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5048) O Banquete dos Mendigos (3.4.2024)

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A imprensa tem comentado um filme russo recente, O Mestre e Margarida, que está fazendo grande sucesso popular, e inquietando os censores do governo de Vladimir Putin. 
 
É mais uma adaptação cinematográfica (há várias) do famoso romance de Mikhail Bulgakov, que se não me engano já tem mais de uma tradução no Brasil.
 
Nunca o li. É um romance fantástico, muito elogiado, e está naquela lista de “500 Livros Que Preciso Ler, Nem Que Seja Depois De Morrer”. 
 
Houve uma sincronicidade interessante porque vi o anúncio desse filme mais ou menos ao mesmo tempo em que estava começando a rabiscar umas notas sobre o disco Beggars Banquet (“O Banquete dos Mendigos”, 1968) dos Rolling Stones, um dos meus preferidos na extensa obra da banda. 
 
O Banquete dos Mendigos (“Beggars Banquet”, 1968) foi um disco-porrada que os Stones lançaram na segunda metade da década de 1960, quando essa hidra-de-70-cabeças chamada “rock” brotava por toda parte. 
 
Para mim, é um dos melhores discos deles, junto com Between the Buttons, Let It Bleed, Exile on Main Street, Flowers, Some Girls e certamente mais algum título inesquecível que estou esquecendo agora. 




Os Stones sempre foram mais identificados com rockão pesado do que os Beatles, por exemplo. Eram metal-quente, e parede estremecendo. Junto deles, os Beatles eram o Trio Esperança, e o que os “salvava” era a riqueza melódica, a harmonia vocal, o imenso repertório de estilos musicais (graças principalmente a MacCartney, que cresceu ao lado de um pai músico, escutando tudo). E as letras, de Rubber Soul em diante; e o carisma sorridente
 
O lado “musicalmente beatle” dos Stones ficava por conta do multi-instrumentista Brian Jones, que morreu cedo; uma perda tão grande para o rock quanto as de Jimi Hendrix e Jim Morrison.
 
Lembro que o primeiro choque que Beggars Banquet produziu em mim e na minha turma na Paraíba foi que não era tão “rockão pesado” assim, se descontarmos “Street Fightin’ Man”. Era um cardápio variado de ritmos e sonoridades, que fazia a gente escutar de cenho franzido, pensando: “Que troço estranho. Isso é rock? Onde foram achar isso? Que troço legal.” 
 
A começar, é evidente, pela faixa que abre o disco, “Sympathy for the Devil”. Reza a lenda que as primeiras “levadas” da música surgiram quando os Stones vieram pegar uma areia ensolarada em Arembepe e outros lugarejos baianos, e de vez em quando tiravam um som com os moradores locais. 
 
O famoso e hipnótico “Uh-uuh!...”,que pontua a canção do começo ao fim, não foi trazido da Bahia, como pensei por muito tempo; foi meio que improvisado pelo produtor Jimmy Miller durante a gravação, e incorporado pela banda. Todo mundo entrou no balanço.  Não duvido que Mick Jagger e Keith Richards tenham explicado, muito convictos, aos técnicos de som: “É samba”. 
 
“Sympathy for the Devil” junta-se à capa interna do disco para explicar o diapasão mental que afinava o rock daquele tempo: luxo, decadência, esbanjamento e devassidão. O Diabo, que se apresenta nos versos, é “um homem de posses e de bom gosto”, um aristocrata. E ao mesmo tempo um conspirador dos salões e dos gabinetes, um instigador de conflitos. Ele se vangloria de estar por trás da Revolução Russa, da Blitzkrieg nazista, da morte dos Kennedys... 
 
E é aí que entra a sincronicidade com O Mestre e Margarida, o livro de Bulgakov, porque Mick Jagger sempre afirmou que “Sympathy for the Devil” tinha se inspirado nesse livro, escrito por Bulgakov entre 1928 e o ano de sua morte, 1940. A tradução inglesa, lançada em 1967 pela Grove Press, e em seguida por outras editoras, teve uma influência direta na canção dos Stones, cuja letra fala em nome do Diabo: 
 
Estou rondando por aqui há muitos anos
roubei a alma e a fé de muitos homens.
Estava por perto quando Jesus Cristo
teve o seu momento de dor e de dúvida;
e me certifiquei de que Pilatos
lavasse as mãos e selasse o seu destino.
 
O confronto entre Pilatos e Cristo é uma das linhas narrativas de O Mestre e Margarida, e Jagger o transpôs diretamente para a canção.
 
Jagger e os Stones nunca foram propriamente satanistas, ao que eu saiba. Pegaram um pouco de fama por causa dessa música. Quem teve pela vida toda um flerte com o Ocultismo e os seres-de-umbral foi gente como Jimmy Page, morador numa mansão que foi de Aleister Crowley. Os Stones intitularam um disco Their Satanic Majesties Request, maso disco lembra mais um passeio no Mundo Imaginário do Dr. Parnassus do que uma visita ao Hades.



(Their Satanic Majesties Request)


O Diabo (dizia Guimarães Rosa) não existe: existe é o homem humano. O homem de posses e de bom gosto, apreciador de uma boa debaucheria, e que é o próprio Mick Jagger e seus ajudantes. E o disco ganhou um dos melhores títulos e uma das melhores capas internas da história do rock. 



Nessa capa interna e na faixa de abertura está concentrado o espírito de dissipação e auto-indulgência do rock daquela época. Uma farra meio surrealista promovida por alguns jovens milionários: o mais velho dos Stones, o baixista Bill Wyman, tinha 32 anos, mas os demais estavam na faixa de 25-27 anos. 



(Viridiana


O fotógrafo do disco, Michael Joseph, comenta que a idéia da foto do banquete foi do diretor de arte Mike Peters, e que este teria sido influenciado pela famosa foto do “banquete dos mendigos” de Viridiana (1961) de Luís Buñuel, numa versão satírica da Última Ceia de Leonardo da Vinci. 
 
Quase toda a comida que aparece na foto é artificial, com exceção de algumas bandejas com frutas. O local da sessão foi no norte de Londres, na mansão de Sarum Chase, em Hampstead. O supervisor da casa perguntou se na foto apareceriam mulheres nuas. “Não,” disse o fotógrafo, “vai ser somente a banda. Por que?”  E ele: “Se a foto incluir mulheres nuas, cobramos 10 libras a mais.” 
 
Ao ler isto, lembrei de um amigo meu, em Campina, olhando a capa do Banquete: “Tem bebida pra caramba, tem comida, tem porco, galinha, marreco... e não tem mulher nua. Isso é lá farra!” O que não nos impedia de correr o olho pela foto, catando detalhes; ou pela reprodução feita em Campina Grande pelo saudoso Roberto Coura, então com 16 anos, reproduzindo essa foto do banquete em nanquim sobre cartolina, em 1 metro x 2,5, e que foi parar na sala de Jakson e Marcos Agra. 
 
O banquete era uma síntese entre a vulgaridade e a sujeira dos mendigos de Buñuel, e (aqui é uma conjetura minha) a famosa capa do Bringin’ It All Back Home (1965) de Bob Dylan. Capa cuja intenção, nesta foto montada, era conferir a Dylan (que tinha uma origem rústica, de Minnesota, origem de cantor folk) a imagem sofisticada de cantor agora novaiorquino. 





A foto de Daniel Kaufman o mostra numa sala, diante de uma lareira, com um gato no colo, por entre objetos descuidadamente/cuidadosamente jogados em torno: uma revista Time, um disco de Robert Johnson, uma placa de “abrigo nuclear”... e uma mulher, vestida, mas linda, em pose relaxada e promissora (é a ex-modelo Sally Grossman, a esposa do empresário de Dylan). 
 
Tenho a mais tranquila certeza de que os Stones, além de ouvirem muito esse disco, examinaram muito essa capa, e três anos depois tiveram a chance de dar a resposta. A resposta não era a Dylan, na verdade, era ao jet-set londrino que no começo os esnobou tanto quanto o jet-set de Nova York esnobou Dylan; mas o sucesso doura qualquer pílula, e ambas as capas parecem estar dizendo: Fodam-se, nós agora somos ricos também. 
 
Nem tudo eram banquetes: o fotógrafo dos Stones lembra que na noite anterior à sessão de fotos a casa de Brian Jones tinha sido invadida pela polícia, em busca de drogas (não acharam nada), e ele, sempre o mais emocionalmente instável da banda, estava ainda abalado. 




O repertório do disco, curiosamente, não fica batendo na tecla da ostentação. Há várias canções quase totalmente acústicas, fugindo às muralhas de som do heavy-metal nascente. 
 
“Factory Girl” é uma homenagem às garotas que trabalham em fábricas, cantada pelo sujeito que a espera do lado de fora (quase um “Três Apitos” de Noel Rosa), uma garota “com joelhos gordinhos, com um lenço em vez de chapéu, e uma roupa com um zíper quebrado atrás”. 
 
“Salt of the Earth” é outra canção proletária, se se pode dizer isto. A banda ergue um brinde “aos humildes de berço... aos que trabalham duro... ao soldado raso que se mata de trabalhar, à sua esposa e filhos que acendem fogos e aram a terra... vamos beber a esses milhões de pessoas que precisam de líderes, mas só lhes chegam especuladores...” Aqui, os ecos se propagam até “Working Class Hero”, da carreira solo de John Lennon. 
 
Ou seja: por mais que fossem milionários recentes os Stones não cortavam seu cordão umbilical de classe, das origens não-milionárias de cada um. E mesmo quando decolavam num dos seus rocks mais pesados e rebeldes dessa fase, “Street Fighting Man”, eles perguntam: 
 
Mas afinal, o que pode um rapaz pobre fazer
a não ser cantar numa banda de rock?
Porque nesta sonolenta cidade de Londres
não há lugar para guerreiros de rua.
 
E depois, em versos que parecem pedidos-emprestados a “Sympathy for the Devil”:
 
Então... o meu nome é Distúrbio,
eu vou gritar e ulular
eu vou matar o rei
e passar o rodo nos seus servidores.
 
Keith Richard comenta que a rapaziada inglesa de então (lembrem-se, o ano era 1968) via com certa inveja as agitações estudantis francesas que fecharam a Sorbonne e pararam Paris no mês de maio. Richard lembra que as frases iniciais desta música (“Ev’rywhere I hear the sound of marching charging feet, boy..”) se baseia na sirene de duas-notas dos carros de polícia franceses. Uma inspiração semelhante à que teve John Lennon ao compor “I Am The Walrus” (“Mister-City-p’liceman-sittin’-pretty-little-p’liceman-in a row...”). 
 
Comparada à Paris de Daniel Cohn-Bendit e de Jean-Luc Godard, Londres devia parecer uma grande Boston. Talvez por isso mesmo a banda tenha convidado Godard para filmar a gravação de “Sympathy for the Devil” no estúdio – parafraseando Chico Buarque e dizendo: “pra ver se o fogo deles, guardado em ti, nos contagia um pouco”.

















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