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5181) Al Pacino, o ator e o improviso (28.5.2025)

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Um programa que eu não perdia no antigo Canal Multishow (ou seria no antigo GNT?) era Inside the Actor’s Studio, aquele talk show comandado por James Lipton. Um papo sobre cinema e teatro, com atores, atrizes, diretores, etc., num palco, diante de uma platéia cheia de estudantes de teatro. 
 
Os melhores conselhos do teatro são os que a gente pode aplicar na literatura, assim como os melhores da pintura são os que a gente pode aplicar no cinema, e assim por diante. Isto não é uma verdade científica, é claro. É apenas uma frase-de-efeito para sugerir que a mão da gente pode até estar tocando numa árvore, mas é obrigação do olho enxergar a floresta. 
 
Al Pacino, entrevistado por Lipton (o programa hoje está no YouTube, com legendas em inglês que o algoritmo improvisa na hora), lembra seus primeiros trabalhos juvenis sob a direção de Lee Strasberg, um dos criadores do Actor's Studio.

É interessante lembrar que Strasberg aparece no Poderoso Chefão 2, encanecido, comedido, exato.



(Lee Strasberg e Al Pacino, O Poderoso Chefão 2)

 
E ele recorda alguns conselhos que recebeu do mestre.
 
PACINO – Ele me ensinou também uma coisa que nem sempre eu me lembro de por em prática... e que eu considero algo valioso, e que eu esqueço, às vezes... e eu gostaria que ele estivesse por perto para me lembrar. Ele dizia: “Às vezes, não vá o mais longe que pode.” 
 
LIPTON – Fique firme em você mesmo. 
 
PACINO (concordando) – Fique firme em você mesmo. Exatamente. 
 
O que significa esse “não vá o mais longe que pode”? Pode ser uma porção de coisas, mas no momento o que me vem à cabeça é algo como: “Não passe do ponto”. Ser criativo é ótimo, mas tem um ponto, e não passe do ponto. Ser emocionalmente intenso é ótimo, mas não passe do ponto. Ser cerebral? Beleza, mas não passe do ponto.  
 
Trago isso para a literatura porque um escritor está sujeito a duas catástrofes, a do bloqueio criativo e a da incontinência criativa, se bem me exprimo. É quando a criação verbal encontra o tom certo, o diapasão certo, o fluxo certo, mas aí o escritor se entusiasma consigo mesmo e não consegue conter o fluxo. Pelo contrário: ele se desdobra na tentativa de manter o fluxo por duas páginas, doze, vinte.  
 
E nem sempre é o que o texto está pedindo. Não há regra para isto, todo texto é diferente, e não há duas noites-de-trabalho iguais. Não tem como passar uma receita precisa. É preciso sentir onde é o ponto de dizer “chega, tá bom, vamos para o próximo”. 




Você fazer essas coisas é como fechar uma caixa de fósforos: você vai empurrando a caixinha de dentro, a que guarda os palitos, até encaixá-la na caixinha de fora... E aí pára. É esse o ponto. Se continuar empurrando, a caixa dos palitos sai pelo outro lado. 
 
Não passe do ponto. O que às vezes é pedir muito para um ator ou atriz, que trabalha com o corpo – o rosto, as mãos, os olhos, a voz, esse repertório de partes traiçoeiras que passamos a vida tentando manter sob controle, tentando evitar que nos traiam. 
 
Vale para os escritores, sim, e mesmo os melhores dentre eles passam do ponto, às vezes. Eu afirmo (polemicamente) que o ponto alto da obra de James Joyce é o Ulisses, e com Finnegans Wake ele passou do ponto. Afirmo que o ponto alto da obra de Guimarães Rosa é Grande Sertão: Veredas, e que com Tutaméia ele passou do ponto. Neste último caso, chamo ao banco das testemunhas um roseano insuspeito, o mestre Ariano Suassuna, para quem Tutaméia parecia “amaneirado”. 
 
Isso quer dizer que são livros ruins? De jeito nenhum. Tutaméia entra em qualquer lista dos melhores livros de contos da literatura brasileira. Mas é um livro onde o autor (compreensivelmente atarantado por problemas de demarcação de fronteiras, de saúde e tudo o mais) destilou tanto a si próprio que passou do ponto. 
 
O conselho de Lee Strasberg tem a ver com uma certa duplicidade de visão que o grande ator e a grande atriz conseguem manter: a capacidade de, no “quente” da cena, serem cem por cento O Personagem, e ainda terem espaço para uns 50% de si mesmos, aquele controle distanciado que não lhes permite “passar do ponto”. 



(Al Pacino em Dick Tracy)
 

Aquele sexto ou sétimo sentido que faz o ator de teatro, mesmo numa briga de faca, saber sempre em que direção está a platéia, e o ator de cinema, mesmo numa cena de sexo, saber exatamente onde estão as duas ou três câmeras presentes, e que provável enquadramento cada uma está usando. 
 
É difícil? Olhe, deve ser, por isso não quero ser ator. Mas, para mim, muito mais difícil é dirigir automóvel e conversar ao mesmo tempo, e as ruas estão cheias de gente fazendo isso. 
 
É um olho no gato e outro no peixe, como diz o ditado, e se não é assim digamos: é um olho na estrada e outro no retrovisor. Somente com esse grau de entrega e de distanciamento (cada um puxando numa direção oposta) é possível despejar um vesúvio de emoção e ao mesmo tempo impedir que a montanha se desmanche toda. 
 
Isto tem tudo a ver, também, com o improviso do ator, esse momento delicado onde ele, por mais que “saiba suas linhas” (conheça de cor suas falas), se joga no ar como um trapezista que pula sem saber se tem trapézio livre no lado oposto. 
 
Sobre O Poderoso Chefão, Lipton pergunta a Al Pacino: 
 
LIPTON – Francis [F. Coppola] é famoso pelo amor que tem ao improviso. Ele encorajava isso, nos filmes da série Godfather
 
PACINO – Sim, mas às vezes você precisa ter muita informação para improvisar. E eu não recomendaria começar pelo improviso. Eu aconselharia: faça depois de você estar conhecendo melhor o material. 
 
Parece a minha conversa, meio século atrás, com um dos repentistas do programa “Retalhos do Sertão” na Rádio Borborema. Eu perguntei (hoje não lembro se foi a Santino Luís ou a José Gonçalves): “Qual é a primeira coisa que um repentista precisa ter?”. Eu pensava que a resposta seria algo tipo “rapidez de raciocínio”, etc. Ele respondeu: “Boa memória”. E questionei: “Mas a boa memória não serve para criar de improviso, serve para repetir”, e ele disse: “Não, a memória serve para você ter onde buscar”. 
 
Para você ter onde buscar, você tem que se impregnar de todo tipo de material relativo ao personagem e à história. Pacino diz que quando foi fazer o personagem de Satã em O Advogado do Diabo (Taylor Hackford, 1997) passou a devorar tudo a respeito. Inclusive ler o Paraíso Perdido de John Milton (1667). Isso serviu ao filme? Diretamente, não, mas indiretamente, quem sabe? 
 
PACINO – É isso que eu digo: osmose. Você penetra numa certa coisa e começa a acumular todo o material daquilo para dentro de você. Eu sempre recomendo aos atores: absorvam a maior quantidade possível de material, porque assim você vai ficando cada vez mais distante das palavras, e mergulhando no comportamento e em tudo o mais, e isso penetra em você, e é absorvido pelo seu inconsciente... E se tudo corre bem, isso encontra um canal de saída, e pode resultar em todo tipo de momentos interessantes. 

 




Lipton evoca o filme Sea of Love, onde Pacino contracena com Ellen Barkin, e pergunta se os dois ensaiaram por conta própria para as cenas em conjunto. 
 
PACINO – Sim, nós chegamos mesmo a improvisar em algumas cenas. Essa é uma coisa boa que os filmes têm, e pode significar muito para alguém. Se você improvisa numa cena, e grava isso em fita, e aquilo é transcrito... E se você tem conhecimento dos personagens que vocês estão interpretando, e você improvisa, honestamente, numa situação particular... põe os dois personagens naquela situação e simplesmente improvisa. 
 
É bom ter em mente, ouvindo essa menção a “gravar em fita”, que Sea of Loveé de 1989, quando os filmes ainda eram rodados no caríssimo celulóide. Para que servia a fita magnética? Para gastá-la com improvisos que muitas vezes demoram horas inteiras e não levam a lugar nenhum, vão direto para o lixo, mas outras vezes descobrem, no calor da improvisação, caminhos (de texto, inclusive) que não teriam ocorrido nem ao dramaturgo nem ao diretor. 
 
O improviso, no ensaio de teatro ou de cinema, é regido por esta mandamento: “Anote, e incorpore”. Mil bobagens serão ditas e serão feitas, mas sempre que alguma coisa realmente boa aparecer, anote na memória (ou no papel) e incorpore à cena. 
 
Não é muito diferente a reflexão do nonagenário Zé de Cazuza, o homem-gravador das cantorias do Vale do Pajeú. Zé de Cazuza diz, sensatamente: 
 
“Todo mundo improvisa. O poeta, o que escreve no papel, muitas vezes está também inventando na hora, está criando em questão de segundos, no calor do improviso. Qual é a diferença dele para o cantador de viola? É que ele pode voltar atrás e corrigir o que não gostou. E o cantador não pode.” 


 


(Al Pacino, "Shylock", em O Mercador de Veneza
 
 
 
 




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