O autor de Trópico de Câncer entrou na minha vida, não como alta literatura, mas como alta sacanagem. Entrou mediante aquelas últimas carteiras da classe, onde o professor se tornava um débil holograma ao fundo da sala e a gente traficava as proibições da vez: revista dinamarquesa de nudismo terapêutico; baralho de caricaturas, cada qual mais escrachada; catecismos de Carlos Zéfiro... Um dia, alguém tinha trazido um exemplar de Sexus, já bem manuseado, que ele nos estendeu confiante e esclareceu logo: “Capítulo 16”.
O arrebatamento verbal de Miller é tamanho, contudo, que eu logo percebi qual era a dele. A sacanagem sorridente e desencanada era pouco perto de suas reflexões sobre vida, saúde, moralidade, arte, dinheiro, sucesso. Miller não era um grande sátiro, era um grande moralista (no sentido de ter uma visão bem particular sobre valores e ser fidelíssimo a ela) que gostava de trepação.
Todo mundo sabe que Lawrence Durrell, do Quarteto de Alexandria, foi grande amigo e incentivador de Miller. Depois vi George Orwell (Inside the Whale) dizer que Miller era uma voz sadia num momento sombrio da Europa. Alguém que desistia de tomar as rédeas do mundo, como a literatura engajada. Alguém que aceitava a catástrofe, mas como era em câmera lenta dava tempo para aproveitar algum lado bom.
Quem também o elogia é J. G. Ballard: “Miller foi o primeiro escritor proletário a criar uma literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual da classe trabalhadora. (...) [Ele é] um Proust da classe operária, noção que forneceu a base de toda a sua carreira.” Ballard chama Miller de proletário do ponto de vista de uma Inglaterra de classes bem nítidas. Miller era rapaz urbano, ex-funcionário dos Correios (como depois Bukowski, tão revoltado quanto ele). Não é um intelectual refinado, é um cara de vistas largas, enorme apetite de experiências, de idéias, enorme fluência para se exprimir. Talvez tenha publicado em excesso, mas, se o problema é esse, melhor assim.