(Mia Couto)
Comentando a tradição oral de Moçambique, diz Mia Couto: “As pessoas podem discutir a coisa mais sagrada e mais séria do mundo, economia por exemplo, mas o fazem contando isso com histórias, com pequenos casos, com provérbios, com aquilo que são os conceitos da oralidade. (...) A oralidade não é a ausência do saber da escrita, a oralidade é um outro saber, uma outra maneira de olhar o mundo”.
A cultura oral tem um formato próprio, um espírito próprio. Ela é, por exemplo, uma cultura do concreto, baseada menos em generalizações abstratas e mais em casos, exemplos, anedotas, episódios, lendas, fábulas, provérbios, parábolas. Situações humanas cuja superposição vai cristalizando na mente dos ouvintes uma mensagem embutida. Aquilo que Lévi Strauss em “O Pensamento Selvagem” descrevia como “uma ciência do concreto”. Quando temos aquelas fábulas que se concluem com uma “moral da história”, aquela fórmula sintética que “explica” a história, não acho exagero dizer que a história em si (“A cigarra e a formiga”, “A raposa e as uvas”, etc.) pertence ao espírito da cultura oral, e a “moral da história” à cultura escrita, com o seu tom sintético e generalizante.
Por outro lado, a cultura oral é fluida; não existe “o original” de nada. Tudo é cópia, é versão. (Estamos regressando a esse estágio agora, com a reprodutibilidade instantânea do mundo digital. O mais difícil no mundo virtual é estabelecer a autoria original de algo, ou traçar a precedência de cada versão entre milhares que aparecem.) Cada versão é diferente das outras, cada uma é igualmente crível. É um mundo onde não é possível confrontar duas versões e bater um martelo a respeito da autenticidade de uma e da falsidade da outra. Na cultura oral é como na natureza: duas mangueiras são diferentes mas são ambas mangueiras, uma não é uma mangueira falsa e a outra uma mangueira de verdade. Na cultura oral, o conceito de autoria individual é muito tênue. Ela é apenas a fagulha inicial de alguma coisa cuja autoria é coletiva, social.