(ilustração: Remedios Varo)
... e a gente arranca ao Tempo mais um ano
como quem despe as roupas da Verdade
e a deixa reluzindo, à claridade
que ela mesma produz, ao ver-se exposta.
A Verdade é mulher, e mulher gosta
de revelar-se aos poucos, mas inteira,
e a vida só é bela e verdadeira
quando exibe seu corpo em sombra e luz,
claro-escuro no ar, que nos seduz
e nos faz mergulhar no seu mistério.
Mas os tempos de hoje... Fala sério!
Será tudo um teatro dadaísta?
E o que terá fumado o roteirista
que escreveu o Brasil de atualmente?
Basta olhar para a comissão de frente
que encabeça a terrível procissão
nas praças e avenidas da nação,
pesadelo hi-tech e surreal.
E quem sabe onde está oculto o Mal
no coração humano? O Sombra sabe.
É Moby Dick o monstro, ou é Ahab?
A Natureza, ou o engenho humano?
Quem tem poder, ao sol de um fim de ano
de erguer a mão e despejar a chuva?
Não existe. O que existe é a saúva
de terno e de gravata, anel no dedo,
que todo dia acorda muito cedo
e rói sem pena o que possível for.
Perdoai (e evitai) o roedor:
está sendo roído, ele também.
Eu só sei que o Natal um dia vem.
Impressionante como ele não falta.
E todo ano a humanidade incauta
ouve a sineta que a faz salivar.
A igreja do vender e do comprar
reza missa após missa o mês inteiro.
Quem tem mais sorte vê raiar janeiro
e recomeça o ciclo, o carrossel,
outro tijolo ao muro de Babel,
outra volta cruel do parafuso.
E a cada livro que eu em vão produzo
feito um mudo pregando no deserto
em linguagem de Libras, fico certo
de que mais vale a dor de estar fazendo
do que a não-dor do não fazer, e entendo
que a resposta virá. Mas não pra mim.
Se assim for, maravilha; e sendo assim
“taca-le pau”, poeta, faz sextilhas.
Imperfeitas ou não, são tuas filhas,
serão um dia o que restou de ti.
Quando meu pai erguia um Bacardi
inebriava o mundo num sorriso,
mandava um chiste, um verso, um improviso...
e esse momento reverbera ainda.
Se o Natal é um dia em que se brinda
e transformam-se em vinho águas passadas,
então que venham renas, rabanadas,
pacumês, espumantes, Concha y Toro!
Gasta logo, se o Tempo é teu tesouro,
a moeda de ouro deste dia.
Que o mundo fosse outro, eu bem queria,
mas aceito este fato consumado,
de vê-lo assim, desnudo, desvendado
pelo excesso de ser que é sua essência.
Se ele um dia notar a minha ausência,
que faça bom proveito destes versos!
Estarão os meus átomos dispersos
sem notar que outra vez bimbalham sinos
e que nascem milhões de outros meninos
neste ciclo-espiral do circo humano...
neste ciclo-espiral do circo humano...