(Ilustração: Vita Wells)
“A folhas tantas do Wilhelm Meister, descreve Goethe um piquenique e assim conclui: ‘Seria tudo muito mais romântico se não houvesse ao fundo uma carruagem’. E como, para nós, não há nada mais romântico do que uma carruagem – que vontade de substituí-la, dizendo que ficaria muito mais romântico se não houvesse ali um automóvel! A ‘tradução’ na verdade seria um anacronismo, mas que fielmente traduziria a intenção e o sentimento do autor”.
A citação é de Mario Quintana, em seu livro Da Preguiça Como Método de Trabalho (1987). Quintana era tradutor, sim; trabalhou para a Editora Globo de Porto Alegre, que por muitos anos foi uma das melhores, senão a melhor editora do Brasil. O poeta traduziu Virginia Woolf, Joseph Conrad, Balzac, Proust, Aldous Huxley, Guy de Maupassant... Se bem que da longa lista de suas traduções que acabo de consultar (na Poesia Completa da Aguilar) lembro ter lido apenas os Romances e Contos de Voltaire (1951) e O Tio Prodigioso (The Fabulous Clipjoint) de Fredric Brown (1951).
No exemplo de Quintana, o autor indica, e o tradutor percebe, que o efeito pretendido é de estranhamento, mas a passagem do tempo dilui esse efeito porque confere a todos os elementos da cena (o piquenique, a carruagem) uma aura uniforme de romantismo. A carruagem, que seria tão prosaica na época quanto o automóvel é hoje, perde esse poder de contraste. A intuição de Quintana é precisa, e a sua queixa é compreensível: para reproduzir o efeito pretendido pelo autor seria preciso recorrer talvez a um anacronismo, mas a liberdade de um tradutor (pelo menos numa obra com esse perfil) não deve ir tão longe.