, pudesse sintonizar o que estava sendo transmitido por todas as câmeras de segurança do seu prédio, ou da vizinhança (com autorização). Daria um bom gancho para um romance policial, se todos os suspeitos dispusessem desse acesso; para checar álibis, etc.

Uma reação “romântica” a essa vigilância dos flashes é o filme “noir”, onde os rostos estão sempre semiocultos e os ambientes sempre na penumbra ou então são uma treva cortada por uma lâmina de luz. Ninguém vê nada com clareza. Falei no cinema mas o romance policial equivalente também tem esse clima meio expressionista, de coisas vistas apenas pela metade, ou pela sombra, ou pelo reflexo. Cornell Woolrich tem uma série de romances com as palavras “Black” ou “Dark”. Um levantamento das descrições dos personagens dos romances “noir” talvez revelasse a incidência reiterada de expressões como “com o rosto oculto pela sombra”, etc. Um mundo de incerteza e de matéria escura, o contrário do mundo de hoje, berrante, narcísico, escrachado, e onde todos querem ser reconhecidos.




3988) Os Depravados e os Puritanos (4.12.2015)

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(ilustração: flickrhivemind.net)


Um Depravado é um cara para quem a humanidade se divide em dois grupos: os normais (como ele) e os puritanos.  Um Puritano é um cara que acha que ela se divide em normais (como ele) e depravados. 

Esta fórmula serve para a maioria das oposições desse tipo, desde que os indivíduos em questão sejam do tipo que consideram a si próprios o zero-cartesiano do mundo. É um pessoal numeroso, infelizmente. Tudo que pensam está contaminado por essa força muda que os encarcera em uma única dimensão mental.  Dentro do escaninho estreito dessa idéia fundadora devem caber todas as suas idéias, seus raciocínios, suas justificações, suas concepções abstratas sobre o bom e o ruim, o certo e o errado, o permissível e o intolerável, o que deve ser proibido e o que deve ser obrigatório.

Não me refiro aos sujeitos que pensam e agem de má fé, aos crápulas, aos espertalhões. Estes, geralmente, sabem que estão errados, mas como o erro ético lhes traz benefícios materiais a curto prazo, então o mundo que se dane.  As pessoas a que me refiro são muitas vezes gente bem intencionada, mas que desde cedo foi condicionada a ver as coisas apenas de um ponto-de-vista e não admite a possibilidade de que haja pontos-de-vista diferentes do seu.

São pessoas sofridas; sua vida é uma sucessão de erros, de fracassos, de catástrofes que não podem ser explicadas senão pela existência de uma maneira de ver as coisas diferente da deles. E isto eles não admitem. O que existe (dizem) é uma maneira certa de fazer as coisas, e alguns desses detalhes não estão sendo cumpridos direito. Quando isso acontecer, tudo se encaixa. São aquelas pessoas capazes de passar duzentos anos batendo com a cabeça numa parede de mármore, acreditando que com isso acabarão por abrir uma passagem no meio dela.

Um rótulo é como um crachá. Desde que nos dê acesso, pouco importa a função que está anunciada nele. Compromisso zero. Problema é que acabamos sendo fotografados com um deles (“Apologista da Cultura Popular”) e termos que explicar o por quê disso tudo. Os armoriais e os tropicalistas têm sem dúvida numerosas e importantes diferenças entre si, mas para um admirador distante, um islandês, digamos, os dois talvez não passem de fases ou faces diferentes de um mesmo movimento. Talvez fossem os dois um só movimento do comportamento e das idéias de seu tempo.

Para o Puritano, quem não concorda com seu modo de ser é depravado, reacionário, e é por isso que o chamam de puritano, logo ele, um sujeito absolutamente normal. E assim por diante. Existe algo de errado com uma pessoa que pensa: “O mundo seria um lugar perfeito se todo mundo pensasse igual a mim”.




3989) Histórias que se passam numa noite (5.12.2015)

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Não sei se nesses saites com glossários de figuras narrativas ou clichês da dramaturgia este subgrupo está registrado. Se não, registro eu: são as “Histórias Que Transcorrem ao Longo de Uma Única Noite”, numa narrativa que às vezes dá a sensação de que está acontecendo em tempo real. Sem ser o exemplo mais famoso (estes vêm abaixo), o que mais tipicamente de lembra esse gênero é The Night of the Jabberwock (1950) de Fredric Brown. É uma história de crimes praticados e investigados numa cidadezinha do interior, numa única noite. O romance dá a impressão de ter sido escrito ao longo de uma noite, e eu o li numa noite, entre o jantar e a hora em que fui dormir.

Colateral (2004), o filme com o pistoleiro Tom Cruise e o taxista Jamie Foxx, pertence ao gênero com louvor, pela narrativa tensa e bem encadeada. Não lembro se Fuga em Nova York (1981), com Kurt Russell, também transcorre numa noite única, mas é o que a lembrança me sugere. (Poderia ir consultar no Imdb, mas daria a impressão de saber tudo de cor, o que não vem ao caso.) Alguns filmes dão a impressão de acontecerem numa noite só porque acontecem em ambiente fechado com ação incessante; é o caso de Rocky Horror Picture Show (1975).

No romance policial, outro favorito meu é Deadline at Dawn (1944) de William Irish (pseudônimo de Cornell Woolrich). Um rapaz e uma moça se conhecem de noite. Apaixonam-se. Descobrem que odeiam a cidade grande. Decidem ir embora juntos dali, mas justo nesse instante se envolvem num crime. Têm até o amanhecer para descobrir o criminoso antes que a polícia os prenda.

Um ótimo livro de fantasia tenebrosa (dark fantasy) é After Dark (1980), de Manly Wade Wellman. É bem verdade que os primeiros capítulos têm outra cronologia, mas mais da metade do livro é a narrativa tensa de uma noite interminável passada por um grupo de pessoas numa casa, cercadas por entes sobrenaturais que tentam penetrar suas barreiras psíquicas, ansiosas para que o sol nasça e venha em seu socorro.

Histórias assim nos trazem um pouco aquele sensação vertiginosa e asfixiante de tempo real, que experimentamos em filmes como Matar ou Morrer (Fred Zinnemann), Cléo das 5 às 7 (Agnes Varda) e outros. A impressão de que tudo está acontecendo diante dos nossos olhos, de que não existem hiatos, pausas, saltos para a frente do tipo “Alguns dias depois...”. A aventura contada torna-se uma “longa jornada noite adentro”, como a jornada sofrida de Os Selvagens da Noite (“The Warriors”, 1979) tentando voltar para casa durante uma noite que parece que não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim.





3990) Memórias Revenantes (6.12.2015)

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Às vezes eu gostaria que caísse sobre o mundo uma daquelas misteriosas barreiras transdimensionais da ficção científica. Talvez até já seja hora de encontrar uma terminologia equivalente, que também seja vaga, e usável a torto e a direito. Enfim: um truque mediante o qual o mundo ficasse imobilizado, esvaziado de gente, e eu pudesse caminhar de noite ou de madrugada por Campina toda acesa, Campina deserta sem vivalma, tipo quinta dimensão, além da imaginação.

Aquele friozinho de mei-de-ano e eu andando por Campina. Tudo aceso, vitrines, iluminação pública, luzes dos terraços e jardins. Mas tudo fechado, portas, janelas, grades, embora, como em games tipo GTA, eu possa se quiser sair testando de porta em porta em cada rua... Numa das vezes em que fantasiei essa peripécia eu batia nas casas da Rua Miguel Couto e em todas havia alguém para me receber e me convidar para um cafezinho e água gelada na poltrona, onde me davam de graça uma história sobre minha infância (não propriamente sobre mim – sobre meus pais, sobre a rua, a vivência comum). 

Senti algo estranho. Todas aquelas pessoas tinham morado ali há quase 60 anos e todas continuavam lá, nas respectivas casas. Meu pai e minha mãe, no entanto, depois de alguns anos ali, tiveram que se mudar para a Vila dos Motoristas. Era na Rua Castro Pinto, por trás do campo do Treze. Quando havia jogo noturno no PV a gente aproveitava os refletores e jogava pelada no meio da rua. E aí minha cabeça já não estava mais pensando em quando a gente de mudou da Miguel Couto para a Vila dos Motoristas (acho que foi 1960).

Agora estou em pleno modo Stephen King ou Philip K. Dick. Um cara volta ao lugar onde morou até os 10 anos, quando sua família mudou-se às pressas para outra cidade. Conto na primeira pessoa. O cara está precisando de alguma informação sobre os pais, falecidos, e volta, com 40 anos, à cidade natal e à rua onde morou. Sai batendo de porta em porta, a começar pelas duas que ladeavam seu antigo endereço. E descobre que todos, absolutamente todos os personagens de sua infância, continuam vivos e morando ali. Alguns estão com mais de 120 anos de idade. Eles abrem a porta com estranheza, ouvem com pasmo e alívio quando ele diz quem é, recebem-no. Dizem que já o esperavam há muito. Porque desde que os pais dele se mudaram dali ninguém naquela rua morria. E, já que ele estava ali, quem sabe (dizem os moradores de Willoughby Street), se ele faria questão de executar para eles a tarefa que meus pais executaram enquanto puderam suportar, antes de largar tudo e sumir?... Pensei comigo mesmo que teria muito prazer em ajudá-los.




3991) "Partido Alto - Samba de Bamba" (8.12.2015)

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Nei Lopes, sambista de talento, é também um pesquisador de tudo que diz respeito ao samba, à história da cultura negra do Rio de Janeiro. Anos atrás encontrei seu livro O Negro no Rio de Janeiro e sua Tradição Musical (Pallas, 1992), onde ele compara certas formas e estruturas do samba de partido alto com outros gêneros de improviso popular. Essa obra saiu depois, muito aumentada e enriquecida, como Partido Alto – Samba de Bamba (Pallas, 2005).

O partido alto é o grande território do repente no Rio de Janeiro, uma cidade onde cantoria de viola e coco de embolada são praticados quase exclusivamente por nordestinos. Há diferentes tipos de estrofe, de refrões, etc., que não são catalogados tão rigidamente quanto os gêneros da cantoria do Nordeste. Uma forma frequente, p. ex., é, após todo mundo cantar o estribilho, alguém cantar uma quadra, e outro produzir uma quadra que sirva de resposta, após o que cantam todos o estribilho e tudo recomeça.

No livro de 2005, Anescarzinho do Salgueiro comenta para o autor: “Partido alto, hoje, o tema do partido é um e o verso é outro, quando não era isso, o partido-alto exatamente era partido do tema, o tema em si é o quê? Era o estribilho. Se o estribilho fala de amor, os versos é tirar partido do amor nos versos. Partido-alto é tirar partido do tema.” 

Olha o parentesco de espírito. Porque essa noção de “tirar partido do tema” corresponde a vários preceitos da cantoria, como pagar o verso bom do companheiro dizendo outro no mesmo “sentido”; ou glosar um mote (submeter-se a um tema imposto), ou pegar na deixa (fazer uma menção sonora, com a rima, ao verso deixado pelo outro). Tirar partido, sempre, do que foi proposto, às vezes com pouquíssimo tempo para pensar.

Um verso que gostei foi “Como letra na cabeça / como letra no jorná... / Você pra cantar imagina / eu canto sem imaginar.”  O que quer dizer isso?  Talvez alguns cantadores tenham memória visual, como eu, e quando estão cantando um trabalho decorado lembrem (como eu lembro) a imagem do caderno ou da folha impressa. Isso explica o olhar meio vidrado e inexpressivo de alguns cantores. Estão vendo na cabeça a letra impressa como num jornal. É como se ele dissesse: Você inventa o verso à medida que canta, eu não, o verso me vem inteiro e eu canto, é só ler como se fosse uma lauda escrita.

Pode-se, por exemplo, fazer um estudo comparativo dos truques criativos (e mnemônicos) usados por cantadores do NE, partideiros do RJ, calangueiros de MG, emboladores, poetas improvisadores de diferentes regiões e culturas. Veríamos como certos truques de memorização são mais universais, ou mais únicos, do que se pensa.


3992) Cinco eufemismos (9.12.2015)

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Correu como fogo em pólvora, naquela manhã, na vizinhança, a notícia de que Doutor Hercílio tinha uma rapariga. Alguém ia passando e o viu saindo da casa dela às 7 da manhã, despedindo-se com um beijinho, e veio de táxi trazer a notícia para Dona Iolanda. Minha mãe soube, foi na casa da pobre vizinha oferecer os préstimos. Na hora do almoço meu pai perguntou: “Que zum-zum-zum é esse na calçada, essa risadaria, todo mundo falando em Hercílio?”  Minha mãe, muito dignidade-ofendida, trouxe a terrina de feijão e informou: “Descobriram que ele tem um contróle lá no bairro do Jeremias”.

Insone e com a cabeleira em desalinho, o cantor irrompeu no apartamento do seu empresário, brandindo demonstrativos bancários quentinhos do forno. Onde estavam suas economias, seus investimentos, suas poupanças? Onde estava a confiança que tinha depositado no amigo? Onde estava a grana dele, afinal? O outro engoliu e seco e disse: “Tua grana está dando a volta ao mundo, qualquer dia ela volta pra casa.”

O delegado ouviu dos envolvidos e de testemunhas o relato de que Chico de Janjão chegou em casa e flagrou a mulher conversando com dois evangélicos de Bíblia em punho, caiu de pau enxotando a dupla, que se escafedeu com escoriações leves, e descontou o resto em cima da pobre da dona Do Carmo, que exibiu às autoridades os três dentes partidos, olho roxo, boca lascada, braço destroncado, chumaço de cabelo arrancado à força. O delegado lavrou auto de infração acusando Chico de Janjão de “atitude inconveniente”.

Da súmula do jogo Hamburguense x Laranjal, pelo árbitro Moziael Ribeiro Júnior: “Aos trinta minutos da etapa complementar, seguindo-se a uma altercação entre os atletas Mariano Paulo de Amorim e Salim Raia, houve a invasão de campo por dirigentes e reservas de ambas as equipes, e no alvoroço subsequente o presidente do clube local, o deputado Anastácio Baruque, aplicou as mãos espalmadas de encontro ao meu peito, nas quais esbarrei e acabei perdendo o equilíbrio e caindo para trás, o que pode inclusive ter dado ensejo a versões tendenciosas que podem querer me indispor com a supracitada autoridade.” 

Nininha Dez-Reais estava na calçada de sempre, de minissaia, checando o zapzap sob a luz do poste, quando parou um carro novinho com um senhor grisalho ao volante. Ela encostou na janela, os dois trocaram sorrisos calejados, num flerte protocolar de trinta segundos. O cliente explicitou sua intenção de que o ato amoroso fosse praticado, por assim dizer, por vias diversas das convencionais. Ao que Nininha se empertigou, receosa, e mandou essa: “Doutor, o senhor me desculpe, mas comigo é só no organismo.”




3993) "Rubber Soul" (10.12.2015)

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Estamos celebrando os 50 anos do lançamento de Rubber Soul, o disco que tornou-se uma esquina na carreira dos Beatles. Foi quando eles pararam de fazer shows e se fecharam nos estúdios, cujos recursos estavam começando a descobrir. Há versões diferentes do álbum na Grã-Bretanha e nos EUA. No Brasil, a versão que foi lançada (a que ouvi até furar) era a que abria no lado 1 com “Drive My Car” e fechava com “Michelle”, enquanto o lado B abria com “What Goes On” e fechava com “Run For Your Life”. É a essa edição que me refiro quando falo no disco.

Foi neste disco que os Beatles lançaram sua cítara indiana (“Norwegian Wood”) e sua própria versão da guitarra com distorção (“Think For Yourself”, gravada em novembro), logo depois que os Rolling Stones lançaram “Satisfaction” em outubro, com o famoso riff de Keith Richards.

Aqui no Brasil uma coisa que deve ter contribuído para a popularidade do álbum são as versões brasileiras que tiveram muito sucesso, como as de Ronnie Von para “Girl”, de Renato e Seus Blue Caps para “You Won’t See Me” e “Run For Your Life”, dos Golden Boys e de Agnaldo Timóteo para “Michelle”.

Em termos de letra, de imageria poética, “In My Life” é o primeiro elo de uma corrente nostálgica que se prolongaria tanto na “Penny Lane” de McCartney quanto no “Strawberry Fields” de Lennon. Ian McDonald diz que a psicodelia britânica era acima de tudo um retorno à infância. Uma infância talvez imaginária, mas feliz.

Lennon já disse detestar canções como “Run For Your Life”, e não sei como seria recebida hoje em dia uma canção dizendo “Olhe aqui, garota, prefiro ver você morta do que lhe ver com outro cara”. Lennon, como qualquer teddyboy de sua geração, era metade machista metade inocente. Depois, na sua fase feminista em Manhattan, ele depreciava a letra, a canção inteira. Mas a mente ciumenta daqui é a mesma de “Jealous Guy” anos depois, o que muda é o tratamento que o ciúme recebe. E só um sujeito reconhecidamente famoso por seu sarcasmo e cara-de-pau, como Lennon, teria crédito para dizer anos depois: “Eu estava inseguro, pensei que você talvez não me amasse mais”. “Run For Your Life” é um rockinho bobo mas seu refrão é muito bom, e ela já foi explorada em desenhos animados, etc.

E de fato essa música não é a cara dele, a cara dele é “Nowhere Man”. Talvez a gente nunca saiba com certeza, mas Lennon afirmava que essa música era uma espécie de estalo-de-Vieira ou maçã-de-Newton dele, quando ele descobriu que podia transformar numa canção uma coisa real que estava sentindo. Foi quando ele começou a considerar a letra algo mais do que uma roupa para que a música não saísse desfilando nua por aí.




3994) "Crítica Syllyrica" (11.12.2015)

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Alguém já disse que a melhor maneira de criticar, digamos, uma pintura a óleo seria produzir uma segunda pintura a óleo que fosse uma crítica da primeira. Professores de belas-artes pegam o desenho de um aluno e o copiam, mostrando como corrigir cada pequeno erro. Glauco Mattoso, em sua nova coletânea de sonetos, Critica Syllyrica (São Paulo: Lumme Editor, 2015) usa um método parecido. Ele pega sonetos famosos ou obscuros da poesia brasileira, e produz um soneto paralelo que lhe serve de crítica. Não que ele corrija o soneto do outro, não que tente refazê-lo “certo”: o soneto mattosiano é um comentário, geralmente sarcástico, ridicularizando aqueles modismos insuportáveis, o linguajar pomposo, as imagens clichê, etc.

A metalinguagem já faz parte dos métodos mattosianos desde o Jornal Dobrabil (1977-1981), a primeira publicação gay-concretista-anarquista-sadomasoquista-coprofágica da poesia brasileira. Paródia, pastiche, imitação, avacalhação, todos esses métodos desconstrutivos já estavam presentes naquela folha datilografada que acompanhei ao longo dos anos. Depois que o glaucoma reduziu drasticamente suas atividades datilografistas, Glauco dedicou-se à composição de sonetos, sendo provavelmente o recordista mundial do gênero.

Critica Syllyrica está todo vazado na “ortographia antiga”, uma opção radical do poeta, a quem parece não agradar essa sucessão de reformas mexendo em coisas sagradas como o hífen e o trema. Comentando o soneto “Risonhas Flores” de Sylva Alvarenga, ele diz: “Das epochas tentou Sylva Alvarenga / os themas amorosos por na flor. / Tentou, pois todos tentam, mas amor / não vive só de flores: há pendenga”. O livro reproduz, face a face, o soneto original e o soneto-crítica, onde Glauco, fiel ao personagem, reclama com frequência da hipocrisia dos poetas ao se dirigirem às “amadas”, e explicita as perversões sexuais que provavelmente jaziam encobertas nos versos castos dirigidos às “virgens puras” daquele tempo.

Crítica metalinguística como esta o poeta já tinha produzido ao reescrever o romance A Pata da Gazela (1870) de José de Alencar como A Planta da Donzela (Rio, Lamparina Editora, 2006), onde as sutilezas fetichistas e sadomasoquistas do original são exibidas e ampliadas. O mesmo que faz agora, com sonetos de poetas consagrados e poetas menores. Definição que ele contesta, ao comentar Amaral Ornellas: “Questiono si ‘menores’ elles são, / talvez um tanto obscuros. Mas fallar / pretendo, tambem, delles. Exemplar / é o caso deste Ornellas, de encheção.” Não escapam sequer os maiores, como Bandeira, Drummond, Bilac, Augusto dos Anjos ou Vinicius. A verdadeira sátira não perdoa ninguém.




3995) Noite de reencontro (12.12.2015)

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As portas do bar se abrem para o frio da calçada, o asfalto molhado, as rajadas de água que os táxis projetam quando passam rasgando por cima das poças. Meu grupo sai pela porta aos empurrões, aos apertões, ao cambaleios, estamos eufóricos por estar juntos, quase todos falando ao mesmo tempo. Esse aqui, por exemplo, é Anexarzinho. É marceneiro, e não dirige carro. Tem pernas curtas; é aquilo que chamam de fração imprópria, vai ver que isso pesou. Não sabe ligar um Fusca. Por isso pra onde a rapaziada vai ele tem que arrumar lugar no carro de alguém.

O que é esse grupo falador com quem saio abraçado e meio ébrio? Somos uma turma da terceira idade, gostamos da confraternização e da boa música. Em nosso tempo, fazíamos um samba moderno. Nossa linha era o samba intimista, o samba existencial, com laivos de Cartola e de Nelson Cavaquinho, só que composto na estrutura de um samba-enredo, quer dizer, com uma estrutura de muitas partes, cada qual com letra e melodia próprias, como aqueles velhos sambas primordiais. Várias partes, um refrão recorrente. Em sambas-enredos, mesmo os fakes como os nossos, o material tem que ser variado. Samba de rua tem que ser feito pensando que aquele troço vai ser cantado durante horas, por alguém a pé, no meio da rua, à frente de cinco mil pessoas cantando junto.

Começam as despedidas, os abraços, as trocas de cartões, as admoestações finais, as gargalhadas cheias de bonomia. Uma banda onde a gente tocou por dez anos, trinta anos atrás. É como uma visita que chegou, tornou-se insuportável, mas voltou a ser do-coração depois que foi embora. Aí está Babosa, o vocalista, astro maior das quarentonas ainda no páreo. Agora usa colete. Vilto da Lanternagem é aquele, o do sete-cordas. O pandeiro, o gordinho, é o Gordo Eliézer, dublê de serralheiro e filho de santo.

Como sempre, os dois mais velhos estão afastados dos demais, mergulhados em altas discussões em voz baixa. Dinaldo Granja, o batera mais confiável do lado de cá do Beco das Garrafas, e o cavaquinho Diélson, irmão dele. Dois quengos finos, finos. Músicos de mão cheia, faziam direção musical, faziam tudo, cuidavam das finanças da banda. Ainda hoje, todos os direitos autorais e conexos nos chegam pelas mãos deles dois, pela razão-social que eles criaram. Ninguém guarda mágoas de ninguém, certo? A banda acabou, a vida continua, cada qual hoje tem seu ganha-pão. Podemos considerar uma vitória dos bons sentimentos o fato de ainda estarmos fazendo esse teatro de que somos amigos só porque estes paparazzi daqui desta rua, que Deus os conserve, são os únicos que continuam acreditando em nós.



3996) O eu lírico (13.12.2015)

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(ilustração: Mana Neyestani)


Existe uma discussão em curso, Brasil afora, sobre as pessoas de origem humilde que conseguem cursar uma universidade, mesmo sendo o que se chama de analfabetos funcionais. Sabem ler, sim. Mas aprenderam apenas a tarefa mecânica de identificar palavras. Não sabem o que aquilo quer dizer. Podem, se estimuladas, dar uma definição passável de cada uma daquelas palavras que rabiscam. Mas se alguém lhes perguntar o que significa um mero parágrafo de jornal sobre assunto que não dominam, terão balbuciantes dificuldades. Diante de um parágrafo da literatura ou da ensaística, naufragarão.

Isso é uma vergonha? De jeito nenhum. É apenas uma erro de programação (ou uma programação propositalmente defeituosa, dirão os mais paranóicos). Nossa civilização precisa de gente assim, que sabe copiar coisas escritas sem entendê-las. Isso deve ter começado desde os tempos cuneiformes, um poeta analfabeto ditando, e um escriba bronco mas competente cravando as runas na argila. Exatidão no registro era mais importante do que entendimento próprio. Hoje não. Exatidão de registro existe a três por dois. O que falta são mentes com mais do que os dois neurônios necessários à alfabetização.

Isso não implica em zombar de quem não sabe ler, mesmo os supostos leitores sofisticados. Há gente com graduação universitária que atribui a Shakespeare ou a Nelson Rodrigues os sentimentos de uma frase dita por um personagem: porque não têm hábito de ir ao teatro, não entendem o jogo de idéias do teatro, e acham que toda frase escrita por um dramaturgo é como um editorial de jornal, um documento partidário, uma carta de intenções registrada em cartório.

As pessoas atacam uma atriz no supermercado porque não gostam da personagem dela na novela do horário nobre. As pessoas entendem mal o que leem. As pessoas têm a mais tênue percepção possível do mundo de teias-de-aranha narrativas em que vivem enredadas - pela TV, pelas revistas, pelos websaites de fofocas. As pessoas comuns (acho eu) têm uma idéia ainda mais esgarçada do que é o mundo real do que um adepto da Teoria Quântica.

As pessoas muitas vezes não percebem que um texto de um desconhecido (mesmo um desconhecido que seja famoso para milhões de pessoas) está ligado a outros contextos e envolve outros sentidos e comenta outros comentários. Enfim. É difícil pegar um jornalista finlandês recém-chegado ao Brasil e tentar explicar para ele nossos 500 anos de história, e a influência que eles têm na atual conjuntura política. Pois bem, o jornalista finlandês é cada um de nós, brasileiros. Não sabemos da missa um terço. O fato de a gente achar que sabe ler não significa que a gente entenda.





3997) Noel Rosa (15.12.2015)

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(Noel Rosa, por Thiago Bertoni)


Pois é, Noel Rosa faz 105 anos. Noel e Adoniran Barbosa (ambos de 1910) falavam de um tipo de gente muito específico, o sujeito de certo nível que pelas contingências da vida está precisando dormir num banco de praça, porque foi desalojado do muquifo que habitava de graça. É um momento zen da vida humana. A vida é uma coisa diferente para quem só tinha o direito de se concentrar em duas coisas: o que eu vou comer hoje, e onde vou dormir a próxima noite.

“Eu, Mato Grosso e o Joca” são personagens de um que poderiam estar disputando o banco de praça de “O orvalho vem caindo”. Eu entendia que umas daquelas histórias se passavam em São Paulo, outras no Rio. Mas eu achava que conhecia os ambientes, de tanto ver as chanchadas no cinema. Tinha uma vaga idéia dos principais pontos de referência turística no Rio. Eu era um menino. Então vi numa revista Brasil Enigmista um artigo de alguém destacando e comentando versos de Noel Rosa. Reconheci algumas canções que volta e meia eram ouvidas no rádio. Tudo aquilo era dele.

Noel tem virtudes variadas como letrista, mas eu queria bater na tecla de sempre, a da letra que conta uma historinha. Ou letras que são praticamente um cartum em animação, como “Conversa de Botequim”, “Com que roupa”, “Três apitos”... São gifs animados em várias partes. Não é uma história com começo, meio e fim; é uma sucessão de flashes com parcial passagem de tempo, mais em uns, menos em outros. Flashes poéticos que às vezes contam mais sobre um pedaço da história humana do que um livro inteiro.

O freguês do botequim de Noel é como o Riobaldo de Rosa, uma voz incessante, reiterante, minudente e disposta a refletir em voz alta cada luz que lhe mandar a vida. Ele fala com o garçom como o jagunço falava com “o doutor”. Aliás, essa letra parece mais com o monólogo rosiano Meu tio, o Iauaretê, com Cacá Carvalho. Uma peça com apenas dois atores, um só falando, o outro só escutando, quase sem se mexer. No fim, um deles mata o outro. (No botequim o garçom não fala, mas escapa.)

Noel tinha uma riqueza de rimas que lhe permitia dizer uma coisa inesperada sem perder o fio da meada. Usava em suas letras modos de dizer da época, do momento, como qualquer compositor sempre fez.  Para Noel (imagino) bastava dinheiro no bolso, namoro engatando, uma turma boa com quem sair... Nesse ponto se parece a Castro Alves. O número de obras que cada um deixou é muito grande. O poeta baiano morreu com 24 anos; o compositor carioca com 26.  Me pergunto às vezes as obras que teríamos se Noel Rosa, nascido no mesmo ano que Adoniran Barbosa, tivesse vivido até a mesma idade dele.




3998) "Retrato do Artista Quando Jovem Cão" (16.12.2015)

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(Dylan Thomas, jovem)


Quando um cara faz um livro de memórias espera-se que ele comece do começo, passe pelo meio e acabe no fim. Claro que há talentos mais ambiciosos que querem ir além disto, com resultados variados. As memórias de Bob Dylan recolhidas em Crônicas, vol. 1 (2004) começam com a chegada dele em Nova York, fazem um ótimo retrato dos músicos boêmios do Greenwich Village de onde ele se catapultou para o sucesso, e depois começam a ricochetear para a frente e para trás, sem cronologia aparente, apenas uma coisa meio por associação de idéias. O que não é nada mau, se as idéias em si valerem a pena. Ele não diz um “A” sobre a criação dos seus grandes discos. Conta apenas os bastidores de estúdio de Oh, Mercy, álbum talvez imerecedor de tal prioridade.

Por que falei em Dylan? Acho que porque o Dylan que me lembrou esse aí foi o poeta Dylan Thomas com seu Portrait of the Artist as a Young Dog (1940). O título já é uma gréia com o Portrait of the Artist as a Young Man (1916) de Joyce, onde aparece o famoso personagem Stephen Dedalus. Um crítico observa que apesar disso é com Dublinenses (1914), do mesmo Joyce, que o Portrait de Thomas se assemelha. Tendo em mente, claro, que estamos comparando um galês e um irlandês. 

São dez histórias curtas que vão desde retratos da vida em família de um Thomas bem garoto até um Thomas jovem-adulto, trabalhando em redação, fumando, indo aos bordéis. Algumas histórias são narradas por ele na primeira pessoa, outras vezes é na terceira pessoa, referindo-se apenas a “o rapaz”, “o jovem”.  Em momento algum pode-se pensar que isto é uma autobiografia no sentido acadêmico. É uma reescritura livre de memórias compartilhadas mas não unânimes.

Quando Bob Dylan lançou em livro suas crônicas, publiquei uma intitulada “Bob Dylan sabe escrever”, porque achei o livro muito bem escrito, no sentido de que parecia escrito pela mesma pessoa que fez aquelas letras, deu aquelas entrevistas, etc.  Bem, Dylan Thomas também sabe, e os seus contos são até fáceis de ler, comparados aos seus poemas densos, alusivos, cheios de imagens surpreendentes. Mas o olho que capta aqueles parágrafos é o mesmo olho do poema.

São as duas moças que se enfurecem ao descobrir que têm o mesmo namorado, o jovem repórter começando a frequentar os inferninhos onde vão os jornalistas mais velhos, os dois garotos de mochila passando um fim de semana num lugar distante, os escritores amadores discutindo seus manuscritos... O olho do jovem Dylan Thomas era um cão farejador, que não perdia um detalhe, conferia tudo, e só trazia aos pés do leitor aqueles que deixavam implícita toda a verdade do resto.

3999) Os estrangeiros (17.12.2015)

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Anthony Boucher é um nome familiar a quem conhece a literatura policial e de FC norte-americana de 50 anos atrás. Ele foi uma figura decisiva nos dois gêneros, como autor, editor, crítico, resenhador. Era um escritor católico, com formação latina que lhe permitia traduzir do espanhol e do português para o inglês. Philip K. Dick foi grato a ele pela vida inteira, pelo incentivo que recebeu. Foi ele quem traduziu e publicou (no Mistério Magazine de Ellery Queen) o primeiro conto de Jorge Luís Borges a sair nos EUA.

Entre 1942 e 1947, Boucher manteve uma coluna periódica no San Francisco Chronicle.  Em um artigo de 5 de maio de 1946, ele comenta duas traduções recentes para o inglês: O Homem que Via o Trem Passar de Georges Simenon e O Estrangeiro de Albert Camus (ambos traduzidos por Stuart Gilbert). Diz ele:

“Trata-se em essência da mesma história: a de um homem que não consegue aceitar em seu íntimo as convenções usuais da sociedade, mas apenas deixa-se levar por elas até que um assassinato, cometido quase por acaso, lhe dá a chance de explodir a moldura social”.  Boucher descreve Camus como “um jovem romancista com respeitável estatura filosófica e estética, que é uma das duas figuras-chave do curioso movimento contemporâneo francês do Existencialismo”. O ano era 1946 – ainda não era o Camus do Prêmio Nobel; era apenas mais um jovem escritor botando as unhas de fora.

Boucher lembra: “Camus se dedica à criação de um personagem extraordinário, um caixa de banco na Argélia cujas reações (ou ausência delas) apenas não são aquelas que a sociedade exige. Comentaristas do Existencialismo parecem dar a esse personagem um valor filosófico para além da literatura; mas ao nível do romance propriamente dito, é um retrato espantosamente bem executado de um indiferentista em estado puro.”

De fato, o jeitão à deriva do “estrangeiro” Meursault está somente um degrau acima de um indiferentista total, no caso o escrivão Bartleby, de Melville, que reagia a todos os pedidos para que fizesse não importa o que, dizendo: “Eu preferiria não fazer isto”. Meursault é meio que uma versão pop disso, porque tem namorada, toma cerveja com amigos, se preocupa com isso e com aquilo... Mas é como se a vida dele fosse ligeiramente irreal, sem propósito.

Boucher lembra que Camus trabalhou como leitor na editora Gallimard, que publicou o livro de Simenon em 1938. Não é exagero supor que Camus o leu e que foi um dos policiais “hardboiled” que ele diz ter querido emular quando escreveu O Estrangeiro, quatro anos depois: os livros (provavelmente) de Hammett e Chandler... Talvez se possa colocar Simenon nessa lista.



4000) Problemas de escritor (18.12.2015)

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Carlos Drummond de Andrade publicou em 1967, pela Editora do Autor (Rio), o curioso livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema. Durante anos o poeta arquivou tudo que saía sobre seu poeminha da pedra, fosse a que pretexto fosse, e foi separando tudo em pastas. Os títulos de alguns capítulos dão uma idéia da variedade do material: “Reação pelo ridículo”, “Muita gente irritada”, “Popularidade, mesmo negativa”, “Os amigos da pedra”, “E os inimigos”, etc. Pena que seja meio difícil de obter, e não sei se foi reeditado.

Poucos poemas daquele século provocaram reações tão esperneantes. A pedra de Drummond tirou do sério muitos críticos. Deixaram-se perturbar demais pelo que o próprio autor considerava um poema interessante mas menor, quase uma brincadeira, por que estaria produzindo tanta raiva?

O momento auto-ajuda é você perceber que nem sempre a sua obra que vai ter impacto é sua epopéia de dois mil versos ou sua trilogia que engloba seis gêneros. Às vezes basta um pequeno escândalo estético desse tipo para fazer uma fama. Drummond impressiona pelo modo aparentemente tranquilo e equilibrado como descreve, transcreve e comenta o que disseram a seu respeito. Ele tem o ar kafkeano de um entomólogo examinando a si mesmo. Nesse livro ele republica também o poema em prosa “O Enigma” (Correio da Manhã, 1947; depois em “Novos poemas”, 1946-7), uma clara resposta ao poema da pedra, invertendo apenas seu ponto de vista narrativo.

O bombardeio massacrante dos articulistas que não gostaram da “pedra” é atenuado em parte pelos que a traduziram, a adaptaram, ou lhe deram variadas utilidades a título de homenagem. O poema mais famoso de Drummond virou um meme do seu tempo. Um meme cuja viralidade durou várias décadas e ainda não se esgotou de todo, porque hoje ou amanhã um cartunista do Norte ou um diretor de teatro do Sul vai lançar mão dele para produzir um efeito qualquer.

A pedra no caminho viralizou na administração pública, no esporte, na moda, no rádio; foi vítima de insinuações políticas e era citada nas propagandas. Virou, a julgar pelas centenas de notas e de matérias transcritas por Drummond, uma dessas coisas que você usa sem saber quem inventou e sem ligar a mínima para isso. Poucos poetas que tiveram inclinações modernistas deixaram de fazer algum tipo de paródia, citação ou homenagem a ele. Como se diz da massa de bolo e de alguns clubes de futebol (“quanto mais apanham mais crescem”), Drummond apanhou, certamente preferiria não ter que passar por aquilo, mas como não podia mesmo mudar nada parece que decidiu se divertir um pouco e dar risada de quem dele ria.


4001) A roda gigante (19.12.2015)

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Ele estava passando uns dias naquele lugar, a serviço. Era uma cidade pequena mas tinha cinema, tinha um teatro com cartazes anunciando show musicais, e tinha um parque de diversões. Chamar aquilo disso era força de expressão. Tudo bastante precário. Brinquedos enormes, mas muito velhos e desgastados. Na segunda noite ele entrou, pensando somente em fazer algumas fotos com o celular, porque havia uns cartazes e uns ângulos interessantes. Comprou ingresso aqui, cerveja ali, puxou conversa. Na bilheteria viu a morena, a quem chamou brincando de Luluza, ao recolher o troco, e ouviu dela uma resposta que o fez dar uma gargalhada e olhar naqueles olhos pela primeira vez.

Voltou na noite seguinte (o trabalho o ocupava das dez até o anoitecer) e retomou o papo com ela numa brecha entre o fim de uma fila e o começo da próxima. Perguntou: “Parquezinho esquisito, hem?  Por que não botam luzes coloridas, como todo mundo?” Ela de olhos baixos, arrumando notas por ordem de valor: “O dono gosta assim. Tudo preto e branco.”  Ele falou: “Que coisa, hem. E você? Gosta mais de preto e branco ou de colorido?”  Para ele era só um puxa-conversa pra não deixar a peteca cair, manter o timing da simpatia. Teria pegado mal para ela?  Que disse: “Eu danço conforme a música, amorzinho,”. Plantou as mãos na bancada, ergueu os olhos para ele, e abriu um sorriso dentifrício. “Eu sou a esposa dele, e danço a música que ele tocar.” “Oooops,” disse ele, gargalhando, “não se ofenda. Não estou achando feio. Torna-se até uma coisa bastante cult.”

Foi quando ele viu o homem descer da roda gigante, e entrar cambaleando num pequeno chalé de madeira ali perto, passando a menos de cinco metros da bilheteria onde estavam. “Lá vai ele,” disse ela. E depois: “Deixou de beber. Agora ele dá uma volta na roda, desce tonto, e escreve.” “Escreve o que?”  “Romance. Vai dizer que nunca ouviu falar de...” Ele anotou o nome, soletradamente. “E como deixaram ele fazer a cabana dele aqui dentro?”, perguntou, e ela: “Ele é o dono do parque. Ninguém vive de literatura neste país. Quando sobrevive, pode pegar uma cerva e comemorar.” Ele entendeu “uma serva”, gargalhou, fez sinal de positivo, legal.

A outra reportagem, a que o levara ali, foi feita, mas logo em seguida ele entregou as fotos e a história (meio dramatizada, e com certa licença poética) do “Eremita High-Tech”. Não, não houve intenção, houve oportunismo. Ele não podia saber que o eremita pularia do alto da roda apenas três dias depois da reportagem.  Deixou a coisa marinando 48 horas e foi apresentar os pêsames à viúva, perguntar se precisava de alguma coisa. “Música, amorzinho, música”.




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