Vão aqui algumas notas sobre condições especiais da tradução literária. Em 1969, Georges Perec publicou La Disparition, seu famoso romance onde a letra “E” não aparece nem uma vez. O desaparecimento do E é ilustrado pelo desaparecimento do protagonista, Anton Voyl (alusão a “voyelle”, vogal), e de tudo que se refere à quinta letra do alfabeto.
Em 1995, Gilbert Adair publicou a tradução em inglês (A Void). O jornal Rascunho de Curitiba publicou em seu número de agosto uma tradução de Vinícius Gonçalves Carneiro para o primeiro capítulo do livro, que intitulou O Sumiço. Abaixo, o texto do primeiro parágrafo, nas três versões.
Original: “Anton Voyl n’arrivait pas à dormir. Il alluma. Son Jaz marquait minuit vingt. Il poussa um profound soupir, s’assit dans son lit, s’appuyant sur son polochon. Il prit un roman, il l’ouvrit, il lut; mais il n’y saisissait qu’un imbroglio confus, il butait à tout instant sur un mot dont il ignorait la signification”.
Gilbert Adair: “Incurably insomniac, Anton Vowl turns on a light. According to his watch it’s only 12:20. With a loud and languorous sigh Vowl sits up, stuffs a pillow at his back, draws his quilt up around his chin, picks up his whodunit and idly scans a paragraph or two; but, judging its plot impossibly difficult to follow in his condition, its vocabulary too whimsically multisyllabic for comfort, throws it away in disgust”.
Vinícius Gonçalves Carneiro: “Insone, Tônio Voguel, com um toque no interruptor, enche de luz o dormitório. No relógio de Bolso de Zurique: cinco e quinze. Depois dum profundo suspiro, ergue-se do leito e estende-se sobre um coxim. Escolhe um livro, percorre, lê, só compreendendo um imbróglio confuso, sempre colidindo num termo desconhecido.”
VGC optou na versão brasileira por fazer desaparecer o “A”, fiel à intenção do original, que é omitir a letra mais frequente no idioma. Visto que o livro de Perec se organiza inteiramente em torno dessa ausência crucial, não há problema, por exemplo, em traduzir “minuit vingt” por “cinco e quinze”: a hora certa é irrelevante, basta que seja plausível. O que importa mesmo é que seja uma hora sem a letra-tabu.