(foto: Rui Palha)
Imagine uma cidade à noite, moderna, mas centrão velho decadente de alguma capital européia. Centrão perto do cais do porto, onde esta rua aqui está deserta e na próxima tem dez bares cheios. E imagine um sujeito andando apressado, não como quem foge de alguém, ou está com medo que alguém surja de uma sombra e o esfaqueie; mas como alguém que está um pouco atrasado para um compromisso mas está tranquilo, já recalculou seu tempo e sabe que naquele passo chegará na boa. O homem anda, passa por arcadas vistas de baixo para cima, cruza pela faixa um asfalto molhado e brilhante, atravessa becos onde só se veem latas de lixo e o onipresente gato filmando tudo com os olhos.
O homem está avançando pela rua e agora está sendo visto de dentro de uma sala no quarto andar de um edifício vetusto e exuberante, como um hotel decandente para aristocratas que há vinte anos não consegue reformar suas instalações. São dois homens de roupa escura e uma mulher com uma taça na mão. Lá vem, diz um deles, atraindo a atenção dos dois, que conversavam em voz baixa. O homem junto à janela tem os olhos de um demônio e o cavanhaque de um impostor. O homem mais jovem é enorme, tem a barba por fazer, exibe um coldre-de-arma em diagonal no peito. A mulher, bem, a mulher é a única coisa que eles dois enxergam, e essa foi a tragédia dos três.
O homem veio, a porta do edifício foi aberta, ele subiu os quatro andares, bateu à porta. Abriram e ele se deparou com o trio: a mulher sentada bebericando seu gimlet, o homem mais velho de braços cruzados junto à janela, o grandão armado fechando a porta às suas costas. Ele cambaleou, caiu de joelhos no meio da sala e recitou um soneto de Shakespeare. Foi percorrido por um estremeção, tombou, e pareceu desacordado por algum tempo.