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3962) Ursula Le Guin (4.1.2015)

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Recentemente os leitores e críticos andaram comemorando os 86 anos de Ursula K. LeGuin, para muita gente “a maior escritora de FC de todos os tempos”. Esses títulos são meio bombásticos e pomposos, não fazem muito o meu estilo, mas se eu tivesse que escolher apenas uma autora mulher no gênero escolheria ela, que escreveu Os Despossuídos (1974), A Mão Esquerda da Escuridão (1969), O Nome do Mundo é Floresta (1976), The Lathe of Heaven (1971) – cada qual melhor do que o outro, além de dezenas de contos brilhantes e da famosa série de fantasia (desta não li muita coisa) de Terramar (“Earthsea”, vários volumes).

LeGuin é uma pessoa tranquila e sensata (tenho a excelente tradução inglesa dela para o Tao Te King – o Livro do Caminho Perfeito de Lao Tsé), uma argumentadora implacável, uma feminista ponderada e cheia de argumentos. Filha de um antropólogo, ela trouxe para a FC da época em que estreou um conhecimento refinado de ciências sociais e psicologia, o que deu aos seus livros uma textura humana ausente de grande parte da FC da época, mesmo a de melhor qualidade.

Le Guin é um dos grandes nomes de uma linha de FC chamada justamente de “humanista”, por ser uma literatura onde a tecnologia está presente de forma crucial, mas em segundo plano. O primeiro plano é ocupado pelos conflitos e aventuras de indivíduos em situações sociais muito claras, e muitas vezes com profundas discussões e questionamentos sobre questões de gênero, raça, ideologia, classe social, etc. Seria (para usar a expressão brincalhona atual) uma “ficção científica de Humanas”, e envolve autores como ela, Kim Stanley Robinson, Frank Herbert, Ray Bradbury, Samuel R. Delany, Walter M Miller e muitos outros.

Sem querer insistir demais nessa divisão (pois na verdade em literatura tudo se mistura, o humano e o científico nunca estão ausentes de qualquer obra de FC), é importante ter em mente que muitos leitores (falo de leitores adultos, maduros, com conhecimento razoável de literatura mas zero em FC) desgostam do gênero apenas porque pegaram para ler obras famosas e elogiadas mas que não correspondem ao seu temperamento. Um leitor fanático por tecnologia e especulações científicas pode achar um livro de Kim S. Robinson sem graça, e o mesmo pode ocorrer com um leitor de perfil mais humanista que se depare com uma obra de Arthur C. Clarke. Em todo caso, a obra de Le Guin, ainda lúcida, ativa e escrevente aos 86 anos, tem espessura e substância para merecer o respeito de qualquer leitor que se interesse de fato não só pelo destino da humanidade no cosmos mas pelo destino de um grupo de pessoas dentro da casa onde moram.





3963) As mulheres na FC (5.11.2015)

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("James Tiptree, Jr.")

Em suas entrevistas, Ursula K. Le Guin diz envergonhar-se de um momento no início da carreira quando, para publicar em revistas de FC quase exclusivamente masculinas, usou o nome “U. K. LeGuin” para que os leitores pensassem que ela era um homem, e lessem seus contos. A FC norte-americana foi sempre um domínio de nerds anglo-saxões; eu mesmo me surpreendo até hoje com o fato de alguém como Isaac Asimov ter feito sucesso sem precisar de pseudônimo.

Ursula não foi a única, coitada, a usar esse joão-sem-braço das iniciais para esconder seu gênero. Lembro de C. L. Moore (1911-1987), autora das aventuras espaciais de Northwest Smith, entre as quais o clássico “Shambleau” (1933). Esposa e parceira de Henry Kuttner, Catherine L. Moore disfarçou sua identidade feminina através de várias colaborações com o marido e pseudônimos como “Lawrence O’Donnell” e “Lewis Padgett”. 

Algo parecido se deu com a carreira de Leigh Brackett (1915-1978), a formidável roteirista de filmes como “Rio Bravo” (1958), “The Long Goodbye” (1973) e “O Império Contra-Ataca” (1980). O prenome unissex certamente a ajudou em sua carreira literária. Rola uma história de que Howard Hawks leu um livro dela e mandou contratá-la para trabalhar no roteiro de “The Big Sleep” (1946, adaptando Raymond Chandler), pensando que se tratava de um homem.

O caso mais notório é o de Alice Sheldon (1915-1987), que usou o pseudônimo de “James Tiptree Jr.” para entrar no mercado de FC e conseguiu manter esse segredo durante dez anos. Durante esse período alguns críticos notaram um certo viés feminino na ideologia de seus contos, que produziram um tremendo impacto entre os leitores, sendo ainda hoje um exemplo de tratamento diferenciado das questões de gênero na FC.  Em 1977 Gardner Dozois publicou uma extensa análise de sua obra, ainda acreditando tratar-se de um homem. Talvez o disfarce tenha sido necessário à autora por questões pessoais: ela foi agente da CIA entre 1952-1955, e depois teve uma carreira acadêmica (era doutora em Psicologia Experimental) que preferia manter à parte de sua atividade literária.

Exemplos como estes (certamente há outros) são uma ilustração a mais das dificuldades que uma mulher encontra ao disputar vaga num mercado onde os homens predominam, não somente como leitores, mas também como editores, ou seja, as pessoas que decidem o que vai ser publicado. Hoje, mais de 40 anos depois, nomes disfarçados dessa forma são desnecessários, mas as recentes polêmicas envolvendo o Prêmio Hugo (onde se debateu ferozmente a legitimidade de uma FC escrita por “minorias”) mostra que a briga continua.



3964) Caminhos do cinema (6.11.2015)

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Muitos anos atrás, Michelangelo Antonioni observava que cinema e televisão estavam ficando cada vez mais parecidos. As salas e telas de cinema ficavam cada vez menores, e as telas da TV (e os correspondentes aparatos sonoros) cada vez maiores. Note-se que ele disse isso em 1985, muito antes das nossas TVs digitais de não-sei-quantas polegadas, dos nossos poderosos “home-theatres”, das nossas salinhas especiais para 60 espectadores. Isso era num tempo em que um cinema mediano tinha mil lugares.

A essência do cinema (seja lá o que isto for) muda a cada ano, a cada década. A experiência cinematográfica da minha adolescência não tem nada a ver com a da adolescência dos meus filhos. Lumière disse que o cinema era uma invenção sem futuro; Thomas Edison achou que o disco fonográfico iria servir para o estudo de idiomas. Inventores, em geral, estão examinando sua invenção quase tocando-a com a ponta do nariz, e não fazem a menor idéia das consequências que aquilo pode ter.

Meio século atrás, nos EUA, filmes estreavam em circuitos secundários, periféricos, e os produtores iam avaliando a reação do público e direcionando aquele título rumo aos mercadores mais promissores. Hoje, vigora a cultura do “first week-end”: toda uma verba gigantesca, e a logística correspondente, se volta para o fim-de-semana em que o filme será exibido simultaneamente em 3 mil ou 4 mil salas, no país inteiro. É um super investimento de risco. Um filme que não vai bem nesses três dias de lançamento raramente se recupera. É tudo ou nada. Em breve inventarão “cinemas sensíveis”, capazes de aferir a resposta emocional do público ao longo da sessão e editar o filme (suprimindo ou acrescentando cenas específicas) durante a própria projeção.

Nos subúrbios do império, a coisa é diferente. Em breve teremos em nossos smartphones não apenas os aplicativos de câmera mas também os de ilha de edição. Será possível filmar e editar o filme no celular, e depois distribuí-lo via WhatsApp, email, inbox do Facebook, o escambau. Curta-metragens serão distribuídos quase como spam, para milhares de telefones ao mesmo tempo.

A cultura do “mash-up”, da reedição e remontagem de material alheio pré-existente, vai se difundir cada vez mais. O uso de webcam e de transmissões ao vivo tipo “Mídia Ninja” vai fornecer um gigantesco copião em crescimento constante e acelerado; por trás dos que filmam virão os que editam, e esse gigantesco acervo de material produzirá filmes coletivos de todo tipo, desde cinema-verdade até colagem-dadaísta. Se for algo já presente na cultura, for tecnicamente possível e não for economicamente inviável, provavelmente irá acontecer.




3965) Notas sobre videogames (7.11.2015)

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Uma grande parte do público, quando ouve falar em videogame, pensa que existem apenas games de guerra, ação, aventura, violência. Games de explosões, massacres, tiroteios, bombardeios, serial killers, zumbis, etc.  São numerosos, sim.  Tantos quanto os filmes análogos no cinema. Mas, tal como no cinema, existem games de todo tipo. Games de mistério, games de gerenciamento (administrar uma cidade, um império, etc.), games de enigmas e quebra-cabeças. Achar que todo videogame é de violência é uma visão tão limitada quanto achar que toda a MPB consiste em samba.

Os games resgatam uma forma perdida de experiência dramática, uma espécie de inocência onde se entra num mundo sem saber nada dele, e é preciso aprender como funciona, é preciso assimilar tudo na base da tentativa-e-erro. E é o jogador (ao contrário do espectador de cinema) quem toma todas as decisões.

A maioria dos games se alterna entre trechos expositivos, os “filminhos” onde fragmentos da história são contadas, sem interferência do jogador, e os trechos interativos, os trechos de jogo propriamente dito. Mais ou menos como um teatro onde cenas decoradas e reproduzidas viessem intercaladas com cenas de improviso envolvendo a platéia.

O desenvolvimento dos jogos foi maciçamente realizado por engenheiros que criavam a mecânica (reprodução e movimento das imagens) mas não tinham nenhuma formação dramatúrgica. Não estavam preocupados com a arte narrativa, ou com a psicologia dos personagens, ou originalidade nos enredos. Seu objetivo era reproduzir movimentos plausíveis, melhorar as texturas de pele ou de roupa, as trajetórias dos objetos, etc.

Para Tom Bissell (“Extra Lives”) os games começaram como um desafio para engenheiros, viraram um negócio milionário ao se tornarem capazes de produzir aventuras interativas, e somente depois passaram a ter ambições mais “artísticas”.

O game, mais do que qualquer forma de arte narrativa, promove um conflito entre a autonomia do autor e a autonomia do jogador. A tensão entre uma obra fechada, onde tudo está previsto de antemão, e uma obra aberta, onde a cada vez que o game é jogado pode ocorrer algo inteiramente novo.

Peter Molyneux afirmou certa vez: “Fazer um videogame é como se alguém fizesse um filme onde 90% do tempo fosse consumido preparando os cenários e 10% filmando as cenas com os atores”. Tom Bissell afirmou que os games foram em vinte anos das inscrições rupestres ao teto da Capela Sistina. Molyneux completou dizendo que não só isso: antes de pintar o teto da Capela, os games tiveram que inventar a arquitetura, cortar as pedras e fabricar as tintas, tudo ao mesmo tempo.




3966) Nove bilhetes (8.11.2015)

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“Mamãe. Tou indo morar com Dilermando. Ele é honesto e trabalhador, sim, pouco me importa se é feio. Falei falei ninguém quis me ouvir. Papai parece uma parede e você só faz reclamar. Apois reclame agora. Sua ex-filha, Cilene.”

“Dr. Barros: Neste envelope o sr. vai encontrar prints de postagens recentes de sua lavra, numa rede social. Acreditei porque vi. Convoquei o Conselho para uma reunião extraordinária hoje às 14 horas e sua presença é exigida. A rescisão do seu contrato lhe será entregue à saída da reunião, se não tiver uma boa explicação para isto. Duvido que tenha. Arnaldo Penske.”

“Fala Betão. Tudo em cima meu irmãozinho. Três coisa. Primeiro o conserto do carro, tu vai ter que rachar comigo, blz? O véio virou fera. Bora agilizar. Segundo a festa das meninas do salão de manicure vai ser na quinta em vez da sexta, no Bar do Macuco mesmo. Terceiro: tu é muito feio, cara, tu só tem nariz e queixo kkkkkk. Teu bróder Peninha.”

“Carminha, mulher, tu visse o que a infitete da Zezé tá falando de tu no feice? Eu fosse tu chamava João pegava o carro e ia lá na budega dela e bachava o cacete. Prela aprender. Sua amiga fiel, Dora.”

“Prof. Nivaldo: Registro aqui meu agradecimento pelos seus gentis comentários ao capítulo da tese. Cabe-me esclarecer que a escassez de referências bibliográficas é provisória e deve-se ao acúmulo de afazeres, tanto de ordem acadêmica quanto pessoal, que tem caracterizado minha vida nos meses mais recentes. Muito grata, sua (esperançosa) orientanda, Rosimeire.”

“Sr. Campista: Esta é a quarta vez que venho aqui, toco e ninguém atende. Minhas mensagens e telefonemas o senhor não responde. Lamento mas começo a ver nesta atitude um indício de má vontade, quando não de má fé. Tomarei as providências legais cabíveis. Ariosvaldo.”

“Caro Heitor: Obrigado pelo envio dos três volumes de sua trilogia ‘A Lenda do Unicórnio – Um Épico Céltico-Bretão’. Infelizmente a obra não se enquadra em nossa linha editorial, pois a Conteúdo é especializada em ciências jurídicas e sociais. Desejamos boa sorte nas próximas tentativas! Atenciosamente, Magali Seixas, Coordenadora Editorial.”

 “Márcia: Esqueça aquilo de ontem. Foi bobagem minha. Bebida faz dessas coisas. Você e Camilo são meus maiores amigos. Vamos dar uma risada e esquecer tudo. Atenda o telefone, por favor. Não vou te encher o saco. Meus sentimentos são problema meu. Vamos, atenda. Paulo.”

“Môzinho, deixei salada e frango na geladeira, é só esquentar e jantar, depois bote tudo na pia. Assim que acabar o culto eu volto pra lhe cobrir de beijos! Lhe amo muito. Sua Helô. PS: Não precisa esquentar a salada viu? Amo amo amo.”




3967) Arrastão em Alphaville (10.11.2015)

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Este ano marca o 40º. aniversário de lançamento de High Rise (1975), um dos romances mais perturbadores do inglês J. G. Ballard. O que não é pouco, visto se tratar do autor de livros como Crash (filmado por David Cronenberg, com James Spader). Ballard é um crítico cruel da sociedade tecnoburocrática, que ele vê como uma violentação constante da natureza humana.  Os impulsos animais são cobertos com uma capa de civilização consumista, escrava da mecanização, embrutecida mental e emocionalmente através da publicidade, da política, dos códigos de conduta.

High Rise descreve três meses na existência de um enorme condomínio residencial para profissionais de alto nível, na periferia de Londres. Nesse prédio de 40 andares, com 20 poços de elevador, encontram-se todas as instalações indispensáveis à vida civilizada moderna: escolas infantis, bancos, supermercados, piscinas, salões de beleza, quadras de esporte, salões de festa. E aos poucos se forma entre os dois mil moradores uma pirâmide social com os mais ricos nos andares superiores (e elevadores exclusivos) e os mais pobres nos de baixo. Tensões sociais começam a brotar, ao mesmo tempo em que a manutenção falha e os conflitos tornam-se brigas declaradas.

Ballard obtém o efeito do fantástico através da escalada gradual do absurdo no comportamento desses executivos, astros de TV, psicanalistas, publicitários, arquitetos, etc. Eles entram espontaneamente em conflito quando elevadores, lixeiras e outras instalações começam a falhar. Das discussões com insultos verbais passam às agressões físicas, aos espancamentos, aos crimes.  Eletricidade e abastecimento de água entram em colapso, e o prédio se transforma numa imensa lixeira onde clãs de profissionais liberais, empunhando facas e bastões, invadem os apartamentos dos andares rivais, estuprando suas mulheres e saqueando suas despensas.

De dia, os moradores vestem suas roupas elegantes, ligam seus carros de luxo e vão à cidade trabalhar. À noite voltam para o prédio e se dedicam a embriagar-se em orgias ruidosas.  Praticam arrastões ao longo dos corredores, uns subindo rumo ao topo como uma forma de conquista de um poder simbólico, outros descendo aos andares de baixo para dar uma lição aos inferiores.

Delirante e provocador em 1975, o livro, a cada década que passa fica parecendo mais uma profecia terrível sobre o que pode acontecer na vida real, se forem cortados alguns fios muito retesados que mantêm erguida e esticada a lona do circo civilizatório. O vôo acelerado rumo ao futuro high-tech pode nos levar num salto brusco para o tempo das cavernas. Um primata com sede de sangue empunhando uma chave inglesa. 


3968) O renascer da barbárie (11.11.2015)

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“Ninguém, mesmo nos andares superiores, parecia perceber o contraste entre os convivas elegantemente vestidos e o estado de degradação do prédio. Ao longo dos corredores juncados de sacos de lixo não recolhidos, entre as lixeiras entupidas e os elevadores vandalizados, caminhavam homens trajando “dinner jackets”, e mulheres que erguiam a barra dos longos vestidos de noite ao caminhar por entre os cacos de garrafas partidas. O perfume das caras loções de após a barba se misturava com o odor das cozinhas repletas de lixo.”

A cena é de High Rise (1975), o romance em que J. G. Ballard descreve um condomínio de luxo de 2 mil moradores regredindo à selvageria quando os sistemas de funcionamento (luz, água, ar condicionado, elevadores, etc.) entram em colapso. Profissionaisliberais londrinos, sofisticados e cheios de dinheiro, transformam-se em selvagens, promovendo saques, estupros, espancamentos coletivos, numa regressão à vida tribal onde vigora a lei do clã mais forte ou mais bem armado, em depredações que se estendem pelo interior do prédio gigantesco.

O surto de selvageria descrito por Ballard é uma brusca aproximação de contrários que coexistem à distância em nossa sociedade. Qualquer grande cidade tem condomínios de luxo, tem guerras de gangs, tem moradores de rua, mas cada um no seu lugar, no seu setor. Ballard os transforma uns nos outros no interior do prédio de 40 andares e esse choque produz a fagulha do fantástico. Moradores sofisticados de penthouses londrinas se comportam como os personagens de Laranja Mecânica ou de Guerreiros da Noite.

Também não há como não perceber a influência de Luís Buñuel neste romance onde a selvageria dos burgueses enclausurados na mansão de O Anjo Exterminador toma conta desses milhares de psicólogos, esportistas, investidores na Bolsa, médicos, advogados. O edifício, agora, é uma espécie de Alphaville paulistana que vai se degradando em cortiço, em monturo, em campo de batalha.

“Sentados em círculo à luz das velas, aqueles neurocirurgiões, catedráticos de universidade e investidores no mercado financeiro demonstravam todo o seu talento para a intriga e a sobrevivência, exercitado por anos de serviço na indústria, no comércio e na vida universitária”. A explosão de barbarismo não é apenas o ressurgimento do troglodita ansioso por “segurança, comida e sexo”.  A civilização, por mais tecnológica e racional que pareça, está a serviço dos instintos básicos do troglodita, que é capaz de brotar como um Hulk furioso todas as vezes que o verniz das convenções sociais e da segurança econômica começa a se descascar. 



3969) Para contar histórias (12.11.2015)

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(ilustração: John Holcraft)

De vez em quando comento aqui os conselhos técnicos de escritores e roteiristas sobre a arte da narrativa. Não existem conselhos, regras ou preceitos universais. O que serve num caso não serve em outro. O que serve para literatura não serve para roteiro, e o que serve para teatro não serve para quadrinhos. Se você quiser contar a mesma história em cada uma dessas linguagens vai ter que começar do zero em cada caso. Não importa se é a história do Dilúvio, a de Rumpeltiltskin, a da Guerra de Canudos ou a do macaco e o leão.

 Emma Coats, roteirista da Pixar, tuíta de vez em quando pequenas pílulas de advertência técnica. Parecem coisas bobas ou óbvias, mas o escritor/roteirista principiante é mais consciente dos grandes problemas do que dos pequenos. É como um cara que vai fazer um rally pelo deserto, comprou GPS, traçou plano de navegação, e pode até desdenhar conselhos bobos como “leve um estepe” ou “encha o tanque”. Mas é na falha do óbvio que os grandes projetos desmoronam.

 Diz Emma: “Simplifique. Mantenha o foco. Pule os desvios. Você vai pensar que está desperdiçando um material valioso mas isto o deixa livre.” Anos atrás eu estava escrevendo algo, estava ansioso para mostrar o que ia acontecer quando o personagem chegasse a um Castelo, mas o diabo do personagem não chegava de jeito nenhum. Cada noite que eu sentava para escrever ele parava pra dar de beber ao cavalo, pra pedir informações aos camponeses na beira da estrada, para dormir, para comer... Era como um desses videogames onde não existe teleporte e você tem que percorrer fisicamente todas as distâncias. Foi com um grito de libertação que um dia perdi a paciência e escrevi: “E assim foi o trajeto de Fulano até o dia em que, numa curva do caminho, viu o Castelo à sua frente.” Fiquei com um pouco de remorso por não fazer o relatório do que aconteceu a ele em todos os minutos da viagem, mas a verdade é que nada daquilo tinha interesse para a minha história. Bastaram alguns parágrafos, dando uma idéia do ambiente, da cavalgada, e pulei logo para o Castelo. Não precisava daquelas dez laudas que escrevi e depois tive que jogar no lixo.

 Literatura tem algumas frases mágicas. Uma delas é “Vários dias depois...” Você não precisa contar ao leitor o que aconteceu nesses vários dias, a menos que tenha acontecido algo relevante para a história. Se não for o caso, pule direto para o próximo fato importante. O leitor não vai notar, e se for um leitor experiente vai até agradecer. Eu resumiria o conselho de Emma Coats na fórmula: “Escreva somente o que for necessário para a história que você está contando.”







3970) Augusto de Campos (13.11.2015)

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No último dia 9, em Brasília, o poeta Augusto de Campos foi o principal homenageado da cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura, a pessoas e entidades que se destacaram nas artes e no ativismo cultural em nosso país. Algumas semanas, antes ele já havia recebido no Chile o Prêmio Pablo Neruda, que pela primeira vez foi concedido a um escritor brasileiro. A cerimônia no Palácio do Planalto teve também uma presença de destaque de dois discípulos de Augusto: Caetano Veloso, que ao longo da cerimônia cantou algumas canções (“Tropicália”, “Alegria Alegria”, “Um Índio”, “Língua”, "Elegia") e Arnaldo Antunes, também agraciado. O filho de Augusto, Cid Campos, também cantou algumas de suas parcerias com o pai.

A influência da poesia concreta (a poesia de Augusto e Haroldo de Campo e de Décio Pignatari) na música popular brasileira tem sido visível nesses artistas e em outros (Tom Zé, Walter Franco, José Miguel Wisnik, etc.). O primeiro livro de Augusto de Campos que li foi Balanço da Bossa, o qual me abriu os olhos para inúmeras questões relativas à composição popular, ao poema, à letra de música e ao Tropicalismo, que veio recolocar muitas dessas questões de uma maneira nova e que de início eu não fui capaz de compreender.

O trabalho de Augusto de Campos como tradutor de poesia é exemplar, mesmo quando discordamos de escolhas específicas para este ou aquele verso. Não somente os poemas em si, mas as discussões e teorizações que os acompanham. Traduzir é tentar entender num raio de 360 graus algo que está apontando numa direção só. Todo verso, por mais burilado que seja, é o colapsar de dezenas de versões superpostas dele mesmo. Feliz do tradutor que percebe essa nuvem de probabilidades verbais e encontra um equivalente em sua própria língua.

Ao agradecer o prêmio em seu discurso, Augusto fez a mais imprevisível (para mim) das citações. Falou: “Disse o escritor Rex Stout, através de um personagem famoso, o  anti-Sherlock Holmes de um dos seus romances policiais, uma frase singular: Só os pessimistas têm surpresas agradáveis”.  Ele se refere ao detetive Nero Wolfe, criado por Stout: um detetive obeso, gastrônomo, que cria orquídeas em seu apartamento em Nova York. A literatura é vasta e variada como um ecossistema. Pensando bem, traduzir poemas é como criar orquídeas, é como decifrar crimes, é como saborear iguarias. Que um poeta e erudito de primeira linha seja capaz de citar num discurso um dos grandes autores do romance policial é um testemunho das muitas surpresas agradáveis que a vida reserva até aos que não são pessimistas.




3971) Pena de Morte (14.11.2015)

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(ilustraçao Francis Bacon)

Carlos Drummond tem um verso famoso que diz: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.”  Eu troco esse último verbo por “matar”. Matar é o que querem os delicados de hoje, os que se horrorizam com as barbaridades diárias praticadas por pessoas diferentíssimas deles em numerosos sentidos. A barbaridade é tanta (dizem eles) que o único remédio é agarrarmos os bárbaros em plena rua, subjugá-los, arrastá-los, atá-los ao poste e matá-los a pauladas. Depois, filmaremos tudo com celulares para servir de advertência aos outros bárbaros.

Quem são os bárbaros, afinal? Somos todos nós. O bárbaro é o bicho-animal dentro de cada um, com um milhão de anos de luta pela sobrevivência, o bicho que mata, o bicho que come carne, o bicho que rói os ossos, o bicho que bate com um osso grande no tapir e depois joga o osso na direção da Lua. Como diz Caetano Veloso: “A mais triste nação / na época mais pobre / compõe-se de possíveis / grupos de linchadores” (“O cu do mundo”).

Dias atrás William Gibson comentou no Twitter: “Sujeito branco racista pratica matança numa escola. Armado de espada. Resultado: 2 mortes. Mais difícil matar gente com espada. Não é automático.”  Gibson parece estar se referindo ao fato de que com arma de fogo automática basta apertar o gatilho uma vez, e fazer o gesto de varredura em semicírculo. Ou seja: para matar 20 pessoas não é necessário apertar o gatilho 20 vezes. Vi na Internet um bárbaro, filmado na cadeia, rindo com deboche dos crimes que cometeu: “Revólver? Quero não. Eu gosto é de machado, de faca, preu sentir a dor do cara na minha mão”. Diante disso, quem não tem vontade de desistir da humanidade?

Nem todos, é verdade, defendem que esses caras sejam mortos em plena rua. Preferem que sejam mortos entre as paredes de uma prisão, na cadeira elétrica ou câmara de gás. Preferem a morte legalizada, aprovada pelos legisladores, preferem a sanção oficial para algo que já se faz artesanalmente, a pau e pedra, por esse Brasilzão afora. O filósofo popular Neném Prancha poderia dizer: “Pena de morte é um castigo tão sério que o carrasco deveria ser o Presidente da República”.

“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem todos se libertaram ainda.” A pena de morte, seja através dos linchamentos de rua ou das cadeiras elétricas do governo, é sempre a confissão de uma derrota, o reconhecimento de que somente um criminoso pode noslivrar de outrocriminoso.  Cada vez que um ser humano precisa matar alguém para puni-lo por matar alguém está demonstrando que a civilização ainda não começou.




3972) O artista e o povo (15.11.2015)

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(Milton Nascimento)

A toda hora vejo postagens nas redes sociais compartilhando canções de MPB do tipo que eu gosto, deste ano ou de 30 anos atrás.  Ezra Pound dizia que certas obras são novas no instante em que nascem e continuam novas 500 anos depois. São como a água que brota de uma nascente: é aquele filete de líquido, sempre o mesmo e sempre feito de uma água nova que parece ter surgido do nada naquele instante.


E aí começa o chororô. “Não se fazem mais canções como essa hoje em dia.” “Ah, a MPB está decadente.” “A música ruim tomou conta.” “Os compositores brasileiros desaprenderam a fazer grandes canções como A Banda ou Disparada.”  E por aí vai. Pois eu não acho. Acho que grandes canções no formato da MPB tradicional estão sendo compostas e gravadas a cada dia, a cada ano. Como eu viajo muito, me hospedo de vez em quando na casa de amigos, que não são necessariamente músicos, mas têm um gosto musical parente do meu.  Nunca deixo de ficar conhecendo discos de gente que eu nem sabia que existia, com músicas de grande qualidade. Como eu raramente compro CDs hoje em dia (isto é outra questão, que não vou abordar agora) anoto os nomes e títulos para ouvir online.


As músicas existem, o que não existe é um sistema oficial de comércio musical (rádio, TV) fazendo por elas o que fez por A Banda e Disparada. O sistema multiplicou-se por dez em tamanho, já está decadente, mas tornou-se um toma-lá-dá-cá monetário, um aluguel de espaço eletrônico para quem pode pagar mais. E isso não é somente para a “música ruim”. Me lembro que quando Maria Rita lançou seu primeiro CD (aquele que vendeu um milhão de cópias) o Jornal Nacional da Globo deu chamada ao vivo do palco do Canecão. Não lembro de ter visto isso com nenhum outro lançamento de MPB. Fez por que? Porque o disco era bom? Porque era ruim? Não: porque alguém meteu a mão no bolso e pagou uma bela grana. Se todo mundo que compõe as bandas e disparadas de 2015 tivesse essa grana, teria acesso ao mesmo espaço.


Milton Nascimento cantava que “todo artista tem que ir aonde o povo está”. Digo eu que hoje, ironicamente, cabe ao povo ir aonde o artista está, e ele está na Web. O que gostaríamos, meio egoisticamente, era ligar a TV no horário nobre e ver ali as obras-primas da 2015. Não vai ser possível. As obras-primas certamente existem e nada devem às de meio século atrás, mas mesmo aquelas só são consideradas obras-primas pelo impacto que tiveram, não apenas pela sua beleza. Nunca mais terão esse impacto, porque o sistema é cada vez mais mafioso e inacessível. A música que em 1960 brotava na vitrine brota hoje no quintal, e é preciso ir até ela, porque ela não vai mais poder vir até nós.








3973) Terror para crianças (17.11.2015)

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Um subgrupo interessante da literatura de terror é o terror para crianças. Por um lado, parece um gênero fácil, porque se supõe que as crianças se aterrorizam mais do que um adulto calejado, mais provido de defesas. Por outro lado, o objetivo da literatura de terror não é só aterrorizar, mas aterrorizar divertindo (é uma literatura de entretenimento, que se deve ler pelo prazer da história) e provocando (deve haver nela alguma coisa que cutuque a mente do leitor e o faça examinar melhor seus medos, suas angústias, etc.). Ou seja: mais dois fatores onde se deve considerar a diferença de mentalidade entre crianças e adultos.

R. L. Stine é o autor da famosa série de livrinhos Goosebumps, que deu origem inclusive a uma série de TV de sucesso nos anos 1990. Os livros de Stine venderam 350 milhões de exemplares em 32 línguas, de modo que ele parece entender um pouco do assunto. Numa entrevista ao saite Motherboard, diz ele: “A parte mais difícil em escrever horror, para mim, é: a linha entre ser tedioso e ser demasiado assustador é tênue, e é preciso ficar bem no meio. Se você for muito cuidadoso, os garotos vão perder o interesse. Se você vai longe demais, vai perturbá-los. Minha regra básica é: você pode ir bem longe, desde que os garotos saibam que aquilo é uma fantasia, que aquilo não pode acontecer.”

Stine é o tipo do autor cujo sucesso vem do fato da cabeça dele ser parecida com a cabeça dos seus leitores. “Uma das razões de Goosebumps ser tão popular,” diz ele, “é que a garotada se identifica com os monstros, não com os protagonistas. Às vezes, garotos dessa idade sentem-se como monstros. São zangados. São frustrados. Querem sair soltando rugidos por aí. Não têm autocontrole e querem assumir o controle das coisas. É parte do fascínio deles.”

Alguns autores vendem milhões de livros escrevendo coisas que parecem não lhes exigir muito esforço. Não há relação entre esforço e sucesso numérico. Stine se admira de ter lido tão cedo Edgar Allan Poe, um dos seus autores favoritos. “O medo nunca muda,” diz ele, “o medo do escuro, o medo de descer ao porão, o medo de que haja alguma coisa embaixo da escada. Isso não muda nunca.” 

A literatura de terror funciona um pouco como uma vacina. Um elemento estranho é inoculado na mente do garoto, provoca uma reação, mas tudo ocorre num âmbito sob controle. O organismo faz contato com a ameaça num contexto seguro. Aprende a identificar a ameaça, a controlar as descargas químicas que ela produz no organismo. É um processo educativo como qualquer outro, uma experiência virtual que nos prepara para encarar com segurança as experiências reais que um dia virão.



3974) O repente (18.11.2015)

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A arte do repentista não consiste apenas em inventar versos na hora, mas também em lembrar, no calor do momento, versos que fez ou que ouviu ou que pensou ou que lhe contaram, e que ele pode reproduzir parcialmente, para responder em questão de segundos, ao verso que o companheiro acabou de cantar. Sempre repito uma verdade que me parece indiscutível, na arte da cantoria: É impossível decorar aquilo tudo, e é impossível improvisar aquilo tudo. A cantoria mistura versos improvisados e versos lembrados, anotados mentalmente ou num caderno, e que na hora de cantar raramente saem da maneira como foram escritos, saem modificados, seja para melhor ou para pior, de acordo com a memória do cantador.

Cantadores decoram versos para cantar em ocasiões específicas, mas negam que o façam. Por que? Porque a cantoria é cercada de espectadores meio leigos e com espírito-de-porco, os quais, na hora em que ouviram um cantador dizer que decorou alguns versos, vão sair dizendo: “Eu não disse? É tudo decorado! Tive agora a prova! Fulano de Tal acabou de confessar que só canta decorado”. O Fulano pode ter confessado que decorou apenas um ou outro verso, mas para o anti-apologista (o que vai para a cantoria torcer contra os cantadores) era a prova que faltava para confirmar que aqueles caras não sabem improvisar, e portanto não são melhorres do que ele. Como qualquer outro ambiente que cerca uma atividade artítica, a cantoria está cheia desses negadores da arte.

Alberto Cunha Melo, em seu livro Um certo Louro do Pajeú (Natal: EDUERN, 2011), à pág. 24, diz: “É tempo de alguém ousar uma análise literária da produção do repente e do folheto. Quanto ao repente, um estudo comparativo de suas técnicas e resultados diante do automatismo psíquico praticado pelos surrealistas poderia colocar em confronto, por exemplo, o propósito de conciliar o urgente com o consciente, do primeiro, com o uso do urgente para abolir o consciente[,] do segundo”.

O cantador precisa conciliar o urgente e o consciente, ou seja, produzir em poucos segundos um verso que tem a obrigação de metro, de rima e de fazer sentido. Quem quiser que ache fácil. Quando ele recorre, premido pelo tempo (que é um dos fatores mais importantes na arte do improviso), a um verso ou pedaço-de-verso que já cantou há dez anos ou já ouviu há vinte, ele está fazendo algo que não faria se não tivesse apenas poucos segundos para pensar. Esta é uma expressão crucial na cantoria: “poucos segundos para pensar”. Tudo tem que ser feito nesses poucos segundos. Até mesmo um verso decorado, a repetição de um verso já cantado um dia, é uma pequena  façanha dentro de um quadro de urgência como esse.



3975) Palavras raras (19.11.2015)

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Reunião de condomínio é sempre um saco. Eu só vou quando convocado oficialmente pelo síndico. Aí é mais um-saco ainda, tipo ontem. Se queixaram do som alto, do entra-e-sai durante a noite, da saia curta de A, do cabelo rasta de B, o trelelê de sempre.  A madame do 205 ergueu o dedo no ar, discursou, falou que era um absurdo, que alguma providência tinha que ser tomada, e por aí foi. Quando terminou eu fiz uma cara compungida e falei: “Está bem, está bem, afinal de contas estamos numa gerontocracia.” Ela entreparou, ajeitou o cabelo e disse: “Obrigada.”

Dona Lurdes ficava de vez em quando em pé de guerra quando via o Dr. Aurélio gastando demais com ternos caros, uísques importados, e principalmente sua coleção de jogos de xadrez de marfim, de jade, de pedra-sabão. Ele ria, dizia que tinha direito àquilo, ganhava bem. Uma vez ela disse: “Você só compra isso para se gabar diante dos amigos.” Ele respondeu: “Meu amor, todo homem tem direito a um sonho na vida.” Ela disse: “Aurélio, pare de tergiversar.” Os olhos dele se arregalaram e ele a abraçou, exclamando: “Sabia que eu sou doido por você?!”

Era um debate entre estudantes, com revindicações à reitoria, críticas à grade curricular, e tudo o mais. A certa altura um rapaz de cabelo ruivo encaracolado pediu a palavra e disse: “Temos que marcar posição, precisamos reunir massa crítica para exercer pressão, mas me preocupa ver que os nossos colegas, em sua grande maioria, permanecem abúlicos.”  Houve um breve e interminável segundo de assimilação, mas logo um rapaz de barba preta ergueu a mão no ar e disse: “Não somente abúlicos, estão todos catatônicos.” Foi o começo de um boa amizade.

Quando alguém visitava a casa de Filipinho, e os pais dele sentavam de roupa trocada, fazendo sala, havia sempre um momento em que alguém olhava o retrato do avô dele na parede, com seu uniforme. Perguntavam quem era, a mãe de Filipinho explicava que era o pai dela. “Ele era oficial do exército?”, perguntavam sempre. E a mãe dizia, num tom meio casual: “Sim, ele era anspeçada.”  Filipinho não lembrava de alguém jamais ter perguntado o que era. Ele mesmo não tinha.

Estávamos tomando umas e outras na ampla varanda do apartamento de Vasco Teixeira, o conhecido publicitário. A conversa girava em torno de dinheiro. Um falava nos investimentos bancários, outro confessou ter conta na Suíça, “coisa pequena, por enquanto, mas coisa honesta”, outro mencionou mercados futuros e bolsa Nasdaq. Alguém perguntou: “E você?”  Eu dei um gole e falei: “Eu vivo do meu estipêndio.” Deu um branco geral, tela-azul em todo mundo. Vasco acabou perguntando: “Mais uísque, alguém?...”




3976) O mundo não existe (20.11.2015)

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Why The World Does Not Exist é o título irresistível de um livro do filósofo Markus Gabriel (Polity Press) resenhado aqui: http://tinyurl.com/nk9yge6. Discutir a existência das coisas parece ao leigo uma falta-de-ocupação às custas do erário (muitos que o fazem ganham salários em universidades públicas). Mas há uma questão sutil. Se formos incapazes de provar com rigor filosófico a existência do mundo, algo que nos parece tão óbvio (ou “evidente por si mesmo”), como poderemos provar verbalmente a existência de fenômenos mais controvertidos? Descartes tentou ressetar esse problema com seu “Penso, logo existo”, mas ele é como uma árvore podada que logo volta a crescer. 

Na verdade, não queremos saber se o mundo existe, e sim se dispomos de ferramentas filosóficas confiáveis para provar se alguma coisa existe ou não. Markus Gabriel comenta: “Seria esquisito se alguém, em resposta à pergunta ‘Ainda tem manteiga na geladeira?’ respondesse dizendo: ‘Sim, mas tanto a manteiga quando a geladeira na verdade não passam de uma ilusão, uma construção humana. Na verdade, nenhuma das duas existe. Na melhor das hipóteses, não temos como saber se existem ou não. De qualquer modo, bom apetite!”.

Isto me lembra uma comparação divertida de Ariano Suassuna (a quem esses questionamentos filosóficos não eram estranhos). Discutindo a afirmação de Kant de que não podemos afirmar a existência de algo exterior a nós, Ariano dizia: “É muito fácil discutir se aquele jasmineiro, se a imagem daquele jasmineiro, corresponde ou não ao real. O jasmineiro está quieto, no canto dele. Mas eu garanto que, se fosse uma onça que entrasse aqui, nem Kant iria perguntar se por acaso de tratava de uma correspondência com o real.”

Markus Gabriel afirma: “Se pensamos no mundo, o que entendemos é algo diferente do que queremos entender. Nunca podemos entender o mundo em sua totalidade. Ele é, em princípio, grande demais para ser abarcado pelo nosso pensamento. O mundo, em princípio, não pode existir, porque ele não pode ser encontrado no mundo”. O filósofo encontra uma maneira de compensar essa impossibilidade de abarcar o mundo total.  Diz ele que o que existe de fatos são “campos de sentido” onde percebemos as coisas, que são “um domínio finito de conexões significativas”. Esses campos de sentido (em alemão Seinfelde, num trocadilho com o sitcom da TV Seinfeld) podem abarcar infinitas coisas, inclusive, diz ele, coisas que são reais apenas porque pensamos nelas (existem, mas no plano das idéias): “elfos, bruxas, armas de destruição em massa em Luxemburgo e unicórnios no lado oculto da Lua vestindo uniformes da polícia”.





3977) Música e contexto (21.11.2015)

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Muitas obras de arte tornam-se beneficiárias ou vítimas de um contexto qualquer, e passam a ter um significado diferente do que tinham. Uma canção, muitas vezes, é vinculada a um contexto que seus autores absolutamente não previam, e vê-se arrancada de seu significado original, passa a significar outra coisa. Uma canção meio obscura que é usada num programa de sucesso, por exemplo, acaba ficando o resto da vida associada ao significado que ganhou ali. O samba de Luiz Bandeira “Na cadência do samba (Que bonito é)” (http://tinyurl.com/p8gmb7w), que era usado nas famosas coberturas de futebol do Canal 100, na gravação da orquestra de Waldir Calmon, acabou se tornando uma espécie de hino não-oficial do futebol no Brasil. Onde quer que essa música venha a soar, todo mundo (ou pelo menos quem viveu aquela época, como eu) pensa logo em futebol.

“In the Hall of the Mountain Kings”, de Edvard Grieg (aqui: http://tinyurl.com/bjn7348), da ópera “Peer Gynt”, ficou definitivamente associada ao filme de terror depois que foi usada na trilha sonora de “M, o Vampiro de Dusseldorf” de Fritz Lang. Soando aquelas notas, brotarão de nossa memória dezenas de situações de perigo ou ameaça que essa musiquinha inocente, sem querer, veio a sublinhar.  O mesmo vale para a famosa “Cavalgada das Valquírias” de Wagner (http://tinyurl.com/nxgb76l), que teve muitas utilizações no cinema, nenhuma tão marcante quanto a da cena dos helicópteros bombardeando o Vietnam com napalm em “Apocalipse Now” de Coppola. E nem vou me deter muito no “Pour Élise” de Beethoven, que por percursos insondáveis acabou virando em nossas cidades o tema musical do caminhão do gás.

Claro que há canções que são feitas quase que propositalmente em função de um contexto não-musical, não-estético, mesmo que satisfaçam a esse requisito (=sejam boas canções).  É o caso de canções políticas, engajadas, feitas com uma certa intenção de se colar a esse contexto: clássicos tipo “Caminhando” de Vandré, “Blowin’ in the Wind” de Bob Dylan, “Le déserteur” de Boris Vian e outras. São canções que pretendem se beneficiar de um contexto social onde o autor tem quase certeza de que a música terá imediata repercussão. 

O curioso é quando essas associações de idéias são criadas aleatoriamente, recobrindo a música, principalmente a música erudita de séculos atrás, de um contexto que jamais passaria pela cabeça dos seus compositores. Imagino a surpresa dos autores de “Assim falou Zaratustra” ou de “Carmina Burana” se vissem a multiplicidade de contextos a que suas composições são associadas hoje em dia, simplesmente pelo impacto melódico e sonoro que produzem.




3978) Como comprovar o mundo (22.11.2015)

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(ilustração: Wendy MacNaughton)

O filósofo Markus Gabriel (autor de Why The World Does Not Exist, http://tinyurl.com/nk9yge6) reconhece a dificuldade em provar conceitualmente que o mundo existe, embora isso nos pareça óbvio.  Se bem que nem tanto. Qualquer passagem por um estado alterado de consciência, pela aplicação de drogas ou por algum surto psicótico, mostra que mesmo a solidez material do mundo se evapora com facilidade. O filósofo reconhece que nossa mente nunca poderá abarcar 100% do mundo real, mas sugere que ela trabalha com “campos de sentido” que são “domínios finitos de conexões significativas” e que a superposição desses campos, em nossa mente, produz uma impressão de espessamento da realidade. Nunca teremos uma certeza de 100%, mas a maioria de nós maneja uma percentagem que dá para tocar o barco.

É algo parecido com certas funções matemáticas que, quanto mais avançam rumo a um limite, mais lentamente passam a avançar, de modo que esse limite provavelmente jamais será atingido. Mas mesmos os micro-avanços ou nano-avanços dessa fase final já são alguma coisa, e na verdade não precisamos de uma certeza absoluta para viver. Só quem precisa disso são os filósofos; é requisito da profissão. 

Às vezes questionamos nossa certeza sobre o Mundo Real invocando aqueles sonhos que nos dão uma impressão intensa de realidade. No meio do sonho, temos a mais completa certeza de que aquilo está acontecendo mesmo. É uma certeza mental tão grande que produz resultados físicos sem estimulação física, como pode atestar qualquer pessoa que tenha experimentado um orgasmo durante um sonho erótico.

Acontece que nossa certeza no sonho é um “campo de sentido” limitado, que exclui o mundo material à nossa volta. Dormindo, acessamos a biblioteca-de-babel do nosso Inconsciente, mas o que ganhamos em intensidade perdemos em amplitude. Acordados, a proporção se inverte. Passamos a atuar num conjunto muito amplo de “campos de sentido”, o qual inclui nosso corpo, os cinco sentidos, nossa casa, outras pessoas, coisas, o universo material. E temos todo o direito de afirmar, como afirmo agora, que essa realidade é mais próxima de alguma “realidade última do mundo” do que o universo solipsista da minha mente adormecida. (Literariamente, acho o mundo do sonho mais verdadeiro, mas esta é outra questão.)

Dizer que duas coisas (eu e o mundo, p. ex.) existem significa, para mim, que as duas estão num mesmo plano de interação, onde algum tipo de influência mútua é possível. Como dizia Ariano Suassuna, se você e uma onça faminta estiverem num mesmo plano de interação, não fique pensando que o filósofo Kant não o autoriza a atestar que a onça é verdadeira: corra!




3979) Eu me lembro 7 - BH (24.11.2015)

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(Edf. Niemeyer, Belo Horizonte)

Eu me lembro dos doces de leite cortados em forma de losango que a gente comprava no balcão dos botequins. Eu me lembro de quando tiraram as cabeças dos políticos que ornavam a Praça Sete e as colocaram no Parque, junto a uma quadra, onde o pessoal chutava e a bola rebatia nas cabeças das estátuas. Eu me lembro que numa sala da Escola de Cinema havia rolos e mais rolos do copião de “Terra em Transe”, de onde cansei de cortar fotogramas, e vinte anos depois a imprensa do Rio ficou sabendo desse material e celebrou a descoberta.

Eu me lembro que havia um consenso entre os estudantes da Católica que o melhor bandejão era o da escola de Arquitetura da Federal, que ficava numa esquina da rua Paraíba. Eu me lembro dos militantes da TFP andando pela cidade, erguendo seus estandartes vermelhos com leões dourados e bradando nos megafones. Eu me lembro da placa onde está escrito: “Da vida social / na porfiada liça / ao lado do dever / e ao lado da justiça.”

Eu me lembro do dia em que Chacrinha foi fazer uma palestra no diretório dos estudantes e disse que as chacretes eram “escolhidas a dedo”. Eu me lembro da sala de projeção da Escola de Cinema, que ficava no subsolo do edifício e era chamada A Cinematoca. Eu me lembro do meu desnorteamento inicial quando eu pensava que as ruas do centro eram paralelas, e às vezes as ruas iam se distanciando à medida que a gente avançava numa delas.

Eu me lembro das estátuas na prefeitura, na Av. Afonso Pena, dos três homens suportando colunas sobre os ombros, às quais dediquei um poema (ainda estão lá). Eu me lembro que o primeiro filme que vi na cidade foi “Romeu e Julieta” de Zeffirelli, no Cine Acaiaca. Eu me lembro que antes de ir morar em BH eu vi na Enciclopédia Barsa uma foto do Edifício Niemeyer, e ao chegar lá descobri que a Escola de Cinema ficava bem em frente dele. Eu me lembro da minha confusão ao descobrir que os mineiros chamam mungunzá de canjica.

Eu me lembro das linhas de ônibus Circular 1 e Circular 2, que faziam percursos inversos, e quebravam o maior galho. Eu me lembro de quando comi a primeira feijoada no Maletta e achei estranhíssimo colocarem laranja dentro do feijão. Eu me lembro da Rádio Cultura, cuja vinheta (“Cul-tura!”) se erguia no meio da música quando a gente menos esperava. Eu me lembro de uma viagem no inverno, quando o ônibus fez uma parada em Itabirito e eu vi pela primeira vez minha respiração produzir uma fumacinha como no cinema. Eu me lembro de Darlan Richard, um hippie cabeludo que vivia pelas ruas, cantando: “Cara ou coroa, palitinho ou par-ou-ímpar... Meus pés ‘tão sujos, mas a consciência limpa!”




3980) "Número Zero" (25.11.2015)

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Este romance mais recente de Umberto Eco é quase uma continuação de O Pêndulo de Foucault (1988), livro que achei muitíssimo saboroso mas que decepcionou muitos leitores, os quais, ao que parece, esperavam algum tipo de continuação de O Nome da Rosa (1980). O Pêndulo mostrava um grupo de editores pouco escrupulosos envolvidos com conspirações esotéricas: o romance deste ano mostra um grupo de jornalistas pouco escrupulosos envolvidos numa conspiração política. Eco está com 83 anos. Enquanto o livro mais antigo tinha (na edição em inglês que possuo, tradução de William Weeaver) 533 páginas, o mais recente (na edição da Record, tradução de Ivone Benedetti) tem 207. É menos divertido, menos barroco, menos delirante, mas o bom-humor, a ironia e a enciclopédica prosa do autor estão lá.

Os personagens de Número Zero são aqueles jornalistas calejados, cínicos, meio fracassados, que topam escrever qualquer coisa desde que descolem a grana do aluguel, da gasolina e da geladeira. O jornaleco é financiado por um comendador de interesses onipresentes e de envolvimentos escusos, que monta o pasquim para servir de instrumento de pressão e chantagem contra seus adversários políticos. Colonna, o narrador, é um desses teclado-de-aluguel, tão conhecidos por quem é do ramo, ansiosos para que alguém lhes faça uma proposta indecente. Ao entrar na redação acaba tendo um caso com Maia, uma redatora jovem e meio perdidona. Juntos, os dois acompanham a investigação de um terceiro personagem, Bragadoccio, que está aos poucos levantando uma concatenação meio fantasiosa de fatos históricos poucos relevantes mas que podem resultar na mais sensacional revelação política da Europa pós-II Guerra Mundial.

Eco trabalha, nesses romances, no subgênero das  “Fantasias da História”, em que fatos universalmente conhecidos recebem novo contexto através da invenção ficcional. Autores como Tim Powers, Kim Newman, Thomas Pynchon, Salman Rushdie, Stephen King, Don DeLillo e outros usam extensivamente, cada um com suas fórmulas, essa mistura de fatos documentados e interpretações imaginárias. É o terreno da paranóia e das “teorias da conspiração”. Bertolt Brecht (cit. por Ernest Mandel, Delícias do Crime) descreveu assim o processo: “Por trás dos acontecimentos que nos são narrados, suspeitamos de outras ocorrências sobre as quais não fomos informados. Estas são as verdadeiras ocorrências. Somente se soubéssemos poderíamos entendê-las. Somente a História pode nos informar sobre essas ocorrências verdadeiras – pelo menos até o ponto em que os atores não conseguiram mantê-las em total segredo. A História é escrita após as catástrofes”.




3981) A cegueira do expert (26.11.2015)

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Um especialista vê certas coisas com uma nitidez absoluta, à custa de não enxergar outras que estão até mais próximas. São como as câmeras fotográficas que focam num detalhe e deixam todo o resto do ambiente num borrão de contornos difusos. A mente do especialista funciona como certos exames clínicos. Você pega uma amostra de sangue e quer saber se o paciente tem a doença X. Coloca alguns reagentes, etc., e tem o resultado. O paciente pode até ter as doenças Y e Z, mas como o exame não estava buscando essas duas ele “passa batido”, sem percebê-las. A busca é específica, direcionada, cega para todo o resto.

Na coletânea Blackwood’s Tales of Treasure, um capítulo fala de garimpeiros de ouro que acham minério de prata mas não o reconhecem, pois não era o que estavam buscando. Eles largam tudo e vão embora. Do mesmo modo, muitas descobertas científicas são feitas meio por acaso em cima de dados ou materiais já recolhidos por outras pessoas, que, no entanto, foram incapazes de olhar aquilo com o olhar correto. Thomas S. Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas(Ed. Perspectiva, 1982) exemplifica com o caso do átomo de hélio visto por um químico e um físico eminentes. “Para o químico, o átomo de hélio era uma molécula, porque se comportava como tal desde o ponto de vista da teoria cinética dos gases. Para o físico, o hélio não era uma molécula porque não apresentava um espectro molecular”.

Einstein dizia que a ciência do seu tempo precisava mais de perguntas novas do que de respostas certas. As perguntas velhas eram sempre respondidas corretamente. O que fazia falta era uma maneira nova de olhar os fenômenos – justamente o que Einstein fez, com menos de trinta anos. Jacob Bronowski, em seu ótimo Ciência e Valores Humanos (Ed. Itatiaia/EDUSP, 1979, trad. Alceu Letal) refere o caso de um alpinista que resolveu escalar o Everest não pelo lado que mais conhecia, o norte, mas pelo lado sul, que era familiar ao seu guia.

Diz ele: “À medida que subíamos o vale, vimos no topo a linha divisória principal de águas. Reconheci imediatamente os picos e as depressões que nos são tão familiares do lado norte. (...) É curioso que Angtarcai, que conhecia essas características do outro lado tão bem como eu, e tinha passado muitos anos da sua infância a pastorear bois selvagens neste vale, nunca os tenha reconhecido como tais; nem mesmo hoje, salvo quando os indiquei a ele.”  É como uma moeda, que parece algo totalmente diferente olhada por um lado e pelo outro. Quando estamos condicionados para reconhecer ou para procurar somente uma coisa, corremos o risco de não achá-la se a imagem avistada não for a que esperávamos ver.






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