Alguns anos atrás eu comprei na Berinjela um livro de Jean Gattégno sobre Lewis Carroll. Não é propriamente uma biografia, no sentido cronológico, mas são trinta e tantos capítulos sobre temas específicos como “Fotografia”, “Política”, “Pseudônimos”, “Sexualidade”, “Teatro” e assim por diante. No final, um retrato bem variado do criador de “Alice”. Eu estava de madrugada folheando o livro, quando cheguei à cronologia da vida de Carroll. Dizia a certa altura: “1898: no princípio de janeiro, um leve resfriado evolui para bronquite; Charles Lutwidge Dodgson morreu em paz em 14 de janeiro.” Nesse momento ergui os olhos para o calendário sobre a mesa: estávamos, já, nas primeiras horas de 14 de janeiro, e o ano era 1998. Talvez eu tenha lido essas palavras exatamente cem anos depois que o reverendo bateu o trinta-e-um.
Qual a chance de eu pegar aquele livro (não lembro se foi no mesmo dia em que o comprei, ou algum tempo depois) justamente no dia da morte do cara? Eu nunca soube essa data, não podia ser memória inconsciente. E aliás não é tão raro. Outra vez, de madrugada, eu estava lendo as linhas iniciais de The Eye in the Pyramid, um thriller psicodélico-surreal de Robert Shea e Robert Anton Wilson. O narrador diz:
“Por exemplo, não estou muito seguro nem sequer a respeito de quem sou eu, e meu constrangimento nesse aspecto me leva a imaginar se alguém será capaz de acreditar no que digo. Pior ainda: neste momento eu estou agudamente consciente de um esquilo, no Central Park, perto da Rua 68, em Nova York, e esse esquilo está pulando de um galho para outro, e acho que isso acontece na noite de 23 de abril (ou madrugada de 24?).”
Preciso dizer? Era exatamente isso: eu estava começando a ler aquele livro, no qual pegava pela primeira vez, nas primeiras horas da madrugada de um 24 de abril, o ano não importa. Nossa geração, felizmente, criou um jargão para isso: falha na Matrix. E nomear uma coisa misteriosa com um jargão não reduz seu mistério, mas facilita a gente pegar aquela coisa e botar no fim de uma lista.