O narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva/Alfaguara, 2014) é Jurandir, um cara às vésperas da aposentadoria, trabalhando num cotonifício perto do Recife. É casado, mantém um namoro ata-e-desata com uma colega de trabalho, foi encarregado de defender a empresa no caso de um acidente em que um operário se queimou. Esta é a situação inicial, mas logo Jurandir entra numa despirocação inexplicável que acaba levando-o a uma clínica psiquiátrica.
Jurandir narra as coisas com clareza, com método (é o típico funcionário caprichoso, consciencioso, que se esforça para fazer tudo direito), mas seu discurso é cheio de buracos, de non-sequiturs onde ele pula para coisas que não têm nada a ver, como quem muda um canal na televisão. Ler sua história é como ver uma cena através de um vidro muito transparente mas com manchas opacas espalhadas na superfície.
É a voz monocórdia do Meursault de Camus (O Estrangeiro), alguém brechtiano, distanciado, (descre)vendo coisas sem entendê-las por completo, e nos forçando a amarrar os nós nós mesmos. Contar é ajustar contas, é abrir diante de si mesmo e do mundo o massudo e amassado caderno das nossas dívidas. Em São Bernardo, Graciliano castiga o maucaratismo de Paulo Honório forçando-o a descrever a si mesmo quando resolve narrar suas memórias. Jurandir não é mau caráter mas a verdade é que bastaram duas ou três pequenas catástrofes pra descompensar sua vida.